No dia 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher, a membra titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Eliete Bouskela foi empossada como presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), se tornando a primeira mulher a ocupar o cargo em 195 anos. A cerimônia, entretanto, foi apenas simbólica, pois a Acadêmica já ocupa o cargo desde o 1º de janeiro. Para ela, a experiência está sendo interessante, e menos complicada do que esperava.

Mas além de sua liderança na área médica, Eliete Bouskela também é uma pesquisadora de destaque na ciência brasileira. Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde seguiu até o doutorado, Eliete acumulou experiências internacionais nos Estados Unidos e na Suécia. Hoje, é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e suas pesquisas se concentram nas áreas de fisiologia cardíaca e obesidade.

Como gestora de ciência, Eliete Bouskela atua como diretora científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), tendo sido uma das responsáveis pela criação de editais específicos para mulheres, algo raro no Brasil. A iniciativa vem dando resultados positivos, e ela espera ver outras financiadoras se interessando pelo tema.

A professora foi convidada pela ABC para uma entrevista para marcar o Dia Internacional da Mulher. Entre os muitos assuntos, ela abordou as dificuldades que as mulheres enfrentam para se tornarem cientistas no mundo todo, e que iniciativas podem ser pensadas para melhorar esse cenário. Confira:

A senhora é a primeira mulher presidente da ANM. Na ABC, tivemos Helena Nader assumindo em 2022, também a primeira mulher presidente. No MCTI temos a ministra Luciana Santos, primeira mulher a ocupar a pasta de forma titular. Você considera isso um sinal dos tempo?
Acho que estamos ousando mais. Antes a gente não tinha essa ousadia, digamos assim, de desafiar o “teto de vidro”. Agora, não é que ele não exista, mas a gente empurrou ele um pouco mais pra cima.

 

O “teto de vidro” é uma expressão que utilizamos para dizer que existem certos pontos no decorrer da carreira científica em que a proporção de mulheres vai diminuindo. Na sua carreira, você sentiu esse teto de vidro em algum momento?
Acho que depende muito da sua atitude. Eu nunca tive uma atitude subserviente. Nunca me coloquei como a “menininha”, digamos assim, mesmo quando eu era muito jovem. Mas é claro que eu percebi o número de mulheres diminuindo à medida que fui galgando postos maiores.

Mas esse não é um problema brasileiro, é mundial. A grande revolução do último século foi a mulher ter saído pra trabalhar. Tudo isso é muito novo. Até a geração da minha mãe, as mulheres não trabalhavam fora, trabalhavam em casa. Até então o homem sustentava a casa, era sua obrigação. Quando a mulher saiu para trabalhar, ela passou a dividir essa obrigação com o homem, mas não se desligou das outras obrigações. Isso tornou a vida da mulher muito difícil.

Há 20 anos atrás, saíram três artigos na Science, mostrando que a mulher só fazia carreira em países que tinham empregadas. O que significa claramente que a mulher foi trabalhar fora mas o trabalho de casa não foi dividido e, por isso, precisamos de outra mulher para que possamos fazer carreira. Em países onde não existem empregadas é muito mais difícil, as mulheres precisam desistir de casar e ter filhos. Ainda temos que avançar muito.

 

Você é uma das sete mulheres entre os 94 membros atuais da ANM. Em toda a história, são 10 mulheres em um universo de mais de 700 membros…
Isso porque elegemos três só no último ano. A ANM foi fundada em 1829 e a primeira mulher entrou em 1985.

 

Na ANM você precisa se candidatar, não é indicação. Numa carreira que, de umas décadas para cá, se tornou predominantemente feminina, você acha que mulheres são menos propensas a se candidatarem?
Tenho certeza disso. Até porque, à exceção de uma que desistiu, todas as mulheres que já se candidataram foram eleitas. Temos que levar em consideração que não é uma candidatura barata, pois você precisa visitar todos os membros da Academia. É uma tradição que tem uma razão de ser, os membros tem muito interesse de saber quem é você. É um ponto considerado muito importante, uma obrigação do novo Acadêmico.

 

E você acredita que essa visita pode ser algo que desestimule mulheres a se candidatar?
Não sei se desestimula, mas é preciso ter tempo para isso, e é algo custoso. Além do fato de que você olha no quadro de membros e quase não vê mulheres. Então esse conjunto de fatores talvez desestimule muitas a se candidatarem.

 

Mudando de assunto. Você é medica e também cientista. Na ciência é bastante recente a ideia da licença maternidade para bolsas de pesquisa e a extensão de prazos por conta da maternidade. Você tem dois filhos, na época em que você se tornou mãe, sentiu dificuldades adicionais na sua pesquisa?
É quase impossível você ser produtiva no primeiro ano da criança, ou então você não vai cuidar da criança. Porque no primeiro ano ser mãe é um trabalho em tempo integral, com muitas tarefas, como amamentação, que você simplesmente não pode delegar.

Na realidade, e isso é uma tecla que eu bato a anos, é muito ruim para o Brasil ter como base tratar diferentes como iguais. Temos que tratar diferentes de forma diferente. As obrigações de um médico são diferentes das de um geógrafo ou de um historiador. Assim como mulheres são diferentes dos homens.

Nas graduações, por exemplo, temos um problema de empregabilidade dos nossos egressos. Levando em consideração que apenas as universidades públicas – e algumas filantrópicas – fazem pesquisa, o resultado disso é confinar as possibilidades de seguir para a pós-graduação aos estudantes das universidades públicas

Isso desestimula o ingresso na carreira científica, porque você não vê a possibilidade de ter emprego. As bolsas são muito baixas e, no mestrado ou doutorado, já temos compromissos familiares que dificultam se manter apenas de bolsas para, ao final, ainda não ter emprego.

 

Recentemente saiu um número de que 77% dos alunos de ensino superior do Brasil estão em instituições privadas, enquanto 99% da pesquisa é feita nas públicas. Você acha que precisamos levar a pesquisa aos outros setores?
Não só devemos como é mandatório, senão não aumentaremos o número de pesquisadores. Em todos os países ditos desenvolvidos, a maioria dos doutores está nas indústrias, não na universidade. Você pode ser inventor na universidade, mas fazer inovação, colocar aquele produto na prateleira, não vai ser um pesquisador que vai fazer. Você precisa de uma indústria por trás da sua invenção para que ela vire efetivamente o que chamamos de inovação. As indústria brasileiras não empregam nossos doutores.

O serviço público, de uma maneira geral, está muito pouco preocupado com prazos. Quando você ganha um edital numa agência de fomento, o prazo é quase inexistente, pois você pode aumentar quase ao seu bel-prazer…

 

Mas não é infinito…
Não é, mas é muito mais elástico do que o necessário para a indústria. O prazo é fundamental para o setor privado. A gente ainda se preocupa muito em separar recursos de custeio e de capital. Isso não existe no setor privado, você aprova um orçamento e a partir daí você vai usar esse orçamento para o que for necessário. Mas o prazo precisa ser respeitado.

Agora, por alguma razão que não compreendo, nossas indústrias tem muito pouco interesse nos mestrandos e doutorandos que formamos. Eu morei sete anos na Suécia e vi que a maioria das indústrias por lá se estabelecem em cidades onde tem universidade, pois elas captam os egressos para seus quadros de pesquisa, muitas vezes sem nem doutorado. E a indústria brasileira infelizmente parece ter muito pouco interesse nesses egressos.

 

Esse é um dos grandes dilemas da ciência brasileira, essa falta de diálogo entre universidade e indústria. Até existem polos de tecnologia, incubadoras de empresas, mas a falta de interesse em inovação é palpável. Os dois lados tem culpa nisso?
Eu acho que nossas universidades tem pouco interesse em buscar a indústria, e a indústria tem menos ainda em buscar a universidade. Eu conheci alguns empresários brasileiros que quando queriam fazer P&D eles criavam hubs nos EUA, ao invés do Brasil. Isso é uma pena, isso leva à queda na procura e na qualidade das pós-graduações. É algo que precisamos pensar.

 

O desenho de incentivos para mudar esse cenário precisa partir das financiadoras. A senhora é diretora científica da Faperj, tem algum exemplo que gostaria de citar?
Nós lançamos recentemente essa bolsa para doutores nas indústrias, mas ainda é algo muito incipiente. Nós damos a bolsa para a pessoa fazer doutorado na empresa e ela precisa ter um orientador dentro da empresa. Pode ser um co-orientador, mas precisa ter essa pessoa.

 

A senhora recentemente esteve na ABC para divulgar os resultados do edital “Jovem Cientista Mulher”. Mas esse tipo de edital ainda é específico da Faperj, não se vê isso em outras Fundações ou em agências federais. É o tipo de coisa que precisamos expandir?
Claro que temos que expandir. Precisamos mostrar que a diversidade no laboratório é importante. Isso melhora inclusive a qualidade da pesquisa. Agora, precisamos sempre dar o primeiro passo. No momento em que você dá o primeiro passo outras agencias podem copiar. Tivemos uma grande procura, foi uma experiência muito boa. Os projetos eram excelentes e nós lamentamos muito não selecionar outros, mas financiamos mais do que estava previsto.

 

Outro ponto bastante sensível é o assédio. Ano passado um trabalho de membros afiliados da ABC traçou o perfil do jovem cientista brasileiro e um dos resultados, que chamou muita atenção, foi de que uma em cada duas mulheres na pesquisa sofreu algum tipo de assédio sexual. Você acha que a academia ainda fala pouco sobre isso?
Acho que fala pouco, assim como a sociedade fala pouco. E fala pouco porque, até pouco tempo atrás, se você era assediada a culpa era sua, da sua roupa, de você ter provocado. E também porque existe no Brasil uma ideia de que o “não” na realidade pode significar “talvez”. Ou seja, existe essencialmente uma falta de respeito. “Não” é “não”, e acabou.

O problema é que as mulheres não tinham coragem de denunciar. Já soube de vários casos de assédio por pesquisadores antigos e que nunca foram denunciados, porque eram pessoas muito poderosas e que poderiam retaliar. Se você pensar bem, a grande barreira é a primeira denunciar, quando uma denuncia, outras se sentem encorajadas.

 

Nas universidades já existem redes de apoio entre as alunas, mas ainda falta algo mais institucional?
Falta uma ouvidoria onde elas possam denunciar, mas uma ouvidoria onde elas sejam respeitadas. Ninguém deve tentar convencê-la de que aquilo não é real, de que é exagero. Muitas vezes as mulheres são colocadas nessa posição desconfortável. Geralmente a primeira que denuncia passa pela situação de tentarem convencê-la de que não é bem assim.

 

Como está sendo ser a primeira mulher presidente da ANM?
Está sendo interessante. A ANM tem um corpo de funcionários excelente, então está sendo menos complicado do que eu tinha pensado.

 

Você pretende atacar essa questão da desigualdade de gênero na ANM?
Eu gostaria muito. Eu tenho a posição de que, em igualdade de condições curriculares, devemos sempre optar pela mulher. É quase uma reparação histórica.

Mas o que me interessa mesmo hoje é que a ANM assessore o governo em matéria de saúde. Estou muito preocupada com o ensino médico no Brasil. Temos o maior número de escolas médicas no mundo, à frente de China e Índia, cuja população é dez vezes maior. Mas cuidamos pouco da qualidade dessas escolas e também da qualidade da residência médica.

 

O problema do surgimento de novas instituições de ensino sem o devido controle é notório, não só na medicina. Mas qual a sua preocupação com a residência médica?
Faltam bons locais para os egressos fazerem residência. A maioria dessas novas universidades não tem hospital próprio. Isso é ruim, se você está se formando em medicina clínica você precisa ter um hospital bem aparelhado e com preceptores, e não estamos vendo isso. É muito preocupante, esses jovens tomarão conta de nós no futuro.

 

Durante a pandemia, se por um lado tivemos uma atuação heroica dos profissionais de saúde na linha de frente, por outro tivemos posicionamentos duvidosos de entidades médicas e conselhos regionais. Como presidente de um órgão que é o representante máximo da classe médica no Brasil, qual sua posição sobre isso?
É uma tragédia. É o acúmulo de muitos problemas. Eu faço parte da Academia Francesa de Medicina e um dos seus membros mais admirados, um cientista responsável por descrever o vírus da AIDS, se aposentou aos 65 anos, se mudou para os EUA e hoje é um líder antivax. Você pode conceber uma coisa dessas?

Então, nem sempre a boa formação, a inteligência das pessoas, é o suficiente. A gente consegue explicar esse fenômeno entre leigos, mas entre médicos, é difícil explicar.

 

Você acredita em punição nesses casos?
Acho que sim. Acho que precisamos ter mais punição para erros médicos de forma geral. Se você levou a população a uma conclusão errada, você precisa ser punido. Mas no Brasil ainda punimos muito pouco, mesmo erros médicos crassos. Existe toda uma rede de impunidade muito triste em nosso país. Mas precisamos nos preocupar, sobretudo, para que os mais jovens não embarquem nessa, mudar a cabeça de uma pessoa mais velha é muito mais difícil.

 

Professora, estamos chegando ao final da entrevista, alguma consideração final ou alguma mensagem para as mulheres que estão entrando agora na carreira científica?
Minha mensagem é: tentem porque vale a pena. Vale muito a pena. A carreira científica é uma das mais legais que uma pessoa pode seguir, eu sou muito feliz com ela. Agora, os obstáculos estão aí pra gente superar, não são intransponíveis.