Leia artigo do vice-presidente da ABC para a região Minas Gerais e Centro-Oeste, Virgilio Almeida, que é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e professor emérito da UFMG, e Francisco Gaetani, professor da EBAPE/FGV e secretário extraordinário para a Transformação do Estado, do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, publicado no Valor Econômico em 17 de novembro:

Os pontos de partida deste artigo são duas perguntas.

A primeira questiona as chances do Brasil, numa época em que as tecnologias de inteligência artificial (IA) avançam por todos os setores da sociedade e da economia.  Afinal, o país não tem nenhuma grande empresa global de tecnologia. Por que os avanços da IA no Brasil ainda são tímidos?

A segunda pergunta endereça uma dúvida angustiante: será que o país pretende ingressar neste novo mundo, onde a IA será onipresente, ou continuará disperso, agindo da forma ditada pela dinâmica de múltiplos atores atomizados? O país desenvolverá um esforço nacional com vistas a colocar o assunto no centro das agendas do arquipélago das interações entre os poderes públicos, os vários segmentos de mercado e os múltiplos stakeholders afetos a esta temática?

As respostas às perguntas acima passam pela compreensão de  três fatores que oferecem uma possibilidade de um cenário otimista para o Brasil:

i) o avanço da IA depende da disponibilidade de grandes massas de dados;

ii) o Brasil  é um maná de dados para todos os gostos, o sonho de consumo de grandes empresas de tecnologia e de pesquisadores do mundo inteiro;

iii) em 2024 o Brasil assumirá a presidência do G20 e, como tal, deverá discutir suas posições frente às grandes temáticas globais, que incluem a inteligência artificial.

O Brasil dispõe de grandes bases de dados em vários setores da economia: saúde, meio ambiente, educação, governo, dentre outros. O país possui um conjunto de instituições respeitadas mundialmente. SUS, INEP-MEC, IBAMA, IBGE são detentores hoje daquilo que muitos outros países gostariam de ter acesso – dados que constituem um tesouro para a era da IA, pela quantidade, diversidade e pela evolução histórica de muitas dessas bases.

O G20, que coletivamente representa 85% do PIB mundial e dois terços de sua população, desempenha um papel fundamental na formatação do cenário global das tecnologias digitais.  Desde a criação da agenda de objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) das Nações Unidas, o G20 tem procurado explorar o uso de tecnologias e inovação digital para avançar na agenda ODS.

No contexto dos grandes desafios globais, os sistemas de saúde tornaram se um foco central do G20 em função do que ocorreu nos últimos anos. A pandemia de COVID-19 reforçou a necessidade de respostas coordenadas entre países e prestadores de serviços de saúde no que diz respeito à saúde digital. Na reunião de Ministros da Saúde do G20 durante a presidência indiana ficou evidente a importância da saúde digital e da modernização de dados do setor no fortalecimento dos sistemas de saúde, onde a IA é uma tecnologia capaz de produzir mudanças inimagináveis.  

A questão de dados de saúde é reconhecida como cada vez mais estratégica. Uma reportagem recente da The Economist aborda a situação do “National Health Service (NHS)’’ do Reino Unido – fonte de inspiração do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), e afirma: trata-se de “um verdadeiro tesouro para desenvolvedores de inteligência artificial (IA) ansiosos para aplicar seus modelos na melhoria da saúde humana.’’ E o alerta formulado na reportagem aponta para a necessidade de uma estratégica digital para que não se percam as oportunidades econômicas oferecidas pela IA:  “os dados do NHS poderiam ser a base de uma próspera indústria de exportação, licenciando ferramentas de IA para sistemas de saúde ao redor do mundo’’.

Para disponibilizar o acesso a essas bases, é necessário estabelecer políticas públicas para construção e gestão de uma infraestrutura nacional de dados -lembrando que o Brasil possui duas robustas empresas estatais de informática: Dataprev e Serpro. No âmbito das discussões do G20, alguns princípios foram propostos:

1) criar um arcabouço legal para proteger os dados de saúde dos cidadãos;

2) promover regras e protocolos para trocas seguras de dados de saúde no país e entre fronteiras;

3) priorizar uma infraestrutura pública digital para a saúde;

4) estabelecer centros de excelência em IA e tecnologias emergentes para a saúde.

A modelagem que vai se tornando evidente, quase simultaneamente, em vários países, mostra que o desenvolvimento da IA depende de múltiplas variáveis, dentre as quais as políticas públicas que cada país define  para  seus dados, públicos e privados. O mundo – e não apenas as economias desenvolvidas – tornou-se movido por dados, que são a base para o acelerado crescimento das aplicações de IA em todos os campos do conhecimento, com extraordinárias repercussões sobre a produtividade, a competitividade e o comércio das nações.

 A diferença reside no fato que em alguns países existem preocupação e iniciativas com a regulação do processo de desenvolvimento, expansão e aplicação da IA. Este foi o caso da Índia, que usou o ano em que presidiu o G-20 para alavancar suas políticas intensivas em transformação digital no plano nacional ao mesmo tempo em que projetou o país internacionalmente como líder de serviços e políticas digitais.

As pessoas e as empresas já entenderam que IA não é necessariamente uma ferramenta de automação de processos e substituição de mão de obra. IA pode ser um poderoso complemento do trabalho humano – e este curso de ação deve ser prioritamente perseguido pelo governo, porque o setor privado, na maior parte das situações,  busca IA como forma de automação de tarefas, com a consequente redução da mão de obra que emprega.

A capacidade de coordenação pelo governo destes temas complexos é baixa. Em consequência, a fragmentação é a regra geral – e no trato de um assunto como a IA este traço da cultura política administrativa do país não parece ser o melhor caminho. Talvez o caminho oposto, baseado em um esforço de coordenação nacional, uma aposta concatenada e especializada seja a melhor alternativa para iluminar o caminho adiante. Ou o Brasil toma uma decisão ou o tempo se encarregará de fazê-lo, através das políticas definidas por outros países engajados na construção de seus respectivos futuros.