Leia texto redigido por representantes do Painel Científico para a Amazônia (SPA), dentre  os quais o Acadêmico Carlos Nobre:

Nós, membros do Painel Científico para a Amazônia (SPA), nos unimos ao júbilo global pelo resgate das crianças Indígenas da comunidade Uitoto: Lesly Jacobombaire Mucutuy (13 anos), Soleiny Jacobombaire Mucutuy (9), Tien Ranoque Mucutuy (4) e Cristin Ranoque Mucutuy (11 meses), depois de passarem por uma odisseia de 40 dias na Amazônia colombiana. Esta incrível saga incluiu a sobrevivência a um acidente de avião, a superação da dor e tristeza de testemunhar a perda da mãe no local do acidente e a sobrevivência após uma longa e perigosa jornada pela floresta da Amazónia colombiana, em meio a chuvas torrenciais diárias de 16 horas. Seus nomes e as múltiplas lições de sua provação permanecerão para sempre como uma fonte de esperança e resiliência para a nós e a humanidade.

Essa odisseia representa um retrato fiel da situação delicada em que a região Amazônica e, em particular, as sociedades Indígenas da Amazônia colombiana se encontram atualmente. As quatro crianças e a mãe viajavam de avião para se encontrarem com o pai e o marido em San José del Guaviare, depois de terem sido ameaçadas de morte por dissidentes de guerrilhas que não cederam ao acordo de paz de 2016. O controle territorial da Amazônia continua a ser um objetivo central de diversos grupos armados na Colômbia e em outros países que compartilham a fronteira amazônica. Esses se beneficiam de economias ilegais, como o tráfico de drogas e a mineração, induzindo ao deslocamento forçado e ameaçando objetivos autodeterminados de bem-estar dos povos indígenas.

Homenageamos a coragem, resiliência e força das crianças da comunidade de Uitoto que sobreviveram durante 40 dias em uma floresta repleta de perigos, incluindo a escuridão derivada da topografia da região, animais (jaguares, escorpiões e outros aracnídeos, cobras e insetos, incluindo mosquitos vetores da malária, dengue e leishmaniose) e plantas venenosas. A sobrevivência destas crianças não foi um milagre. Foi possível graças à sua inteligência, persistência, resiliência e coragem, em particular da menina mais velha, Lesly, que guiou seus irmãos numa jornada que, em comparação, torna a viagem de Dante na Divina Comédia insignificante. O conhecimento ancestral que as crianças tinham sobre a floresta tropical foi igualmente importante. Durante vários dias, as crianças sobreviveram se alimentando de sementes, raízes e frutos, graças a capacidade de sobrevivência e aos conhecimentos sobre a floresta transmitidos ao longo de gerações e séculos entre membros do povo Uitoto e outros povos Indígenas da Amazônia. Os povos Indígenas da Amazônia mantêm sua própria educação desde antes de irem para a escola. Esse conhecimento, que não é formal e não ocorre em uma sala de aula, é fundamental para que possam viver na floresta.

É possível destacar quatro grandes momentos e lições vindos desta impactante história:

1) A fuga da família de um dos inúmeros conflitos que assolam a Amazônia e que são responsáveis pela morte de tantos Indígenas. É urgente que os direitos e a vida de Povos Indígenas sejam respeitados para que nunca mais famílias precisem lutar contra criminosos e invasores para salvar as suas vidas.

2) O milagre da sobrevivência das crianças Uitoto diante da queda de um avião.

3) A sobrevivência na floresta, que não foi um milagre, mas sim o resultado do enorme conhecimento de Povos Indígenas da Amazônia sobre a floresta, passado por seus ancestrais que lá vivem há mais de 12.000 anos; sua grande capacidade não apenas de entender a floresta, mas de lidar com seus desafios; e a importância da transmissão de conhecimento entre gerações, permitindo que uma menina de apenas 13 anos não apenas sobrevivesse, mas auxiliasse seus irmãos mais novos.

4) E o papel fundamental desempenhado por Indígenas dos povos Uitoto, Koreguaje, Sicuani, Nukak e Murui da Amazônia colombiana, praticando seu conhecimento sobre a floresta e sua sensibilidade sobre diferentes culturas nos 35 dias que duraram as operações de resgate, um esforço coordenado com 150 comandos militares especiais das Forças Armadas colombianas. Tanto o conhecimento dos povos Indígenas sobre a floresta quanto o uso de drones, helicópteros, aviões e várias ferramentas científicas e tecnológicas foram fundamentais para o resgate das crianças. Além disso, a presença de Indígenas nos esforços de busca das crianças Uitoto foi fundamental para o sucesso das operações. É importante lembrar que as crianças estavam fugindo de uma situação grave de conflito em sua terra natal e, portanto, provavelmente não queriam ser encontradas por pessoas em quem não confiassem. A presença de Indígenas e as estratégias utilizadas por eles para encontrar as crianças sem dúvida lhes deu mais confiança para aceitar a ajuda.

O mundo parece bastante surpreso com a sobrevivência destas crianças durante 40 dias na floresta. No entanto, povos Indígenas vivem na floresta amazônica há milhares de anos. As lições que as quatro crianças Uitoto ensinaram ao mundo inteiro têm e terão implicações amplas e duradouras que se ampliarão com o tempo. Essas lições são: a importância do conhecimento ancestral Indígena que nos ensina a viver e a sobreviver com dignidade, a importância do bem-estar coletivo, a confiança e o respeito pela mãe natureza; e a necessidade de uma marcha lenta, segura e persistente como antídoto contra a vida frenética e vazia que o atual sistema econômico impôs à humanidade. Acreditamos firmemente que a odisseia das crianças de Uitoto constitui um ponto de transformação social poderoso e necessário para a humanidade em direção a modelos sustentáveis de relação com a natureza e a modelos de desenvolvimento capazes de manter as florestas em pé e os rios fluindo na Amazônia, combinando ciência com os conhecimentos dos povos Indígenas e das comunidades locais, conforme recomendado pelo SPA. Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia que respeite a complexa interação entre os sistemas sociais e os sistemas naturais para que possamos viver nela e deixar a Amazônia viver conosco.

É fundamental que a sociedade escute o que os Povos Indígenas vêm dizendo em inúmeros fóruns globais: a Amazônia está viva e cuida de suas crianças e idosos, assim como os guardiões Indígenas cuidam da Amazônia. Florestas tropicais são de extrema importância não apenas para as populações que ali habitam, mas para toda a humanidade. É preciso reconhecer e garantir os direitos aos territórios e a vida dos Povos Indígenas, que são os principais responsáveis pela conservação da floresta e dos rios, pela proteção dos estoques de carbono, e da biodiversidade. A excepcional história de sobrevivência das crianças Uitoto demonstra como a sociedade de modo geral precisa reconhecer ainda mais a importância do conhecimento de Povos Indígenas.

 

Colaboradores

  • Germán Poveda, Departamento de Geociências e Meio Ambiente, Universidade Nacional da Colômbia, Medellín, e membro do Comitê Científico Diretor do Painel Científico para a Amazônia
  • Gregorio Mirabal, coordenador de Mudanças Climáticas e Biodiversidade da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e membro do Comitê Estratégico do Painel Científico para a Amazônia (SPA)
  • Marielos Peña Claros, Universidade de Wageningen, Holanda, e co-presidente do Painel Científico para a Amazônia (SPA)
  • Carlos A. Nobre, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, e co-presidente do Painel Científico para a Amazônia (SPA)
  • Gasodá Suruí, autor do Painel Científico para a Amazônia e coordenador do Centro Cultural Indígena Paiter Wagoh Pakob
  • Simone Athayde, autora do Painel Científico para a Amazônia e professora associada do Centro Latino-Americano e Caribenho e Departamento de Estudos Socioculturais e Globais, Universidade Internacional da Flórida
  • Nadino Calapucha, autor do Painel Científico para a Amazônia e responsável técnico pelo Programa de Defesa dos Defensores da COICA
  • Emma Torres, vice-presidente para as Américas e diretora do escritório de Nova York da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável e Coordenadora Estratégica do Painel Científico da Amazônia (SPA)
  • André Fernando Baniwa, autor do Painel Científico para a Amazônia e diretor do Departamento de Demarcação Territorial do Ministério dos Povos Indígenas do Brasil

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