Com 33,1 milhões de brasileiros passando algum grau de insegurança alimentar, como a ciência pode contribuir para remediar esta realidade? A Reunião Magna da ABC 2023 se debruçou sobre o tema na sessão plenária “Ciência para o combate à fome”, realizada no dia 11 de maio. Para um país que já conseguiu sair do Mapa da Fome, a situação de ter retornado a ele em 2022 é preocupante, já que fere gravemente um direito humano básico.
O quadro de insegurança alimentar apresenta vários níveis, sendo caracterizado pela condição de alguém que não consegue acesso pleno e contínuo a alimentos, e a fome é a forma mais grave. Por isso, a ciência não pode fugir do debate e precisa oferecer dados para políticas públicas que visam enfrentar o problema. A sessão contou com a mediação da diretora da ABC Mariangela Hungria, da Embrapa, com apresentações dos Acadêmicos José Oswaldo Siqueira (UFLA) e Ricardo Paes de Barros (Insper) e dos pesquisadores Antônio Buainain (Unicamp) e Dirce Marchioni (USP).
Potência agrícola vs. milhões de brasileiros com fome
A fome é um processo fisiológico e uma dinâmica social que acompanha a humanidade há centenas de anos. Os diferentes meios de produção agrícola foram resultado de manejo humano para conseguir responder à necessidade de alimentação. Desde técnicas em menor escala até a industrialização, as ciências agrárias evoluíram para conseguir alimentar uma população crescente – 7,8 bilhões de vidas, segundo o Banco Mundial.
“No contexto da fome, a agricultura começou para fins de sobrevivência, depois se organizou como atividade familiar e foi evoluindo para um grande negócio tecnológico”, afirmou o engenheiro agrônomo José Oswaldo Siqueira, professor emérito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). O mercado está cada vez mais globalizado e capitalizado, com atuação de grandes corporações. Segundo Siqueira, é um negócio que movimenta cinco trilhões de dólares por ano.
“Hoje produzimos alimento suficiente para dez bilhões de pessoas. Mas como elas têm acesso a esses alimentos? A fome não é questão de escassez alimentícia, mas sim de pobreza e desigualdades”, diz o pesquisador. Em sua visão, a adoção de técnicas eficazes para otimizar a produção é um dos caminhos para apostar em qualidade, alto valor nutricional e preservação do meio ambiente.
“No Brasil, enfrentamos o paradoxo de representar 10% da produção global de alimentos e ter, ao mesmo tempo, mais de 33 milhões de brasileiros com insegurança alimentar”, reflete Siqueira. Para se tornar um dos líderes mundiais em agricultura, o país investiu em diversas tecnologias, como automatização, edição genética e manejo do solo, mas a fome persiste. “Este cenário ocorre porque as pessoas não conseguem comprar comida. A fome é muito mais intensa entre as mulheres, as pessoas negras e as pessoas com baixa escolaridade”, alertou.
Para erradicar a fome no mundo, segundo um estudo de 2021 publicado no periódico Food Policy, seriam necessários 39 a 50 bilhões de dólares por ano até 2030. No Brasil, Siqueira estima que 1% da produção total de alimentos seria suficiente para erradicá-la: “Apenas na lavoura, perdemos 10% da produção. É mais barato erradicar do que remediar as consequências. A sociedade precisa de ações imediatas com políticas públicas, melhorias na distribuição e no acesso, bem como no preparo para possíveis colapsos nos sistemas de produção futuramente”.
A fome e suas várias faces
Mais da metade dos países enfrenta fome por escassez de alimentos. A afirmação é de Antônio Márcio Buainain, professor livre docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com ele, precisamos melhorar o diagnóstico sobre a fome e entendê-la de forma local, atentando para a realidade de cada país e sem generalizações.
“Quantos países do mundo não têm problema de produção de alimentos? Há diversos países com problemas de oferta e que importam de outras nações, o que agrava o acesso das pessoas aos alimentos necessários”, apontou. Portanto, a fome precisa ser tratada de acordo com o momento, a população e a localidade.
O segundo desafio, segundo Buainain, é combater desinformação, principalmente aquela produzida pela academia. “O debate sobre a fome e a insegurança alimentar vem da academia e há muitas narrativas que são pouco científicas”, alerta. Uma delas, segundo ele, é a crença de que a agricultura familiar produz cerca de 70% dos alimentos no Brasil. A importância desse tipo de produção não pode se basear em dados falsos, refutados desde 2015 em artigo científico, de acordo com o pesquisador. O índice rela seria de 25%, de acordo com o artigo referido.
Em sua opinião, as políticas de combate à fome que miram a erradicação da pobreza são importantes, mas não suficientes para enfrentar o problema em sua magnitude, já que a fome tem diversas facetas: “Temos a insegurança alimentar estrutural, mas há também aquela que se associa com as crises econômicas. A instabilidade, os conflitos, as guerras e crises do sistema financeiro requerem políticas públicas que apoiem as famílias de forma pontual, além das intervenções permanentes”.
Para acabar com a fome, a renda mínima é necessária
Para o Acadêmico Ricardo Paes de Barros – engenheiro eletrônico com mestrado em estatística e doutorado em economia -, professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, o problema da fome não é tão complexo no Brasil e é absurdo que ainda não tenha sido resolvido. Segundo dados apresentados por ele na sessão, o custo de uma das cestas básicas mais saudáveis é de R$ 664 reais por pessoa no mês.
“Para alimentar toda a nossa população com essa cesta, que é nutricionalmente equilibrada e que atende as necessidades calóricas, precisamos de R$ 679 bilhões de reais por ano. Na produção de alimentos, conseguimos cerca de R$ 789 bilhões por ano”, estima.
O problema está no poder aquisitivo da população, que é mal distribuído e ocasiona situações de pobreza extrema em diversas famílias. Outro aspecto que agravou o problema brasileiro foi o aumento dos preços. De janeiro de 2020 para cá, a inflação geral foi de quase 25%, mas o setor de alimentos e bebidas acumulou aproximadamente 40%.
Ainda assim, Barros nota que o cenário nacional foi melhor do que em outros países, justamente porque a produção de alimentos é muita alta por aqui: “Alimento no Brasil é mais barato do que em 70% dos países”. Ele explicou que se a agricultura brasileira não produzisse nos ritmos atuais, o preço dos alimentos no mercado nacional seria ainda mais alto, em função da desigualdade de renda no Brasil ser muito acentuada.
“O nosso problema é fazer com que os alimentos cheguem a quem precisa e que as pessoas tenham renda. Hoje em dia, o nosso programa de renda mínima, como o Bolsa Família, precisa ser maior que R$ 120 bilhões, e o novo orçamento atende essa expectativa, porque é da ordem de R$ 175 bilhões”, declarou Barros. O desafio, portanto, é fazer com que essa renda seja fiscalmente estável, contínua e que alcance quem precisa.
A qualidade da alimentação dos brasileiros
A comida representa valores culturais, religiosos e é motivo de sociabilidade. O mosaico da alimentação brasileira é constituído por tradições milenares, vindas de povos indígenas nativos, populações africanas, portuguesas e de outros países. Segundo a nutricionista e doutora em saúde pública Dirce Marchioni, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o padrão alimentar brasileiro vem mudando nas últimas décadas.
“Há cada vez mais participação de alimentos industrializados. Do início da década de 1970 ao início dos anos 2000, o brasileiro passou a comer mais carne, biscoitos, refrigerantes e menos arroz, feijões e raízes, por exemplo”, detalhou.
Com as mudanças nos hábitos, algumas tradições permaneceram e outras foram derrubadas pelo atual estilo de vida. Em dez anos, de 2008 a 2018, o arroz e o feijão prevaleceram, mas houve redução na frequência de consumo de alguns alimentos, como o próprio arroz e feijão, frutas, carne bovina, pães, laticínios e carnes processadas. A tendência é observada independentemente do sexo, da idade e da faixa de renda.
“Grande parte da população não tem uma alimentação de qualidade. Há baixa adequação do consumo de frutas, verduras e legumes, bem como leite e derivados. Ao mesmo tempo, temos ingesta excessiva de carne e gorduras saturadas”, afirma Marchioni.
Por outro lado, um dado que vem apresentando estabilidade, segundo o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), é a redução da frequência de menores de cinco anos com altura reduzida e magreza acentuada. Na avaliação de Marchioni, o resultado é fruto do aumento de crianças atendidas pelo Sisvan em conjunto com políticas públicas para essa faixa etária.
Por último, a pesquisadora mencionou uma tendência preocupante em todo o mundo, que é a obesidade. Não basta só combater a fome: a alimentação adequada endereça, igualmente, questões de saúde pública: “A obesidade está intimamente ligada à elevação de risco para doenças crônicas e pode ser considerada má nutrição se a pessoa não se alimenta bem e com qualidade”.