A humanidade estuda há muito tempo formas de se proteger contra doenças. Foi assim em 1796, quando um médico inglês formulou a primeira vacina contra a varíola. E a história se repetiu em 2020, no primeiro ano da pandemia de Covid-19, quando diversas vacinas foram formuladas em tempo recorde, entre elas as vacinas com a tecnologia do RNA mensageiro. Na primeira sessão plenária da Reunião Magna da ABC 2023, “Ciência básica na promoção da qualidade de vida e da saúde”, o Acadêmico Marcelo Bozza (UFRJ) mediou o debate com o microbiologista João Marques (UFMG), que foi membro afiliado da ABC entre 2011 e 2015, a ecóloga Mariana Vale (UFRJ) e a virologista Clarissa Damaso (UFRJ).

Marcelo Bozza, Mariana Vale, Clarissa Damaso e João Marques

Da origem da vida às terapias baseadas em RNA 

Quem não ouviu falar das vacinas com tecnologia de RNA mensageiro? O Ácido Ribonucleico – RNA, na sigla em inglês – é essencial para diversos processos celulares e é multifuncional. Ele está intimamente envolvido em todos os passos do fluxo de informação biológica, da fita dupla de DNA à síntese proteica. Na apresentação do Acadêmico João Marques, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), muito foi dito sobre o quanto a ciência tem explorado o potencial do RNA em intervenções terapêuticas. Se hoje ele é tão importante para salvar milhares de vidas, isto se deve à evolução natural da molécula e ao interesse da ciência em estudá-la.

“A múltipla identidade do RNA é o que o coloca na teoria principal sobre a origem da vida. Há 4 bilhões de anos, o início parece ter sido uma molécula especial, que pôde fazer cópias de si mesma por reações químicas a partir das condições locais até originar códigos genéticos mais complexos. Para existir vida na Terra, precisamos de uma unidade autorreplicativa”, explica Marques. 

Como tudo na biologia, esse RNA fez cópias imperfeitas, pois não existiria evolução com cópias idênticas. As cópias competiram entre si, uma prova para a teoria da evolução de Darwin. Durante a competição, alguns RNAs passaram a usar o mundo celular como hospedeiro, numa espécie de parasitismo. Esse tipo de relação a humanidade conhece muito bem, porque há uma série de microrganismos baseados em RNA. Nos últimos 200 anos, por exemplo, diversas pandemias foram causadas por vírus de RNA. O coronavírus responsável pela covid-19 é um deles.

“Como organismos tão simples são capazes de causar estragos tão grandes?”, indagou Marques. Para ajudar o corpo a enfrentá-los, pesquisas que investigam a multifuncionalidade do RNA vêm evoluindo desde a década de 1980, quando os primeiros testes com RNA mensageiro sintético foram conduzidos em laboratório. Mais um exemplo de ciência básica que acaba gerando ciência aplicada. 

No laboratório de Marques na UFMG, um dos esforços da equipe é identificar mecanismos antivirais, como os pequenos RNAs. Alguns seres vivos, como plantas e insetos, produzem essas moléculas quando contraem um microrganismo. É como se fosse um RNA específico originado a partir de uma resposta imune, que dirige a degradação dos RNAs de patógenos invasores.

Segundo o pesquisador, a capacidade das terapias baseadas em RNA vai muito além das vacinas e há muita pesquisa a ser feita: “Estas terapias estão aqui para ficar e precisamos aproveitá-las da melhor forma”.

O preço para evitar pandemias

 O desmatamento ambiental é um dos fatores de risco para a ocorrência de novas doenças. Segundo a ecóloga e Acadêmica Mariana Vale, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há um entendimento entre tomadores de decisão que temos um problema não pontual e que outras pandemias acontecerão.

O custo para reduzir a probabilidade de elas acontecerem é menor do que ter que lidar com elas assim que surgem, segundo a cientista. No total, 75% das doenças infecciosas emergentes vieram de animais, as chamadas doenças zoonóticas. Elas acontecem quando há patógenos que circulam principalmente em animais silvestres e, num determinado momento, a população humana começa a manifestá-los, seja por contato direto ou indireto com o animal. Caxumba, leishmaniose visceral, malária, febre amarela, dengue hemorrágica e covid-19 são apenas alguns exemplos.

“Temos observado um aumento muito grande dessas doenças a partir da década de 1960, o que tem muito a ver com aspectos do comportamento humano que aumentam os riscos e as chances de ocorrência. Em regiões com mais de 25% desmatamento, há acréscimo significativo na probabilidade de transmissão viral”, alerta a pesquisadora. 

Em um artigo publicado em 2020 com outros colaboradores, Vale observou que o custo para fazer um programa global de prevenção a pandemias gira em torno de 22 a R$ 31 bilhões de dólares por ano. “Desde 1918, 3,3 milhões de pessoas morreram por ano devido a surtos de doenças, com um gasto anual de 350 bilhões de dólares, um valor muito acima do necessário para a prevenção”, ressalta.

O antigo modelo brasileiro de prevenção ao desmatamento é um exemplo a ser seguido. De 2005 a 2012, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), houve redução de 70% no desmatamento da Amazônia. Desde 2013, a destruição florestal vem aumentando. Isto é perigoso porque, por lá, há diversas espécies de três animais – morcegos, primatas e roedores – que são eficientes em transmitir patógenos para seres humanos.

“No arco do desmatamento há mais de 25% de área desmatada, locais de alto risco, sobretudo se o desmatamento segue descontrolado. Outro fator de risco é a caça ilegal, um mercado que movimenta cerca de 35 milhões de dólares por ano”, afirma a pesquisadora.  

Para prevenir, precisamos investir igualmente no conhecimento sobre os patógenos que circulam na nossa fauna. “Temos uma lacuna de conhecimento enorme sobre os microrganismos locais. Amazônia e Cerrado apresentam um risco muito elevado e é por isso que precisamos estudar para sanar esse déficit”, orienta Vale.

Nos rastros da primeira vacina

A primeira vacina da história foi desenvolvida pelo médico inglês Edward Jenner, em 1796, contra a varíola. Um fato científico singular que mudou a história da saúde pública, sendo precursor para a erradicação da doença em vários países nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, o conteúdo da vacina ainda é um mistério, de acordo com Clarissa Damaso, virologista da UFRJ.

A pesquisadora estuda há tempos a família poxvírus, que reúne diferentes vírus de varíola que atacam vários animais – seres humanos, bovinos, equinos e outros. “A varíola humana é uma doença que produz pústulas por todo o corpo, é carregada de estigma e deixa as pessoas desconfiguradas, com marcas profundas na pele. Algumas cepas chegavam a 40 ou 50% de letalidade”, aponta Damaso.

A vacina de Jenner foi desenvolvida cem anos antes da descoberta do primeiro vírus, no fim do século 19. Ou seja, Jenner não sabia o que causava a doença, mas conseguiu observar a dinâmica da enfermidade. No dia a dia, ele constatou que ordenhadoras de vacas começaram a ter lesões parecidas como as causadas pela varíola humana, mas de forma menos virulenta. Elas também não adoeciam de varíola humana.

“Ele estabeleceu uma estratégia científica para tentar comprovar que a varíola bovina poderia proteger contra a varíola humana. De forma antiética, naquela época, ele retirou a lesão das mãos de uma ordenhadora e a inoculou numa criança de oito anos. Algumas semanas depois, este menino foi exposto ao vírus da varíola humana e ele não adoeceu”, detalha Damaso.

No fim do século 18, a vacina Jenneriana se espalhou pelo mundo. Jenner acreditava que a doença bovina estava protegendo contra a infecção que matava mais pessoas. Ao rastrear desde 2014 o vírus presente em vacinas anteriores a 1900, Damaso e outros colaboradores estão obtendo um achado e tanto: “A partir do sequenciamento genético do material de vacinas antigas compradas on-line ou de acervos museológicos, tivemos a primeira evidência científica de que o vírus de varíola de cavalos foi utilizado como componente da vacina antivariólica, bem como outros vírus que têm um material genético muito parecido”, aponta Damaso.

Os estudos, além de serem importantes para o entendimento sobre a evolução dos poxvírus, já estão pautando atualizações em livros de virologia e saúde pública.  Novas perguntas surgiram, como, por exemplo: será que alguma vez o vírus de varíola bovina foi utilizado na vacina Jenneriana? A resposta requer novas pesquisas, mas, ao que tudo indica, é pouco provável.