Os processos arbitrários e planejados de urbanização acirraram desigualdades e nem sempre foram estratégicos para o bem-estar comum – tanto da sociedade quanto do meio ambiente. Na terceira sessão plenária da Reunião Magna da ABC 2023, “Ciência e pesquisa na construção de cidades sustentáveis e includentes”, que ocorreu na manhã do dia 10 de maio, o debate mergulhou nos problemas reais e concretos de muitas cidades brasileiras, como mobilidade, urbanização desenfreada e o crescimento de assentamentos precários e sem infraestrutura adequada. Apresentaram suas perspectivas o engenheiro Eduardo Marques (USP), que mediou a sessão; a arquiteta com especialidade em planejamento urbano, Ana Cláudia Cardoso (UFPA); a arquiteta especializada em política habitacional e urbana, Rosana Denaldi (UFABC) e o engenheiro de transportes Ronaldo Balassiano (UFRJ).
A experiência amazônica para preservar o futuro
A produção de cidades é um negócio para muitas empresas. A pesquisadora Ana Cláudia Cardoso, da Universidade Federal do Pará (UFPA), falou sobre a experiência de cidades amazônicas para mostrar que, sim, é possível aprender com os povos e as aldeias da floresta, com uma mirada integrada e sustentável. Na visão dela, o olhar estereotipado para diversas cidades da região amazônica – uma região pobre, carente e cheia de conflitos – desconsidera a riqueza das formas de vivência que ainda resistem na região.
Ao longo dos anos, diversos processos autoritários de ocupação e urbanização negligenciaram de forma sistemática os impactos ambientais e os costumes locais, produzindo enormes desigualdades. “A urbanização e a industrialização acabaram se conectando, porque a indústria precisa de um alto nível de consumo. Sempre tivemos muita pressa em alcançar o progresso, de forma desrespeitosa, sem diálogo e sem reflexão. A Amazônia ensina outras narrativas de urbanização”, disse a pesquisadora.
Alguns estudos arqueológicos demonstram que a floresta foi manejada por diferentes povos, com diferentes tecnologias para uso do solo, da água e domesticação de animais. “Eles também constituíram uma organização espacial, porque existe um padrão entre os assentamentos que define um gradiente entre o centro da aldeia, a roça, o pomar e a floresta profunda, constituindo um urbanismo de baixa densidade numa área tropical. Isso poderia nos ajudar neste momento de crise ambiental”, afirmou Cardoso.
Nesta dinâmica, diferentes atores se articulavam, como o rio, as vilas, a floresta e o campo. A pesquisadora observou que, no Brasil, essa forma de existência resistiu durante décadas e foi interrompido brutalmente no processo de urbanização da década de 1960, quando, em suas palavras, “o governo federal iniciou um processo de colonização que rompeu com tudo”.
Para a especialista, as políticas públicas continuam oferecendo soluções padronizadas de ocupação e urbanização, como o programa “Minha Casa, Minha vida”. “A cidade é a ponta do iceberg, e existe uma rede invisível de pessoas e formas de vida que a sustenta. Esta rede está desaparecendo junto com a floresta. Neste jogo, as periferias já nascem distantes das cidades globais, enquanto a urbanização extensiva polui solos, rios, destrói ecossistemas e altera microclimas, forçando as pessoas a se mudarem para as periferias e criando bolsões de pobreza e de riqueza”, alerta Cardoso.
De acordo com ela, só teremos futuro e a realização das metas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável olhando para o passado e questionando valores hegemônicos, violentos e racistas: “A floresta viva oferece água e ar para todo o país e precisamos preservá-la, bem como as formas locais de existência”.
Por mais estudos sobre as favelas, para as favelas
Em toda cidade, há problemas de moradia. Os assentamentos precários, como as favelas, são alternativas para pessoas que não têm acesso ao mercado imobiliário formal. Trata-se de um problema produzido pelo Estado e a iniciativa privada, segundo a arquiteta Rosana Denaldi, da Universidade Federal do ABC (UFABC).
As cidades atuais são insustentáveis porque o padrão de urbanização está continuamente produzindo espaços desiguais, de acordo com a pesquisadora. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dados recentes pré-apurados para o Censo Demográfico 2022 indicam que cerca de 16 milhões de brasileiros vivem em favelas, com um total de 6,6 milhões de domicílios. Os números, segundo Denaldi, são subdimensionados.
“Essa situação é ainda mais grave porque muitos desses assentamentos se localizam em áreas de proteção ambiental ou com alto risco de deslizamento de terras”, advertiu. A população que habita assentamentos precários sofre ainda mais com as mudanças climáticas, porque os temporais intensos tendem a aumentar, bem como os deslizamentos – como o que ocorreu no litoral paulista no início deste ano.
A resposta do poder público vai sempre numa mesma direção: construir mais casas para a população, o que não resolve o problema central de moradia adequada para a quem está em situação de vulnerabilidade. Para piorar a situação, muitos assentamentos precários estão isolados e pouco integrados aos espaços centrais das cidades.
“Essas condições de segurança, insalubridade da moradia, pouca mobilidade, falta de integração a serviços e baixa qualidade da infraestrutura são pouco capturadas por pesquisas nacionais, assim como os riscos ambientais”, explica Denaldi. Por isso, ela alerta que a agenda de pesquisa básica e conceitual sobre a organização das favelas e outros assentamentos precários precisa ser explorado, a fim de reverter os achados urgentemente para políticas públicas.
Mobilidade urbana: fundamental para a sustentabilidade
Todo mundo sabe que é difícil ter um bom serviço de transporte numa cidade e, certamente, cada pessoa tem uma opinião sobre a mobilidade urbana. O engenheiro de transportes Ronaldo Balassiano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentou dados sobre aspectos da mobilidade urbana no país e afirmou que um bom sistema de transporte é fundamental, mas ações coordenadas e estratégicas são necessárias.
A mobilidade abraça os objetivos três, onze e treze da Agenda 2030, relacionando-se à saúde dos moradores, à sustentabilidade das cidades e ao compromisso de não aumentar o clima do planeta. “Tivemos um aumento considerável da frota de carros. O gerenciamento da mobilidade passa por uma série de medidas, como privilegiar os transportes coletivos e ativos, bem como o uso racional do carro”, afirma Balassiano.
De 2008 a 2018, dados do Observatório das Metrópoles e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que a frota de veículos individuais saltou de 19,6 para 31,5 para cada 100 habitantes – um aumento de quase 50%. Para solucionar o problema, medidas estruturantes, comportamentais e regulatórias são fundamentais.
Neste sentido, de acordo com o Acadêmico, uma série de instrumentos nacionais de políticas públicas foi lançada, como a Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, e o Estatuto da Metrópole, de 2015. Ainda assim, há práticas incipientes e pouca articulação entre ações públicas e privadas: “A cada governo, seja no nível federal, estadual ou municipal, os projetos mudam e isso não necessariamente traz melhoria para a questão da mobilidade”, reforça Balassiano.
Para resolver o impasse, ações pontuais precisam levar em consideração os estudos acadêmicos e as necessidades reais de uma cidade num determinado momento. Para além do pontual, as esferas governamentais precisam dialogar e começar a implementar soluções que visam o cumprimento da Agenda 2030.
Desigualdades sociais, profundas e articuladas, requerem mais estudos
O mediador da sessão Eduardo Marques, da Universidade de São Paulo (USP), finalizou os debates contextualizando as desigualdades sociais no seio das cidades urbanas. “Não é possível fazer desenvolvimento sustentável sem enfrentar as desigualdades. As cidades combinam ou implicam pesquisa básica e aplicada para a promoção de políticas públicas”, afirma Marques.
Segundo ele, há cinco dimensões que precisam ser consideradas para a agenda de pesquisa urbana recente: a pobreza, a precariedade urbana, as desigualdades sociais, o acesso a serviços e a segregação espacial. Especificamente sobre a segunda dimensão, que abarca a precariedade habitacional e urbana, Marques pontua que há um acúmulo de conhecimentos para caracterizar o fenômeno e as soluções.
“Mas precisamos entender melhor a diversidade das condições de precariedade, porque isso pode alimentar a customização de políticas mais diversificadas e aderentes às situações locais”, afirmou. “Será que as favelas e os assentamentos precários se assemelham em todo o território nacional, bem como as formas de vida e os níveis de pobreza?”.
Na visão de Marques, há condições urbanas, ambientais e sociais que são diversas e que se encaixam dentro do pacote da precariedade. “Cada uma dessas realidades pede um entendimento e solução específicos”, avalioou. Para tanto, as desigualdades também precisam do olhar dos marcadores sociais, como gênero, raça, idade, orientação sexual, região e outros, pois ainda há poucos estudos que abracem a interseccionalidade.