Escrever as bases fundamentais de uma nova época geológica não é tarefa trivial. Para o pesquisador Colin Waters, professor honorário na Escola de Geografia, Geologia e Meio Ambiente da Universidade de Leicester, no Reino Unido, diversos marcadores e sinais vêm apontando que, sim, os seres humanos estão alterando de tal forma a vida na Terra e a biologia do planeta que a época do Antropoceno é uma realidade que precisa ser encarada.
Na linha do tempo planetária, os geólogos precisam dizer o que representa cada unidade temporal. Geralmente, de uma unidade para outra – o que pode compreender milhares de anos –, é possível identificar grandes mudanças no globo terrestre. Por exemplo, extinções em massa de espécies, como a dos dinossauros.
O termo Antropoceno veio do químico neerlandês Paul Crutzen, prêmio Nobel de química de 1995. Em 2002, ele escreveu um artigo de uma página para a Nature afirmando que seria apropriado determinar o Antropoceno como uma complementação do Holoceno, a época geológica mais recente que começou há doze mil anos. Crutzen ainda disse que o adendo iniciou na última parte do século 18 e que, nos últimos três séculos, houve uma escalada dos efeitos humanos sobre o meio ambiente.
A sugestão dele seguiu num rastro de pólvora. Hoje em dia, este artigo conta com mais de 125 mil acessos e 2 mil citações. No entanto, definir o Antropoceno é um terreno de disputa e incertezas na academia e requer marcadores científicos criteriosos. Foi justamente isso que Colin Waters apresentou em sua conferência na Reunião Magna 2023 da Academia Brasileira de Ciências.
Depois de alguns anos do artigo de Crutzen, Waters publicou em 2016 um estudo robusto com outros colaboradores detalhando as evidências científicas para uma constatação diferente: o Antropoceno é distinto do Holoceno – não uma complementação – em termos estratigráficos e funcionais, ou seja, na composição de diferentes camadas de rochas e numa dinâmica de funcionamento própria.
“O Antropoceno começou recentemente, em meados do século 20. Isso é muito difícil para os geólogos compreenderem, porque estamos acostumados a lidar com rochas com milhões de anos. Para começar a falar sobre uma época de apenas 70 anos é difícil, mas há evidências”, afirma o pesquisador. Em Leicester, ele lidera o Grupo de Trabalho Antropoceno, que desenvolve pesquisa e caracterização do Antropoceno como um período geológico. Sua área principal de pesquisa é a estratigrafia do Carbonífero e Antropoceno, mapeando, quantificando e identificando marcadores para depósitos de sedimentos provenientes da atividade humana.
Para começo de conversa, a população global triplicou desde 1950. E isso é fundamental para entender o fenômeno que Waters chama de rápida aceleração. A simples presença humana não é suficiente para explicar a nova época, mas, sim, o fato de que diversas atividades e fenômenos sociais se intensificaram e estão afetando a biologia e a geologia planetárias de forma avassaladora. A comparação de algumas taxas com séculos anteriores é mais uma forma de obter dados para distinguir o Antropoceno do Holoceno.
“A combustão de hidrocarbonetos passa por essa rápida aceleração: mais de 90% das reservas de óleo, carvão e gás já exploradas foram queimadas a partir de 1950”, detalha Waters. Soma-se a isto o fato de que o uso de energia desde 1950 é cerca de 1,6 vezes maior do que em toda a história humana anterior.
Em 2021, segundo o pesquisador, as emissões antropogênicas de gás carbônico chegaram a cerca de 36 bilhões de toneladas. Em comparação a fontes naturais de emissão, como os vulcões, estes produziram cerca de 200 milhões de toneladas por ano. Trata-se de mais um indício do quanto os seres humanos estão sobrecarregando processos naturais.
De acordo com o artigo de 2016, é possível observar indicadores do Antropoceno em sedimentos lacustres recentes, com assinaturas bem diferentes das do Holoceno. Numa amostra de sedimento da Groenlândia, os pesquisadores escrevem: “o recuo da geleira devido ao aquecimento climático resultou em uma transição estratigráfica abrupta de sedimentos pré-glaciais para matéria orgânica não glacial, demarcando efetivamente o início do Antropoceno”.
Os achados nos sedimentos mais recentes são significativos para plásticos, cinzas pulverizadas provenientes da queima de combustíveis, radionuclídeos, metais, pesticidas e, ainda, indicativos de um aumento das concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera terrestre.
“Depósitos antropogênicos recentes contêm novos minerais e tipos de rocha, refletindo a rápida disseminação global de novos materiais, incluindo alumínio elementar, concreto e plásticos que formam “tecnofósseis” abundantes e em rápida evolução”, escreve Waters, primeiro autor do estudo, em colaboração com outros pesquisadores.
Além dos sinais geológicos, aspectos biológicos também contam sua própria história. Por exemplo, o aumento do transporte de espécies vegetais e animais entre continentes, devido às navegações, fluxos migratórios e tratados comerciais, o que propicia o estabelecimento de espécies invasoras em ecossistemas até então em equilíbrio.
Outro sinal é a redução drástica no número de indivíduos de uma determinada espécie animal ou vegetal, o que tem se intensificado a partir da ação humana sobre o planeta. Segundo a Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas, mais de 42,1 mil espécies se encontram ameaçadas de extinção, como anfíbios (47%), tubarões e arraias (37%), e mamíferos (27%).
No futuro, se o comportamento atual permanecer, alguns indicadores como a temperatura global podem se regular sozinhos – no entanto, sem nunca mais voltar aos estágios pré-industriais. Por outro lado, alguns podem se tornar um legado permanente e irrecuperável, como a extinção de espécies, o que mudaria drasticamente a vida na Terra. Nas palavras de Waters, “estamos em algum lugar do Antropoceno sem saber onde está a trajetória para o futuro”.