Os participantes do debate Eurico Arruda, Helena Nader, Pedro Hallal e Pedro Vasconcelos
A 1ª Sessão Temática da Reunião Magna da ABC 2021 aconteceu na sexta-feira, 8/10. Os cientistas Pedro Hallal (Universidade de Pelotas, membro afiliado da ABC para o período 2008-2013), Pedro Vasconcelos (Instituto Evandro Chagas, membro titular da ABC) e Eurico Arruda (Universidade de São Paulo) foram convidados para debater o tema “Os Vírus e os Seres Humanos”, dando sequência à palestra de Marcia Castro (Universidade de Havard) durante a 1ª Conferência Magna. A sessão foi moderada pela vice-presidente da ABC, Helena B. Nader.
Os graves erros do Brasil no combate à pandemia
Pedro Hallal apresentou alguns conceitos fundamentais que ocasionaram o êxito da pesquisa Epicovid-19, maior estudo epidemiológico sobre a COVID-19 no Brasil, que abrangeu mais de 130 municípios. A pesquisa já estava em vigor dois meses após a primeira morte pela doença, apontando um único resultado: desigualdade. A população indígena tem 4,7 vezes mais chance de contrair a doença do que a população branca, enquanto negros tem o dobro. Hallal destaca que esse indicativo não tem associação com razões biológicas e genéticas, e sim razões sociais e culturais, como uma maior dificuldade no acesso a outras vacinas.
O epidemiologista apontou os altos números de infecção e de óbito pela doença, que poderiam ter sido evitadas caso o governo tivesse assumido uma postura rígida. “Comemorar o número de pessoas curadas [o que foi feito pelo Governo Federal] é o mesmo que comemorar o único gol do Brasil no 7×1 contra a Alemanha”, comparou Hallal, que foi membro afiliado da ABC no período de 2008 a 2013.
O índice de mortalidade acumulada por COVID-19 no Brasil é de 2800 mortes a cada 1 milhão de pessoas – um dado extremamente preocupante em comparação com a situação global, na qual houve 600 mortes a cada 1 milhão de pessoas. O Brasil segue sendo recordista em mortes por diversos outros pontos de vista, incluindo entre os países do BRICS e entre os dez países mais populosos do mundo. “A única explicação para isso, do meu ponto de vista, é que o Brasil está respondendo errado à pandemia desde o primeiro dia”, reiterou Hallal. O país tem 2,7% da população mundial e 12,9% das mortes totais por Sars-Cov-2.
Outro fato levantado por Hallal é a maior incidência de casos de COVID-19 em cidades onde o atual governo recebeu maior porcentagem de votos em 2018. “É possível que haja negacionismo de várias doenças. Câncer, pressão alta… Mas no caso da COVID-19, uma pessoa não-negacionista que está em um lugar com maior número de negacionistas tem mais risco de se contaminar”, afirmou Hallal. Sobre a forma como as autoridades conduziram a pandemia no Brasil, o professor não hesitou: “Não tem como analisar todos esses dados apresentados aqui e não tornar isso algo pessoal. Olhando todos os números, eu não tenho dúvidas de que o Brasil, tinha que estar pelo menos na média mundial [tendo menos de 600 mortes a cada um milhão de pessoas]. Se estivesse, pelo menos 480 mil pessoas estariam vivas, com seus familiares e seguindo suas vidas.”
O perigo das arboviroses
Segundo Pedro Vasconcelos, membro titular da ABC, o estudo das arboviroses existe desde 1954. Ao longo de quase 70 anos, foram identificados mais de 220 tipos de arbovírus, sendo 37 deles associados a doenças. Oito dessas patologias são epidêmicas no Brasil: chinkugunya, dengue, febre amarela, zika, encefalite de Saint Louis, mayaro e oropouche, sendo as duas últimas originárias da Amazônia.
Do total de arboviroses encontradas, 197 delas são originárias da região Amazônica – principalmente no estado do Pará. Estudar esses patógenos é uma missão difícil para os cientistas, que precisam enfrentar condições desfavoráveis para realizar a captura de insetos e o isolamento dos vírus. “O impacto das epidemias de arboviroses tende a aumentar junto com o aumento dos custos para combatê-las. A globalização e as mudanças ecológicas causadas pelos humanos resultou na emergência de novas arboviroses e na reemergência de outras, já conhecidas”, disse.
Entre as principais doenças apresentadas pelo cientista, dois chamam atenção: o oropouche, que é o vírus brasileiro com maior potencial de causar epidemias. Atualmente, as estatísticas apontam para mais de 500 mil infecções em humanos, mas sem óbitos associados. No entanto, a meningite é uma das consequências da doença. No ciclo urbano, o principal vetor é o mosquito Culicoides paraensis.
A febre amarela é outra doença cujo número de casos cresceu rapidamente em um curto espaço de tempo: entre 1980 e 2016, houve apenas 797 casos da doença em território nacional; entre 2016-17, houve mais de 2600 casos. Segundo Vasconcelos, “o aumento de 2 graus na temperatura em relação à média histórica e aumento das chuvas resultou nessa epidemia, uma das maiores já vividas na região de Goiás, Minas Gerais e Espírito Santo.” Essa reemergência da doença está associada a um novo cenário viral: as matas ciliares que acompanham os córregos e a migração de macacos estavam servindo de transporte para o vírus, que chegou à cidade de São Paulo pelo Parque Estadual da Cantareira.
Vasconcelos chama atenção para o impacto humano no alto número de casos dessas doenças: “A Amazônia tem um ecossistema que favorece a ocorrência dessas viroses, principalmente devido à diversidade de mosquitos e insetos. O desmatamento, a invasão do homem nesses ecossistemas nativos e as mudanças climáticas aceleram a epidemia das arboviroses. É preciso controlar as ações enquanto ainda tempo.”
Biomas virais no organismo humano
Até os dias de hoje, a ciência descobriu mais de 7 mil vírus – a ponta de um iceberg que prevê mais de 30 mil a serem descobertos. A essência do vírus é o parasitismo: ou seja, unir sua bioquímica ao metabolismo de uma célula hospedeira, resultando na sua maturidade e evolução. “Até hoje, ainda há esse debate se vírus é um organismo vivo ou não. É um debate infundado, a definição de vida é limitada”, explica o Eurico Arruda, o terceiro palestrante da sessão.
Os vírus participam ativamente da evolução das espécies na Terra, estando presentes em todos os organismos, incluindo protozoários, amebas e até mesmo os próprios vírus. O plâncton marinho apresenta uma grande diversidade de vírus. Recentemente, foi descoberto uma estrutura que funciona como um termostato, auxiliando no equilíbrio da temperatura do planeta. Segundo Arruda, “a fantástica engenharia genética dos vírus pode ser útil para a indução de fotossíntese em seres clorofilados ou não clorofilados para salvar o ambiente marinho.”
No corpo humano, estão presentes em forma de retrovírus na placenta, fazendo com que o corpo da mãe não rejeite o feto, e também em neurônios.
Mas como surgem os vírus patogênicos, que desencadeiam epidemias? As novas patologias surgem de um sistema imunológico com pouca capacidade de inflamação, como os morcegos. Esses animais são capazes de agregar vários vírus em seus corpos e não desenvolver nenhuma doença, facilitando a recombinação dos micro-organismos presentes em seu corpo. Com o desmatamento, esses animais precisam procurar novos lugares para habitar e alguns desses patógenos, por serem mais virulentos, podem cruzar a barreira de espécies e aderirem ao corpo humano como novo hospedeiro.
Pesquisas recentes apresentadas por Arruda apontam que o próprio corpo humano possui concentração de viromas – ou seja, populações virais – em alguns lugares específicos. Uma análise apontou que 97% das amígdalas de crianças retiradas através de cirurgias possuíam genomas virais de resfriado comum e de outras inflamações respiratórias, enquanto os pacientes eram assintomáticos. Segundo o pesquisador, cada vez que um vírus atravessa uma barreira dessas pode ser um sinal evolutivo, considerando um subconjunto de vírus. “Podemos estar fazendo coleções virais dentro de certos tecidos do corpo. Os vírus vieram de um organismo onde eles já estiveram adaptados, e não está entre os seus objetivos matar seus novos hospedeiros. O objetivo é a adaptação”, explicou Arruda.
Para o professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, o surgimento das novas epidemias como resultado do desmatamento é um alerta: “Quem vai acabar somos nós, a humanidade, a flora e a fauna e não o planeta. É o que a gente busca destruir todos os dias, em consequência da desmedida ambição capitalista que não cessa em querer destruir mais para fazer o capital reproduzir.”
Debate
O vice-presidente da ABC para a região São Paulo, Glaucius Oliva, participou do debate provocando os palestrantes sobre o uso do RNA como uma ferramenta rápida para a elaboração de vacinas de agora em diante. Ele também defendeu a criação de um imposto para pesquisa sobre as consequências do desmatamento para o agronegócio (um dos mais graves do país) e para a saúde.
Arruda explicou que, no caso do Sars-Cov-2, já havia muito conhecimento deles por conta do MERS-CoV e do Sars-Cov. Ele sugeriu um alinhamento com a bioinformática para a criação de um banco de dados de sequências virais vindas de morcegos e de árvores, para já tê-los no caso de uma possível pandemia: “A próxima pandemia pode não vir da China, pode vir do interior da Bahia ou da Amazônia”, alertou. Vasconcelos complementou afirmando que é indispensável a coordenação de ciência e tecnologia para aplicação em saúde no Brasil.