Leia artigo do membro afiliado da ABC Daniel Martins-de-Souza, professor de bioquímica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), líder do laboratório de Neuroproteômica e pesquisador do Experimental Medicine Research  Cluster (EMRC), postado no Jornal da Unicamp, em 10/3:

Temos por definição, como seres humanos, a capacidade de gerar, acumular e transmitir conhecimento. Esta definição é (ou deveria ser) a principal marca de nossa espécie frente aos outros seres com os quais dividimos este planeta (apesar de, às vezes, não parecer).

Para domar o conhecimento, desenvolvemos o método científico: acumulamos informação (obtemos dados) usando ferramentas desenvolvidas ao longo de nossa existência e ao analisar tais informações, aprofundamos nosso conhecimento. Isso é a ciência, uma atividade que ouso dizer ser estritamente humana, pelo menos a complexidade que conseguimos atingir, frente a outras espécies terráqueas.

A sabedoria tem a capacidade de propiciar uma vida melhor aos seres humanos. Isso acontece, por exemplo, quando uma vacina é desenvolvida, ou quando encontramos uma maneira sustentável de produzir energia; ou até quando pretende-se usar créditos de carbono para salvar vidas menos favorecidas.

Apesar da capacidade e do poder do conhecimento, nem sempre conseguimos usá-lo para tornar nossa vida melhor e mais justa; isso tem uma série de motivos, que também faz parte do complexo arcabouço que é cada um dos espécimes dos Homo sapiens. Mesmo com tanto conhecimento e capacidade de mudança, as desigualdades sociais que vemos e sentimos todos os dias, ainda mais num país extraordinariamente complexo como o Brasil, é sensível, visível e palpável.

Ao passo que nossa espécie é plenamente capaz de produzir e transmitir conhecimento, fazemos isso de maneira pouco eficiente, se olharmos para o planeta como um todo. O acúmulo de informações e conhecimento em todos os campos de nossa vida são profundos e significativos: conseguimos conversar com outro ser humano do outro lado do planeta, com um aparelho que cabe na palma das nossas mãos; sabemos plantar em extensas áreas, provendo alimento para bilhões de seres humanos. Conseguimos nos locomover ao redor do globo, com uma máquina extremamente pesada que voa segura e rapidamente. Somos capazes de entrar dentro da célula de qualquer ser vivo do mundo e editar seu genoma.

Mas, como espécie, falhamos numa das mais simples tarefas que existem: transmitir conhecimento. Falhamos em ensinar às pessoas o conhecimento mais elementar possível para se viver uma vida digna. Não ensinamos adequadamente à nossa própria espécie as bases elementares da matemática, das ciências sociais e das ciências da vida, que trazem consigo muitas das noções de saúde, apesar de já sabermos tanto sobre isso tudo.

Seres humanos tem uma outra característica bastante curiosa: somos capazes de diferenciar conceitos concretos e abstratos. E como seres genericamente lógicos, tendemos a entender melhor o que nos é concreto e ter maior dificuldade em abstrair o que não temos base concreta para entender.

Fazendo uso do tal método científico, tentei nos parágrafos anteriores construir um raciocínio para abordar uma pergunta muito simples do nosso mais atual cotidiano: por que, mesmo com tanta informação, disponível em tantos canais, de tantas maneiras, algumas pessoas ainda insistem em não usar uma simples máscara? Eu não estou convencido de que, em geral, seja simplesmente um posicionamento político. Sim, alguns fazem isso para se posicionar politicamente, mas acho que isso é uma imensa minoria. A minha hipótese para a maior parte das pessoas que não usam máscara é que, enquanto para alguns “usar a máscara” é um conceito concreto, pra outras este é um conceito abstrato. Sendo um conceito abstrato, as pessoas não entendem sua finalidade. Sem compreender sua finalidade, não usam. Aliás, na maior parte das vezes usam, mas de maneira errada.

E como um ato tão simples como usar uma máscara pode ser um conceito tão complexo para as pessoas que o torna abstrato? Porque à elas não foi dado um arcabouço de informações necessário para compreender sua finalidade. Porque falhamos, como espécie, em transmitir o conhecimento de maneira justa e adequada.

Neste planeta, o conhecimento diferencia as pessoas socialmente: quanto mais se estuda, quanto mais se sabe, em teoria, melhores posições sociais se atingem. Melhor se lidera (ou domina) outros espécimes e até outras espécies. No planeta Terra, o conhecimento é um tesouro, que torna melhor a vida do indivíduo. Mas definitivamente não torna melhor a vida coletiva. E quando a construção social é pautada em não fornecer conhecimento para as pessoas de maneira igualitária, ou até em disseminar a ignorância (em seu sentido literal) o resultado é devastador, inclusive aos detentores do conhecimento.

O resultado desta estratégia é termos pessoas que simplesmente não compreendem o porque precisam usar a máscara, ou como se deve usá-la adequadamente. E desta forma, a campanha desesperada do “use máscara” tem alcance limitado. Quando se dá um passo a frente com tal campanha em todos os telejornais, estampar nas revistas, cartazes no transporte público, memes, hashtags, nossas lideranças jogam a campanha 5 passos para trás ao não endossar este conceito, saindo às ruas sem a máscara, abraçando as pessoas. Mas acima de tudo, não há estratégia de comunicação que torne um conceito abstrato em concreto num estalar de dedos. Não há campanha emergencial que salve o país da falta de educação, que está incrustada na nossa sociedade. Só a educação salva. E não é educar com uma frase ou hashtag: é a educação de base, formal. Aquela que mencionei acima que falhamos em passar. Aquela construída em todos os conceitos que já temos! Só precisamos passar às pessoas.

Logo, a culpa é de quem detém o conhecimento? Lógica e historicamente, a resposta é sim. Mas esta é uma percepção de longa data. A dominação por aqueles que detêm o conhecimento tem acontecido ao longo da história e não mais é novidade pra ninguém. Assim, maliciosamente percebeu-se o culto à ignorância como uma maneira eficiente de influenciar e até de dominar. O líder aproxima-se do liderado por uma afinidade de comportamento e não mais pela imposição arrogante do conhecimento. E é neste momento que usar a máscara torna-se um posicionamento político.

Ao perceber que o “use máscara” é para muitos cidadãos um conceito abstrato, pergunto-me o quanto tenho conseguido comunicar às pessoas o que faço na universidade. Mesmo com todas as louváveis campanhas de disseminação do conhecimento, sobre as quais temos investido, será que a mensagem está chegando? Construímos um mundo no qual o conhecimento científico ficou muitíssimo distante da compreensão das pessoas. Ao passo que temos neste exato momento uma sonda em Marte vasculhando aquele planeta, vejo neste mesmo momento na rua da minha casa uma mulher vestindo um saco de arroz com todos os pertences de sua vida sobre sua cabeça (literalmente). O conhecimento que é uma das coisas mais maravilhosas que o Homo sapiens é capaz de produzir, cria uma distância enorme entre seus próprios espécimes (sem contar os reflexos que sofrem as outras espécies deste planeta).

Precisamos re-aproximar as pessoas através do conhecimento. Educar a todos, igualitária e justamente, para diminuir as desigualdades. Destruir o culto à ignorância como forma de dominação e da mesma forma nunca mais usar o conhecimento para tal. Enquanto isso, vamos tentando passar por esta pandemia como uma dura tempestade à qual se seguirá a calmaria. Mas não podemos ignorar o alerta que um simples “use máscara” nos trás: é urgente e imperativo que os tomadores de decisão neste país entendam que popularizar o conhecimento vai tornar suas próprias vidas e a vida de todos mais justa; nosso país mais próspero. Até para os egoístas, a vida será melhor, se todos forem iguais.

Esta pandemia trouxe uma faceta diferente do que geralmente acontece em muitas ocasiões de emergência, nas quais os problemas enfrentados pela maior parte da população não atingem as classes mais altas, em uma sociedade desigual como a brasileira. Um exemplo simplório: uma tempestade desaloja os habitantes de uma favela, mas não afeta minimamente os moradores de um prédio de bom padrão social. Com a pandemia, hoje, dia 07 de março de 2021, temos em muitos lugares do Brasil, 100% das UTIs lotadas. Isso coloca todas as brasileiras e todos os brasileiros no mesmo patamar: nesta exata data, não importa se você é rico ou pobre; bom ou ruim; preto ou branco; estamos todos no mesmo barco, passando pela mesma tempestade. E não tá bom pra ninguém.

Infelizmente é só quando a água bate “na cintura” das classes mais favorecidas que as coisas mudam. Que assim seja. Mas que a maior lição seja a da solidariedade e da compreensão concreta agora dos tomadores de decisão de que a igualdade social é benéfica a tod@s e que cultivar o conhecimento é a única saída. Cultivar a ignorância nunca é o caminho.

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