RIO — Como usar a terra de uma maneira mais eficiente e sustentável e, ao mesmo tempo, produzir biocombustíveis e comida para a população do nosso planeta, que não para de crescer e deve chegar a 10 bilhões até 2050 ?
— Ou a gente descobre como fazer isso de forma sustentável ou esquece, estamos todos fritos, e já era — resume Paulo Eduardo Artaxo Netto, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.
Artaxo é um dos 108 pesquisadores de 52 países que assinam o novo relatório que será lançado nesta quinta-feira pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU para o assunto, em Genebra, na Suíça.
No extenso documento, são listadas pesquisas recentes sobre o uso da terra e suas causas e efeitos nas alterações do clima global. Pontos observados são a desertificação, a degradação do solo e seu uso sustentável, a segurança alimentar e as emissões de gases de efeito estufa em ecossistemas terrestres.
— Enquanto os outros relatórios do IPCC tratavam apenas da redução da emissão causada pelos combustíveis fósseis, este é o primeiro que coloca a questão do uso da terra na agenda da política científica de mudanças climáticas globais — explica o físico, para quem o documento deixa “claro que temos que frear o desmatamento das florestas tropicais, descobrir maneiras de produzir alimentos e carne com menor emissão de gases de efeito estufa e menor impacto ambiental, além de produzir biocombustíveis de maneira eficiente”.
Na opinião de Artaxo, o relatório “caiu como uma luva” para o Brasil neste momento em que se discute o aumento nas taxas de desmatamento da Amazônia:
— O Brasil pode olhar este relatório do IPCC como uma oportunidade para o agronegócio, pra produção de biocombustíveis e recomposição florestal. E sobretudo (é uma oportunidade) para mudar a atual visão muito negativa que o Brasil está tendo internacionalmente como um total destruidor de floresta, que basta anunciar a taxa de desmatamento para causar uma crise institucional enorme. Não é um bom negócio para o Brasil, por razões óbvias.
Nesse sentido, para Suzana Kahn Ribeiro, vice-diretora da Coppe/UFRJ e membro do IPCC, o Brasil pode trilhar uma trajetória alternativa e eventualmente se tornar líder.
— Penso num modelo de desenvolvimento tropical em que a gente use bastante a nossa biodiversidade, mas sob a perspectiva das ciências biológicas, que têm um valor agregado muito alto, e não na lógica do extrativismo, que é a que vigora atualmente. Seria uma espécie de “eco-industrialização” — detalha a pesquisadora, para quem a meta de aumentar a temperatura global em apenas 1,5ºC até o fim do século é pouco factível: — Temos que atuar na questão da adaptação. E aí, novamente, um país do tamanho e recursos do Brasil tem papel fundamental nessa estratégia.
Segundo o relatório, hoje o desmatamento corresponde a cerca de 10% das emissões de gás carbono no ar. O Brasil, diz o documento, perdeu 55,3 milhões de hectares de 1990 até 2010. E essa situação pode transformar a região amazônica, por exemplo, em uma potencial emissora de gás carbono, em vez de ser o tradicional ponto de absorção de CO2.
“O desmatamento pode ter efeitos cascata e maiores que os previstos. Por exemplo, se mais de 40% da floresta amazônica for desmatada, corremos o risco de passar de pontos irreversíveis que comprometeriam toda a sua extensão”, cita um trecho do relatório, que conclui que “projeções sugerem que o risco de ultrapassar esses limiares aumentam com as temperturas elevadas”.
Para a oceanógrafa e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Regina Rodrigues, também autora do documento, o relatório deixa evidente que o custo econômico de não agir contra as mudanças climáticas será muito mais alto do que os sacrifícios implicados na implementação de novas políticas.
— Quanto mais demorada for essa ação, mais caro ficará para o mundo. O custo social, que também tem o lado econômico associado, é muito alto — enfatiza a pesquisadora.
Segurança alimentar é preocupação
Alimentar uma população mundial que vai chegar a 10 bilhões de pessoas na metade do século XXI será uma missão cada vez mais desafiadora diante de um cenário de pressões sobre a terra e o clima, conclui também o estudo. Só na China, por exemplo, os campos de arroz precisarão crescer em 20% para dar de comer à população do país até 2030.
E, embora os países menos desenvolvidos, concentrados nos trópicos, na África e na Ásia, estejam cada vez mais próximos de enfrentar a diminuição na oferta de alimentos e o aumento da fome em decorrência do aumento das temperaturas, as nações mais desenvolvidas não ficarão livres de impactos negativos.
— Muitas vezes as nações mais ricas não dão muita atenção para o problema. Não passarão fome, mas os preços dos alimentos subirão, o que deve resultar em uma piora considerável na qualidade nutricional da alimentação. Consequentemente, problemas como diabetes e obesidade se tornarão recorrentes — pontua Regina, chamando a atenção para o efeito em cadeia desses desdobramentos na saúde e nos índices econômicos.
O consumo de carne é outro ponto abordado, ainda que lateralmente. Segundo Paulo Artaxo, as duas bilhões de pessoas de países africanos e do Sudoeste da Ásia que terão um incremento em suas rendas nas próximas décadas “vão começar a comer carne como aconteceu com os chineses”.
— O relatório não faz recomendação explícita para a redução de consumo, mas como fazemos com o clima do planeta com essa demanda enorme que vai ter com a produção de carne? Ou a gente muda a nossa maneira de produzir carne, com redução na emissão de gases de efeito estufa, ou a gente está perdido. O recado é muito claro.
Conforme informou o UOL, durante as negociações em Genebra, o Brasil pressionou e conseguiu modificar do texto final do relatório, que não incluirá críticas contundentes à utilização de biocombustíveis como o etanol. Fruto de investimentos pesados por parte do governo federal há décadas, esses combustíveis também seriam atrelados diretamente à degradação ambiental causada pela sua produção em larga escala.
Regina Rodrigues afirma que a pressão brasileira se explica pelo caráter universal do documento, que não permite a especificação de países, o que acabaria por generalizar problemas envolvendo esses combustíveis.
— O conteúdo era muito negativo, porque o biocombustível brasileiro é mais eficiente. O problema é que a análise do IPCC é geral. O biocombustível a base de milho nos Estados Unidos gasta mais energia na produção do que a revertida. Mas, ao generalizar, seria muito ruim para o Brasil, que investiu muito em tecnologia para produzir um biocombustível eficiente — pondera.
Os ministérios de Minas e Energia, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente, da Agricultura e das Relações Exteriores chegaram a se reunir com cientistas brasileiros envolvidos no relatório para solicitar ajuda no planejamento da defesa dos biocombustíveis.