A Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) enviaram ofício à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marina Silva, evidenciando os problemas envolvendo o Sistema de Gestão do Patrimônio Genético (SisGen) e apresentando sugestões. Leia o ofício na íntegra:

Excelentíssima Senhora
Ministra MARINA SILVA
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA)
Brasília, DF

Ref.: Decreto nº 10.844, de 25 de outubro de 2021 e novo “módulo para pesquisa que não envolva exploração econômica – SisGen/CNPq”.

Senhora Ministra,

Como representantes da Comunidade Científica no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGen, que trata do acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado, no contexto da Lei nº 13.123, de 2015, regulamentada pelo Decreto nº 8.772, de 2016, apresentamos a problemática gerada pelo Decreto nº 10.844, de 25 de outubro de 2021, e sugestões de encaminhamento diante das situações expostas.

O Decreto nº 10.844, de 2021, alterou dispositivos e inseriu novos artigos no Decreto nº 8.772, de 2016, para determinar que “o CGen poderá credenciar, preferencialmente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq”, para que as pesquisas que não envolvam exploração econômica pudessem ser cadastradas em um módulo específico, de forma simplificada em relação ao cadastro do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SisGen.

Em 19 de abril de 2022, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), juntamente com representantes da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e do CNPq, promoveu evento em que apresentou um novo sistema, intitulado SisGen-CNPq, e não um novo módulo específico e simplificado. Este sistema paralelo foi desenvolvido e apresentado sem que houvesse consulta pública, sem a participação da Câmara Setorial da Academia (CSA), da Câmara Setorial dos Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares, e nem mesmo do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Além do MCTI/RNP/CNPq lançar um SisGen-paralelo, sem a participação dos interessados em usar o sistema, este correspondia apenas a uma “folha de rosto”, com a proposta de atualizações posteriores. A experiência com a versão inicial do próprio SisGen mostrou que esta estratégia não funciona. O SisGen implementado em 6 de novembro de 2017 não foi plenamente efetivado, justamente por se utilizar dessa estratégia de “depois faremos as atualizações”. O CGen aprovou várias Resoluções propostas pela comunidade científica, junto com os povos tradicionais, e representantes do MMA, para contornar limitações da versão inicial. Entretanto, ainda há trabalho a ser feito para tornar o SisGen mais efetivo.

Esse SisGen-paralelo não oferece a segurança jurídica necessária aos diferentes tipos de pesquisas realizadas pela comunidade científica. Por exemplo, o SisGen-paralelo não exige a comprovação da obtenção do consentimento prévio informado para o acesso ao conhecimento tradicional associado. Ou seja, não tem uma funcionalidade básica para cumprir o mínimo exigido pela legislação, o que pode colocar pesquisadores em situações de ilegalidade perante a Lei nº 13.123, de 2015 e seus regulamentos. Basta lembrar que a multa correspondente a essa infração, de acessar conhecimento tradicional sem a obtenção do consentimento prévio, pode chegar ao valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).

Em 2022, a Câmara Setorial dos Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares encaminhou uma carta ao MMA se manifestando em relação ao SisGen-paralelo, salientando as falhas no que se refere aos cadastros de acesso ao conhecimento tradicional associado, com a recomendação de que a plataforma não fosse utilizada até que todos os requisitos previstos na legislação fossem contemplados.

Ainda em 2022, a Câmara Setorial da Academia solicitou ao MMA a disponibilização do SisGen-paralelo para os membros do Grupo de Trabalho SisGen Comunidade Científica, assim como o comprometimento formal de não disponibilização do SisGen-paralelo enquanto as falhas não fossem integralmente superadas. Nesta ocasião, os representantes do MMA comunicaram que o SisGen-paralelo pertencia ao MCTI e que nem o MMA e nem mesmo o CGen, autoridade nacional competente sobre acesso e repartição de benefícios, foram consultados durante o desenvolvimento. Ou seja, o SisGen-paralelo foi apresentado em Reunião Plenária do CGen, sem contar sequer com a aprovação de seu desenvolvimento pelo Conselho.

Portanto, ao tomar conhecimento da situação, o MMA realizou uma reunião emergencial com o MCTI para alertar sobre a ilegalidade, uma vez que o credenciamento do CNPq para o desenvolvimento de um novo módulo específico e simplificado deveria ter sido previamente aprovado pelo CGen, conforme previsto no próprio Decreto nº 10.844, de 2021.

Com o objetivo de remediar essa situação, o MCTI/CNPq apresentou proposta de deliberação, aprovada na 30ª Reunião Ordinária do CGen, realizada em novembro de 2022. Esta deliberação credenciou o CNPq para o desenvolvimento do módulo, condicionando a sua disponibilização à aprovação prévia do CGen. Ainda nesta Reunião, os membros da CSA relataram impedimento para realização de testes no SisGen-paralelo, destacaram as falhas a serem corrigidas, considerando o que havia sido apresentado, e a necessidade de integração deste módulo específico e simplificado ao SisGen.

Devido à falta de transparência no processo de elaboração do Decreto nº 10.844, de 2021, e suas consequências com o desenvolvimento do SisGen-paralelo, sem a participação dos interessados, o que causou grande insatisfação à comunidade científica, as instituições representantes do setor científico no CGen solicitam o direcionamento de investimentos financeiros e técnicos para o SisGen.

Diante da análise dos estragos provocados pelo Decreto nº 10.844, de 2021, criado sem a participação da comunidade científica / povos tradicionais, os quais tiveram sua existência simplesmente ignorada nesse processo, concluímos que é urgente a adoção de medidas normativas para corrigir essa situação.

Entendemos que as modificações inseridas ao Decreto nº 8.772, de 2016 não serão automaticamente desfeitas apenas com a revogação do Decreto nº 10.844, de 2021, sendo necessário um terceiro decreto que revogue os artigos inseridos e mude novamente os artigos alterados para sua redação original.

Considerando que a comunidade científica não pode aceitar este SisGen-paralelo, que com suas inúmeras falhas, deixaria os pesquisadores usuários na ilegalidade e sujeitos ao pagamento de multas, reiteramos o entendimento de que os recursos técnicos e financeiros disponíveis devem ser integralmente direcionados à melhoria contínua do SisGen.

Para tanto, sugerimos a este ministério:

  • Adotar providências para revogar o Decreto nº 10.844, de 2021, e, eventualmente, editar um novo decreto que desfaça os estragos provocados.
  • Interromper o desenvolvimento do “SisGen-paralelo”.
  • Integrar o que já foi desenvolvido no “SisGen-paralelo” ao SisGen, como um modelo específico e simplificado, para que não seja exigida duplicação de informações aos pesquisadores.
  • Uma vez integrado ao SisGen, superar suas lacunas e falhas, com a participação dos setores envolvidos: comunidade científica, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares e indústria, para simplificação e efetividade do sistema.
  • Disponibilizar orçamento interno e específico para a finalidade de operacionalização do SisGen.
  • Estruturar uma equipe voltada especificamente para gerenciamento e alterações básicas do SisGen.
  • Estruturar uma equipe de comunicação e atendimento ao usuário do SisGen em tempo integral.

Assim expostos os inúmeros problemas causados pelo referido Decreto, contamos com a atenção de V.Exa. e nos colocamos a seu dispor para quaisquer esclarecimentos que considere necessários.

10 de julho de 2023.

RENATO JANINE RIBEIRO
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

HELENA BONCIANI NADER
Academia Brasileira de Ciências (ABC)

ANDRÉA LUISA ZHOURI LASCHEFSKI
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)


Acesse o ofício em pdf


Inscreva-se no Boletim da ABC e receba toda semana um resumo das atividades da Academia e de seus Acadêmicos, além de notícias sobre ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Acesse: abc.org.br/inscricao-nabc/