A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, em seu artigo 27, parágrafo 1, consagra a todos os seres humanos o direito de “participar do progresso científico e de seus benefícios”. Essa primeira versão do que a ONU viria a definir em 2009 como o “Direito à usufruir dos benefícios do progresso científico e suas aplicações”, ou simplesmente o “Direito à Ciência”, é por vezes pouco compreendida, ou mesmo conhecida, entre a sociedade e entre os próprios cientistas.
Para discutir a definição e as aplicações do Direito à Ciência – e com ele rediscutir o próprio conceito de “ciência” conforme normalmente é entendido – a Academia Brasileira de Ciências (ABC) convidou a filósofa Michela Massimi, professora da Universidade de Edimburgo e membra da Royal Society of Edinburgh, para ministrar a segunda Conferência Magna da Reunião Magna de 2023. Ela fez sua apresentação de modo remoto.
Multiculturalismo da ciência
A ONU descreve o conhecimento científico como apenas aquele baseado em indagações críticas e possíveis de serem testados e falseados, descartando conhecimentos inspirados apenas em tradição, revelação ou autoridade. Ao contrário de uma visão eurocêntrica que ainda predomina em alguns círculos acadêmicos, esse tipo de conhecimento não surgiu apenas no iluminismo europeu. De fato, por essa definição, muitos tipos de conhecimento através da história e das sociedades podem ser considerado científico.
É isso que Michela Massimi defende em seu livro “Perspectival Realism”, lançado em 2022 pela Oxford University Press. Ela argumenta que o tão almejado realismo da ciência só é possível graças às contribuições de um grupo multicultural de pessoas com diferentes perspectivas. “Pensem no elétron enquanto um fenômeno natural. Foi entendido por Max Planck através da física quântica, por Theodor Grotthuss através da eletroquímica e por J. J. Thompson através da eletromagnética. Três perspectivas diferentes sobre um mesmo objeto real”, exemplificou.
Mas os exemplos não param por aí. O conhecimento e tecnologia aplicada na fabricação de vidros na Inglaterra do século XVII contou com contribuições indispensáveis de comunidades costeiras britânicas, cujos conhecimentos tradicionais sobre algas possibilitaram avanços indispensáveis na produção desse material. Da mesma forma, o conhecimento tradicional de comunidades da península de Yucatán, no México, sobre criação de abelhas contribuiu muito para a evolução da compreensão sobre esses animais e seus usos econômicos.
“Essas populações, muitas vezes empobrecidas, são as que mais poderiam se beneficiar do progresso científico. Como poderíamos negar-lhes isso, quando contribuíram ativamente para esse progresso?”, indagou a palestrante. E complementou: “O conhecimento científico é inerentemente cosmopolita, o que é diferente de globalização. Cada sociedade, em seus próprios contextos histórico-culturais, molda e adiciona ao conhecimento existente, não é propriedade de nenhuma comunidade específica”.
Direito aos benefícios do progresso científico
Michela Massini discutiu também o significado do “Direito aos benefícios da ciência e suas aplicações”. Ela explicou que, para a filosofia, existem dois tipos de benefícios: aqueles adquiridos, por trabalho ou dinheiro, por exemplo; e aqueles de pertencimento a um determinado grupo ou comunidade. “O direito aos benefícios da ciência se enquadram neste segundo tipo, visto que não estão restritos apenas aos cientistas”, explicou. “Negar esses benefícios às populações dos países mais pobres do Sul Global é excluí-los do pertencimento à comunidade internacional”.
Para Massini , permanece na comunidade científica um elitismo que tende a esquecer que a ciência é uma atividade humana inserida no contexto de seu tempo histórico. “Do ponto de vista da construção de conhecimento, meu ponto aqui é fazer justiça às diversas culturas que historicamente foram removidas da noção de ciência”, defendeu.
Durante o debate, o vice-presidente da ABC para São Paulo, Glaucius Oliva, indagou a palestrante sobre os problemas que podem ser gerados pela ciência. Afinal, a ciência gerou as vacinas mas também gerou a bomba atômica. Massimi foi sucinta: “O direito à Ciência reconhece também o direito a ser protegido contra ela”.