O primeiro dia de debates da Reunião Magna da ABC 2018 sobre as possibilidades para se imaginar o futuro contou com uma roda de discussão sobre a evolução da vida urbana e como o avanço da ciência impõe a necessidade de repensar as ideias de progresso e de direitos humanos. A sessão, realizada no dia 8 de maio, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, contou com participação de Eduardo Marques e José Reinaldo de Lima Lopes, professores da USP, e Roberto DaMatta, antropólogo e professor da PUC-RJ.
Marques trouxe um panorama das transformações nas cidades e nas políticas públicas. Segundo apresentou, o Brasil teve um crescimento agudo da população urbana nos últimos 50 anos. Em 1960, 40% da população vivia nas cidades, hoje 85% da população vive em zonas urbanas. Isso corresponde a 160 milhões de pessoas. Só a China e a Índia experimentaram desafios semelhantes.
“O país vive agora um momento de estabilidade populacional nos centros urbanos. Não é mais um modelo malthusiano”, aponta o pesquisador. Ele destacou que na década de 1960, a taxa de fecundidade era de seis filhos por mulher; hoje não chega a dois (1.8). “Assistimos a uma redução muito significante nos arranjos familiares, mas temos um amplo legado de precariedade urbana e segregação. A pobreza reduziu significativamente, as cidades ficaram menos pobres e menos desiguais, mas a crise econômica atual puxou a desigualdade que estava em queda até 2015 no país”, contou.
Ele ressalta o pouco conhecimento sobre as políticas do urbano: quem são seus atores, o funcionamento das instituições, os processos de produção de políticas, a participação social. Os debates sobre as cidades, segundo Marques, são pouco informativos, pouco analíticos e focados em proposições – isso no mundo todo, avalia o professor do Departamento de Ciência Política da USP. “Visões catastróficas mostram sempre situação de degradação. Mas sabemos pouco sobre sociabilidade urbana, redes, práticas e usos dos espaços; detalhes dos padrões de segregação; dos grupos sociais médios e seus espaços misturados; as novas desigualdades e as heterogeneidades da precariedade urbana. As informações são homogeneizantes, quando temos realidades muito distantes”, observa.
Entre os desafios das políticas recentes que ele aponta, está elevar as capacidades técnicas dos governos locais, “de forma intersetorial e aberta à participação social” – o desafio da qualidade. “Isso inclui a melhora dos serviços e das máquinas públicas responsáveis pelas políticas públicas locais, incluindo equipamentos, instrumentos e burocracias locais. Também o aumento da responsabilização pública e da participação social nas decisões”, destaca. Hoje, por exemplo, o problema dos serviços oferecidos nas cidades não é mais tanto a cobertura, mas a baixa qualidade. “Todas as coberturas de serviços básicos avançaram muito, quase universal. Porém, as gestões locais são pouco capacitadas administrativamente”, argumenta. “As melhoras foram induzidas por meio de iniciativas do governo, mas caíram nos últimos anos”, apontou.
Sobre o desafio de combater a precariedade urbana das cidades brasileiras, ele recomenda a massificação das ações de combate à precariedade, a continuidade da produção habitacional massiva, mas integrada às políticas públicas locais, e o desenvolvimento de políticas de habitação em áreas centrais, inclusive de locação social. “Sem políticas federais inclusivas e redistributivas para cidades, e na ausência de incentivos aos governos locais, o futuro de nossas cidades não é promissor”, afirmou.
Possibilidade das coisas
Lima Lopes, professor da USP e especialista em história do direito, falou sobre a necessidade de transformação da ciência do direito e os desafios do futuro, diante dos avanços científicos e os novos paradigmas que eles impõem. “No século XX voltou a ser discutido o conceito de planejamento e o direito começou a ser pensado para planejar o futuro. As leis lei orçamentárias são exemplo disso. Os grandes desafios dos juristas hoje exigem diálogos com os cientistas. Vimos o surgimento dos crimes contra a humanidade, pois a nossa capacidade de sermos mal ultrapassa o nosso vizinho, e torna-se global. Desafios elementares trazem de volta a necessidade de discussão sobre o conceito de pessoa. E a medicina genética do futuro afetará nossa ideia de personalidade. Outra coisa é a ideia de identidade e privacidade, repensada pelas ciências da computação e da comunicação”, enumera o jurista.
Segundo ele, os caminho para o futuro exigirão revisitar e reconstruir a tradição e produzir uma nova teoria jurídica adaptada a esses tempos e às novas questões colocadas. “O direito habilita a tomar decisões. Descrever uma ação é entender a regra da ação. O direito é o lugar onde se discutirá a possibilidade das coisas. Os problemas trarão de volta a conversa com a filosofia moral, por força do desafio da ciência”, observa.
Futuro que, para o antropólogo e professor da PUC-RJ, Roberto DaMatta, parece lá muito brilhante, nem para os países ricos, nem para o Brasil, “um país complexo e complicado”, segundo ele.
Em sua apresentação, DaMatta defendeu a perspectiva das ciências humanas, que comporta a imprevisibilidade e as surpresas. “O que tenho aprendido sobre a vida e sobre o Brasil é que o não saber e o não previsto são tão importantes quanto seus opostos. Não conseguimos entender como, em uma América riquíssima, meninos cometem crimes sem razão. Esperávamos muito mais beleza e igualdade”, lamentou.
Ele também falou sobre nos depararmos a contragosto com a possibilidade de finitude de um mundo que julgávamos infinito, que vai desde superpopulação urbana à super exploração do planeta. “Não posso me conformar com a ideia de progresso baseado na construção de artefatos capazes de destruir o mundo. Não podemos escolher outra Terra para viver. A novidade no mundo atual é vislumbrar a contragosto a finitude de um mundo que se julgava infinito”, diz.
Segundo o antropólogo, é uma obrigação de todos discutir uma ideia de progresso que seja sinônimo de caminho para a equidade. “Um mundo no qual sociedades rurais que não cabem no mundo moderno não sejam extintas, mas que sejam ouvidas e aprendidas. Mas não sei como vamos desmanchar esse novelo de desencontros”, sugere, sem prescrever soluções.
DaMatta, no entanto, propõe olhar para o mundo como um todo, adotando algo como a visão distanciada dos astronautas, que, lá do alto do espaço, faz sumir nações, mapas e fronteiras. “Quanto mais inclusiva a visão, menos vemos exclusões e diferenças. Do espaço, os astronautas não veem homens nem animais, moedas ou bandeiras, eles veem um lugar de milagres. A visão distanciada será o caminho para as reconciliações que tanto foram faladas – do planeta com ele próprio, do Brasil com ele mesmo e dos homens com seu palco, que não pode ser substituído como um palco de teatro”, concluiu.