BR-319: o papel perverso da avaliação ambiental estratégica

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Leia artigo do Acadêmico Philip Martin Fearnside, publicado no site Amazônia Real em 17 de setembro:

O licenciamento do projeto de reconstrução da BR-319 foi tratado em um “acordo” entre o Ministério de Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA) e o Ministério de Transportes (MT), que prevê a contratação de uma firma para fazer uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) da proposta obra [1]. Embora uma AAE, que faria uma proposta para ações de governança em uma faixa de 50 km de cada lado da estrada, também tem um papel extremamente perigoso por facilitar a aprovação do projeto de reconstrução. Os impactos da reconstrução da BR-319 são enormes, e não se restringem à faixa em questão [2, 3].

O licenciamento da obra aguarda uma decisão do Instituto Brasileiro do Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão subordinada ao MMA. A Ministra Marina Silva, do MMA, tem falada muitas vezes que esta decisão vai ser “técnica”, sem interferência política. Um acontecimento preocupante é a entrevista do Presidente Lula em 09 de setembro, onde ele afirmou que o projeto da BR-319 “vai sair do papel” [4]. A implicação é que a aprovação é garantida depois que seja concluída a AAE, independente do seu conteúdo. A anúncio disto antes do conteúdo da AAE ser conhecido e antes de uma decisão tomada é, claramente, uma violação da independência de IBAMA.

De fato, documentos como o AAE tem um papel no licenciamento bem diferente do que pessoas com pouco contato com o sistema de licenciamento pensam. Basicamente, quem escreve o documento pode dizer o que quiser, por exemplo que o projeto em questão seria um desastre ambiental e não deve ser feito, mas, assim mesmo, o documento serve para aprovar o projeto. Neste caso são apenas duas caixinhas para marcar: a AAE foi feita, sim ou não. Não há uma opção para “AAE foi feita, mas a o projeto foi rejeitado com base na análise dos autores”. No máximo, o IBAMA, através da firma contratada, devolveria aos autores repetidamente para revisar, até ter uma versão que dê uma justificativa pública para aprovar.

Exemplos passados onde os próprios analistas de IBAMA emitiram pareceres com centenas de páginas mostrando que obras não devem ser aprovados, no final acabaram sendo aprovados. Destaca-se as hidrelétricas do rio Madeira [5, 6], Belo Monte [7-11] e São Manuel [12, 13].

É importante reconhecer o fato que nenhum plano de governança declarado por MMA, DNIT ou Presidente Lula vai conseguir conter o impacto além da margem estreita da rodovia em si. O Governo do Amazonas está livre para fazer as estradas estaduais que ligariam à BR-319, inclusive a AM-366 que estenderia 574 km ao oeste da rodovia. Também, não seria possível controlar o impulso ao desmatamento em áreas já ligadas à Manaus por estrada, com destaque para o Estado de Roraima [14]. As espinhas de peixe a partir da estrada que liga Autazes à BR-319 já dá uma alerta [15].

Incluir no relatório uma série de “condicionantes” não resolve estes problemas. O IBAMA incluir condicionantes na licença não garante que serão compridas. Veja o caso de Belo Monte [16-18]. Quantos terras indígenas tinha os grileiros e invasores removidos? [19].

O argumento de proponentes do projeto da BR-319 é sempre que os danos ambientais serão controlados por um programa de “governança”. Infelizmente, mesmo para a estreia faixa ao longo da rodovia propriamente dito que os proponentes pensam que seja o limite geográfico da sua responsabilidade, este discurso é falso [20]. O grupo de trabalho que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de transportes) montou considerou o projeto de reconstrução da BR-319 “ambientalmente viável” neste base [21, 22]. O exemplo de “governança” foi a rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), cuja aprovação com base no programa BR-163 Sustentável foi seguido pela rodovia se tornar um dos maiores focos de desmatamento ilegal, grilagem, invasão de terras indígenas e outras ilegalidades, até incluindo a organização do “dia do fogo” em 2019 [23].

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o plano de governança em uma faixa de 50 km a partir da estrada a ser proposto pela AAE nem arranham o impacto total da obra. Presumam que apenas a obra federal esteja em jogo, e não as cinco estradas estaduais a serem ligadas a ela, inclusive a AM-366 que abririam a vasta Região Trans-Purus [24-26], além de facilitar o plano para o enorme projeto de gás e petróleo “Area Sedimentar do Solimões” [27, 28]. O governador do Amazonas considera o projeto, liderado pelo gigante petrolífera russa Rosneft, um “empreendimento prioritário para o estado” [29]. Tanto a abertura da região Trans-Purus quanto os novos campos de gás e petróleo têm enormes consequências climáticas, com impactos desastrosos no Brasil [30-32]. Tudo isto pode ser esperado a seguir de forma praticamente automática depois de reconstruída a BR-319.

Meu texto sobre “BR-319 e a Banalidade do Mal” é muito relevante [33]. Embora o exemplo que Hannah Arendt estudou da “banalidade do mal” (o Ministro de Transportes da Alemanha Nazista) foi de natureza extrema, o princípio aplica fortemente ao Ministério de Transportes brasileiro e aos outros atores no atual caso. Cada ator seguindo abitolado na sua função não escapa de responsabilidade pelas consequências mais amplas da sua ação. O novo “acordo” visando licenciar a obra com base de uma AAE é uma porta para impacto muito além da área a ser alvo de “governança” [1]. Como é o caso de todos os atores, os cientistas não podem pensar que cumprir a tarefa de fazer uma boa AAE é o limite da sua responsabilidade.

A imagem que abre este artigo é da reunião com Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil e o ministro dos Transportes, José Renan Vasconcelos Calheiros Filho (Foto: Marcio Ferreira/MT/23/04/2024).

Leia o artigo completo, com as referências, no site Amazônia Real, com acesso livre

 

(Philip Fearnside para Amazônia Real, 17/9 | Foto: Wikimedia Commons/Amazônia Real/Cesar Nogueira)