Confira o artigo da Acadêmica Alicia Kowaltowski para o Nexo Jornal, publicado em 2/11.  Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas e atua como cientista na área de metabolismo energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).

Neste final de semana, o Brasil decidiu que a partir de 2023 teremos um novo-antigo presidente. Como membro da comunidade científica, o resultado desta eleição me trouxe uma sensação de alívio. Não que eu julgue o ex e futuro presidente Lula um candidato perfeito – já fui muito crítica das políticas de seu governo e partido referentes à saúde, educação e ciência, que são basicamente todas as áreas em que possuo algum conhecimento de causa. Confesso que sempre serei crítica de qualquer governante, pois, como cientista, é natural e esperado fazer e receber críticas, como forma de promover melhorias e novas ideias. O meu alívio com o resultado de domingo vem do fato de que há uma diferença fundamental entre ter críticas a propostas de políticas com intenções construtivas de governos passados, e a minha visão da gestão Bolsonaro, que, com uma perversa política de ódio contra a ciência, ativamente buscou arruinar tudo aquilo que construímos a duras penas nesta área. Temos agora a esperança de evitar continuar trilhando este caminho destrutivo.

Mas é preciso mais do que não destruir – precisamos construir. Sabidamente, fazê-lo no governo Lula 2023 não será fácil. Se vê claramente pelos resultados da eleição que temos um país dividido quase ao meio, um fato amplamente reconhecido pelo presidente eleito. Neste sentido, há reconhecimento pela campanha Lula de que há de se trabalhar em prol da união, algo indicado pela escolha do candidato a vice-presidente e plena inclusão de personalidades de várias vertentes políticas durante o segundo turno. Mas eu gostaria de sugerir um outro caminho essencial para a união e o crescimento nacional, através do uso da ciência e de políticas públicas embasadas cientificamente.

Digo isso porque a confiança na ciência e em cientistas é um fator unificador brasileiro, e esta só aumentou na pandemia, apesar dos ataques governamentais a esse setor. A multinacional 3M encomenda anualmente um levantamento sobre o estado de aceitação à ciência, em reconhecimento por esta megaempresa privada da essencialidade e importância da atividade científica, e os resultados de 2021 não podiam ser melhores para o Brasil: mais de 90% dos entrevistados brasileiros confiam na ciência e em cientistas, acima da já alta média global de 86%. Num país dividido pela política, a ciência é um consenso.

Há indicações de que o governo Lula respeita a importância da ciência, como o fato de sua coligação ter se reunido com representantes da área e assumido compromissos elaborados pela Academia Brasileira de Ciências durante a sua campanha. Realizou também promessas relacionadas a políticas ambientais, área que têm sido alvo de grande cobrança internacional. Mas há também indícios de que não há a inserção central da ciência em seus planos de unificação nacional, como o fato desta atividade e de cientistas e professores não terem sido mencionados no seu discurso após a eleição, enquanto a religião figurou com proeminência. Fica então a questão de quanto, e como, a nova gestão irá se apoiar cientificamente para elaborar suas políticas públicas.

Esta questão é central, pois, para ser efetiva em seus resultados e poder unificador, a inserção científica tem que ser feita com foco em qualidade, e não em popularidade ou aparências. Caso contrário, haverá investimento sem ganhos reais, ao mesmo tempo que se perderá a significativa confiança brasileira no setor. Reconhecer o que é ciência de qualidade versus o que não é se torna então um ponto chave, e não é algo trivial. 

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A ciência é por definição uma atividade que resolve problemas, e centrar investimentos nas melhores evidências científicas é unificador e nos fará crescer. A agricultura precisa que se cuide da questão ambiental, pois é área diretamente afetada por alterações climáticas. As soluções para desenvolvimento agrícola sustentável virão da ciência. A difusão de falsas informações em mídias sociais, catalisando a nossa desunião, precisa ser controlada, e a solução está na interface das ciências sociais e da informação. A saúde da nossa população depende de nossa capacidade de modelar e prever a transmissão de doenças contagiosas e de causas ambientais, com participação de múltiplas áreas científicas. Não faltam exemplos de como o nosso país pode, e precisa, se unir com base na melhor ciência.

Para que isso aconteça, é hora do futuro presidente elaborar uma clara e detalhada política científica nacional. Esta precisa envolver requisitos mínimos, como garantir pagamento digno para pós-graduandos, nossos melhores cientistas, e restabelecer a intenção amplamente apoiada por setores muito distintos do Congresso nacional de que recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) sejam investidos em pesquisa básica, sem contingenciamento. Mas é preciso mais do que isso. É preciso verdadeiramente respeitar as melhores evidências científicas em todas as áreas do governo, inserindo especialistas e consultores com conhecimento em cada ministério e secretaria, evitando assim a perda de investimentos através de políticas de culto ao cargo. Nós, cientistas, estamos à disposição, preparados para unir e revitalizar o país.