RIO — Aos 78 anos, o historiador José Murilo de Carvalho [diretor da Academia Brasileira de Ciências – ABC], membro da Academia Brasileira de Letras, diz que já viveu o bastante para ver o Brasil decolar e cair várias vezes, mas sabe que não vamos ficar embaixo para sempre. Como mostra em seu novo livro, “O pecado original da República” (Editora Bazar do Tempo), seu espírito crítico continua afiado. Confira abaixo a entrevista concedida a Nelson Vasconcelos, do jornal O Globo.
Quando comparamos “O pecado original da República” com outros livros seus, temos impressão de que o senhor já foi mais otimista em relação ao país. É só uma impressão?
Hoje estou moderadamente pessimista… Tem a ver com a idade. A esta altura já vi o país aparentemente decolar, cair, subir de novo e de novo afundar… Eu estava bastante otimista, por exemplo, na sequência dos governos Fernando Henrique (1995-2002) e Lula (2003-2010). Lula adotou a mesma política econômica do FH e avançou na parte de inclusão social. E eu falei “Bom, agora vamos”. E para onde fomos? Fomos para onde estamos… Nessa sucessão de êxitos e fracassos, caímos de novo. Mas vão vamos ficar embaixo para sempre, claro.
O senhor cita no livro quatro pecados históricos que ajudam a manter a desigualdade: escravidão, latifúndio, patriarcalismo e patrimonialismo. Continuamos pecando muito?
Esses pecados continuam. Agora, a pergunta difícil de responder é: por que, numa situação em que a massa do povo é majoritária, que define as eleições, isso não se transforma em políticas estruturais contra a desigualdade?
Muita gente se pergunta: por que o povo que bateu panelas contra a corrupção evidente do PT, pedindo o impeachment da presidente Dilma, não voltou às ruas contra a corrupção, que continua?
Não voltou porque a partida empatou. De repente, assume um presidente acusado de todo tipo de corrupção. Então, o pessoal que defendia a mudança começa a se questionar: o que adiantou ir para a rua? E o outro lado (pró-Dilma), com a enxurrada de denúncias (contra PT e Lula, entre outros), fica também sem jeito de se defender. Não estamos condenados à corrupção e à transgressão. Elas são fenômenos históricos que, como todos os outros, estão em perpétua mutação.
Nosso cenário cultural também vive um momento delicado. Estamos vendo, por exemplo, manifestações contra a liberdade de expressão e até processos contra um ator que fez uma performance nu e contra o curador de uma exposição que exibiu quadros com nus. Qual sua opinião?
Existe aí uma divisão. A intelectualidade diz que não pode haver censura. O que falta é bom senso, porque você tem um código de proteção aos menores. Para quem organiza essas exposições, basta estabelecer limites. Não adianta ficar gritando que é ou não censura. Todos os filmes têm um limite de idade, e isso é censura? Nunca ouvi dizer que é censura. Não vejo ninguém gritar contra a classificação etária no cinema.
E por falar em bom senso, ou na falta dele, o que dizer sobre as famílias que detêm direitos autorais da obra de parentes que já morreram e, por questões de contrato, dificultam a reedição de produção importante da cultura brasileira? Isso aconteceu, por exemplo, com o legado de Manuel Bandeira, entre outros.
É complexo. Do ponto de vista cultural, é uma calamidade. Você fica privado de ter acesso a obras que se transformaram em parte da própria cultura brasileira. Mas de quem é realmente a propriedade de uma obra de gênio? No fundo, é um assunto espinhoso, com argumentos dos dois lados. Mas fica óbvio que não é justo que duas ou três pessoas impeçam a divulgação de obras de gênio. Enfim, é algo muito intrincado. Não sei como sair dessa.
No seu livro, o senhor comenta sobre a tentativa de censura à publicação de biografias. Em 2013, artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos compraram essa briga. Esse perigo foi afastado pelo Supremo. Como um historiador vê esse tipo de movimento?
Por sorte, a decisão do Supremo foi contra a censura. Mas a hipótese é uma calamidade, e temos pessoas consideradas historicamente da esquerda que eram favoráveis a censurar, o que é absolutamente lamentável. A decisão (do Supremo) foi importante, até porque a biografia autorizada tem muito pouco valor histórico. Autobiografia, tudo bem, é o sujeito falando sobre si mesmo, mas, quando é outra pessoa escrevendo, aí supostamente é alguém que está fazendo uma biografia enviesada. Por isso, para a história, é uma absoluta calamidade introduzir essas censuras em biografias. Quando está escrito “biografia autorizada” eu nem pego, nem leio, porque não tem valor.
Biografia boa, então, é aquela que dá processo?
Em geral, essas é que contêm documentos bons.
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