roberto-lent_edit.jpgO neurocientista Roberto Lent investiga há quase 40 anos a formação e a reorganização das conexões entre as áreas do cérebro. Mais recentemente, se propôs a estimular outro tipo de interação: entre pesquisadores com empreendedores e educadores, a fim de produzir conhecimentos que aprimorem as estratégias de aprendizagem e cheguem rapidamente a professores e alunos nas salas de aula. Ele espera que o desenvolvimento dessa área, a chamada ciência para a educação, contribua para melhorar mais rapidamente o nível educacional das crianças e dos adolescentes brasileiros.
Filho do parasitologista Herman Lent, estudioso dos insetos transmissores da doença de Chagas, e da química Maria Gregória Rivarola, Roberto nasceu no Rio de Janeiro em 1948 e cresceu sabendo que queria fazer ciência. Entrou em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1967 com a intenção de se dedicar à genética, então a ciência da moda, mas um estágio no início do curso o fez mudar de ideia. Ele iniciou o mestrado ainda na graduação investigando a capacidade de as conexões cerebrais se alterarem – a chamada neuroplasticidade – no sistema visual do gambá.
Lent tornou-se um especialista em agenesia do corpo caloso, uma malformação congênita no cérebro que impede a troca de informações entre os dois hemisférios e prejudica o desenvolvimento. Ele e a neurocientista Fernanda Tovar-Moll, pesquisadora da UFRJ e do Instituto DOr de Pesquisa e Ensino, descobriram que o cérebro das pessoas que têm o problema estabelece rotas alternativas de comunicação entre os dois hemisférios. Seu trabalho científico mais conhecido, no entanto, trata da contagem dos neurônios cerebrais, um estudo que levou a uma revisão de algumas ideias da neurociência.
Como divulgador da ciência para o público geral, ele participou da fundação da revista Ciência Hoje nos anos 1980 e escreveu a série de livros para crianças As aventuras do neurônio lembrador (Vieira & Lent), depois adaptada para o teatro. Casado com a editora Cilene Vieira e pai de quatro filhos, Lent recebeu Pesquisa FAPESP em seu laboratório na UFRJ e falou de seu papel de articulador de uma rede nacional de pesquisa em ciência para a educação e de outros projetos.
Qual o seu principal projeto atual?
Há quatro anos ando fascinado por science of learning, a ciência para a educação. Muita gente confunde com ensino de ciências ou divulgação científica, mas é diferente. É a pesquisa inspirada pela educação. Pode ser pesquisa sobre memória, neuroplasticidade, transmissão sináptica, alfabetização e transtornos de aprendizagem. Há espaço para a ciência básica e para o desenvolvimento de produtos, como videogames que auxiliem o aprendizado. O objetivo é ampliar o conhecimento sobre as formas mais eficientes de ensinar e transferi-lo para as salas de aula. É, portanto, uma forma de pesquisa translacional, que consiste em acelerar a transferência de resultados da pesquisa básica para a aplicada na área da educação.
Como se interessou pela ciência para a educação?
Apesar de nunca ter exercido a medicina, sempre trabalhei com temas relacionados à saúde pensando em sua aplicabilidade. Essa visão tem raízes no trabalho de dois assessores do governo norte-americano que criaram o panorama da pesquisa translacional nos Estados Unidos. Um foi o engenheiro Vannevar Bush 1890-1974], que dirigia o Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento e, logo depois da Segunda Guerra Mundial, fez um relatório que se tornou famoso, propondo que os Estados Unidos entrassem logo na pesquisa translacional, então dita aplicada, sem deixar de lado a pesquisa básica. O outro foi o cientista político norte-americano Donald Stokes [1927-1997], autor do livro O quadrante de Pasteur (ver Pesquisa FAPESP nº 110). No final dos anos 1990 ele disse que a pesquisa translacional não seria uma linha reta da pesquisa básica até a inovação, mas uma grade bidimensional formada por um eixo que mede a utilidade social da pesquisa e outro que avalia o quanto é inovadora e se acrescenta conceitos fundamentais à ciência. Se uma pesquisa preenche esses dois requisitos, ela é mais rentável do ponto de vista social. Em saúde, há décadas se trabalha assim e, por conta disso, a mortalidade infantil caiu, muitas doenças se tornaram curáveis e a longevidade aumentou. Cresci com essa concepção na cabeça e, no início de 2014, Jorge Guimarães, então presidente da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do Ministério da Educação, MEC], me pediu para ir a um simpósio sobre science of learning em Xangai, China. Eu deveria apresentar uma palestra sobre o meu trabalho e representar o MEC. Fiquei surpreso porque havia poucos países representados no simpósio: Austrália, Estados Unidos e China, além de Hong Kong. Me dei conta de que a pesquisa translacional voltada para a educação poderia abrir novos horizontes. Além disso, tinha tudo a ver com meu trabalho com neuroplasticidade, porque o aprendizado depende da capacidade do cérebro de se modificar e formar memórias. Na volta, comecei a ler sobre o tema e notei a janela de oportunidades que representaria para o país. Várias universidades trabalham nessa área, mas quase nenhum país tem políticas públicas e medidas estruturantes para a educação. No Brasil, o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] tem editais para estimular estudos sobre várias doenças, mas não para a educação. Por essa razão, resolvi fundar a [Rede Nacional de Ciência para a Educação.
Quais os pressupostos da Rede?
Há uma série de ações bem-aceitas por todos para melhorar a educação no Brasil: aumentar o salário dos professores, melhorar as escolas, fazer turno único, implantar a dedicação exclusiva do docente, ter acesso a livros, entre outras. Essas medidas produzem melhorias, mas não são o suficiente para melhorar a qualidade do ensino a ponto de reduzir o abismo que existe em relação ao nível educacional de países mais desenvolvidos. Calculei o tempo que seria necessário para os alunos brasileiros atingirem a pontuação média alcançada por 72 países avaliados no exame Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], que mede a capacidade de leitura e o conhecimento em matemática e ciências de jovens no ensino médio. O Brasil ocupa uma das 10 posições mais inferiores no ranking elaborado a partir dessa prova. Mantido o ritmo de melhora da educação dos últimos 12 anos, o país só alcançaria a média da OCDE em 2060. Minha proposta é que, se adotarmos medidas para melhorar o ensino cuja eficiência tenha sido cientificamente comprovada, há uma chance maior de aumentar a inclinação dessa curva de crescimento e chegar à média da OCDE mais cedo, por volta de 2030.
Como a ciência poderia ajudar a melhorar o ensino?
As conclusões dos estudos sobre o sono, por exemplo, poderiam ser incorporadas às atividades escolares. O sono é o momento em que a memória é consolidada. Uma boa qualidade de sono é essencial para a aprendizagem das crianças. Além disso, a vigília depende de um ciclo que varia de um indivíduo para outro. Faço parte dos 20% da humanidade que são matutinos. Acordo espontaneamente às 4 horas (h) e durmo às 21h. Os outros 80% tendem a acordar e dormir mais tarde. Da forma como o ensino está organizado hoje, as crianças têm de acordar às 5h para começar a aula às 7h. Não faz sentido do ponto de vista fisiológico, porque 80% delas não estão no pico de sua capacidade cognitiva, por causa do ciclo cronobiológico. Fernando Louzada, da Universidade Federal do Paraná e pesquisador associado da Rede, propõe, a partir de estudos feitos por ele e por outros grupos, que o dia escolar comece e vá até um pouco mais tarde. Assim, os 20% que acordam e chegam cedo iriam jogar bola ou fazer outra atividade lúdica. Essa recomendação implica apenas uma mudança na gestão escolar, baseada em evidências da ciência. E depois é preciso fazer medições e avaliar se funciona mesmo.
O que a Rede já fez?
Publicamos quatro documentos preparados por grupos de especialistas sobre temas relevantes para a educação. Um sobre fatores fisiológicos que influem na educação; outro sobre estudantes com deficiências e superdotados; um terceiro acerca de competências socioemocionais e a metacognição; e o último sobre alfabetização infantil. Cada documento tem sugestões para pesquisa (o que falta saber) e para políticas públicas (o que se pode fazer com base nesse conhecimento). Com uma bolsa de pós-doutorado paga pelo Instituto Ayrton Senna, a pesquisadora Daniele Botaro fez um censo nacional de pesquisadores que tenham trabalhos ligados à ciência para a educação. Em colaboração com Jesus Mena Chalco, professor de ciências da computação da Universidade Federal do ABC e autor de um excelente programa de mineração de dados, fizemos um levantamento entre os 27 mil orientadores cadastrados na Capes com uma produção científica relevante nessa área. Filtramos cerca de 300, que convidamos para integrar a Rede, hoje composta por 90 líderes de pesquisa de várias universidades e estados. Nossa meta é chegar a 150 pesquisadores neste ano. Já reunimos neurologistas, cientistas da computação, economistas, sociólogos e educadores. Se muitos se dedicarem à pesquisa sobre educação, teremos um resultado espetacular. E não podemos esquecer, claro, dos inúmeros grupos de pesquisa já existentes no país que têm feito trabalhos respeitáveis nessa área. Para a Rede, falta articulá-los em cadeias de conhecimento, para ganhar momento e escala.
Quais os próximos passos?
Neste ano faremos um encontro nacional com cientistas e educadores na área de educação, e outro com cientistas e empreendedores. O primeiro foi em 2016, no Museu do Amanhã. Queremos mobilizá-los a desenvolver ideias e produtos para a educação, cientificamente validados. Hoje há vários kits dos quais se diz que seriam capazes de aprimorar a aprendizagem. Funcionam? Ninguém mediu. Queremos sensibilizar o poder público a lançar editais de ciência para a educação, com participação das fundações estaduais de apoio à pesquisa, para fomentar o trabalho em rede da ciência para a educação e estimular o interesse por fazer algo mais aplicado, como se faz na saúde. Apresentamos um projeto ao BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social] para criar um Centro Nacional de Ciência para a Educação. É um projeto de R$ 20 milhões, que prevê a construção de laboratórios multiusuários, abertos a pesquisadores de instituições acadêmicas e de empresas.
Qual a fase do desenvolvimento em que vale a pena investir mais em educação?
É a primeira infância. É nessa fase que o cérebro passa por períodos de transformação mais crítica. Nela, é mais fácil aprender uma segunda língua e se transita de um conceito abstrato de numerosidade, a capacidade de saber em qual pote tem mais bombons, por exemplo, para os mais concretos, que permitem quantificar o número de bombons de cada pote. É mais fácil aprender até os 20 ou 30 anos de idade. A partir daí, começa um declínio cognitivo já mensurado. As manifestações do envelhecimento não começam a aparecer aos 60 anos, mas aos 20 anos!
Em qual fase do desenvolvimento é mais eficiente intervir para melhorar a aprendizagem?
Depende do que se quer ensinar. O ensino voltado para o desenvolvimento das competências socioemocionais pode ser mais eficaz na pré-adolescência do que mais cedo, porque é na adolescência que se estabiliza o córtex pré-frontal, responsável pelo controle executivo das emoções e dos pensamentos. Na idade adulta se desenvolve a metacognição, que é a capacidade de refletir sobre como se aprende melhor. Ou seja, aprendem-se as manhas do próprio estilo de aprender. O desenvolvimento dessa habilidade compensa a perda de neuroplasticidade que ocorre com a idade. A capacidade de aprender diminui, mas melhora a eficiência do uso do cérebro.
O que o atraiu para a neurociência?
Sou filho do parasitologista Herman Lent [1911-2004] e de uma química-farmacêutica de origem paraguaia, Maria Gregória Rivarola [1914-1995]. Minha mãe migrou para o Brasil e, por causa do modelo familiar da época, em que a mulher não trabalhava, abandonou a química, mas me passou uma influência positiva em relação à ciência. Quando eu era criança, meu pai me levava para o Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, e eu passava o dia andando pelos laboratórios. Ele foi um dos 10 pesquisadores do instituto cassados durante o regime militar e escreveu o livro O massacre de Manguinhos [1978, Avenir Editora]. Por causa do ambiente familiar, muito cedo decidi fazer ciência. Como o caminho para isso era pouco variado no Brasil dos anos 1960, a alternativa era a medicina. Queria fazer genética, que estava na moda. Mas, no final do primeiro ano, me tornei monitor de fisiologia de Eduardo Oswaldo Cruz [1933-2015], especialista em neurobiologia do sistema visual e neto do sanitarista Oswaldo Cruz [1872-1917]. Apaixonei-me pela neurociência. Comecei estudando o sistema visual do gambá, que era o tema de pesquisa do Eduardo e do Carlos Eduardo Rocha Miranda [1934-2016]. Na época, Carlos Eduardo estava nos Estados Unidos. Ele foi um dos descobridores das chamadas células gnósticas, do córtex visual de macacos, que só respondem a estímulos complexos. Eram ativadas quando um macaco via fotos de outro macaco, mas não respondiam a cores, contrastes e outros estímulos simples. A descoberta dessas células causou um rebuliço na psicologia por indicar que havia neurônios específicos que identificavam a face de outro membro da mesma espécie. Comecei a pesquisa para o mestrado ainda na graduação, usando uma técnica de rastreamento de projeções do axônio que Carlos Eduardo havia aprendido nos Estados Unidos, e me interessei por neuroplasticidade. Propus um experimento para verificar o que aconteceria com os prolongamentos de células da retina se um dos olhos do gambá recém-nascido fosse retirado cirurgicamente; era um modelo experimental de cegueira congênita. Usamos essa estratégia para estudar como isso alterava o sistema visual do animal. Foi minha tese de doutorado. Depois fui fazer um pós-doutorado no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts], para estudar plasticidade em hamsters. Trabalhei com um craque na área, Gerald Schneider, autor de uma teoria segundo a qual temos dois sistemas visuais, um que se encarrega dos movimentos e dos reflexos orientados pela visão, e outro, da percepção visual complexa. Fiquei três anos lá. Eu já tinha dois dos meus quatro filhos e, nesse período, minha filha começou a apresentar um retardo no desenvolvimento mental. Descobri que ela tinha agenesia do corpo caloso, um conjunto de 200 milhões de fibras nervosas que conectam os dois hemisférios do cérebro. Essa conexão permite que a mão direita interaja com a esquerda e vice-versa e as ideias processadas em um hemisfério cheguem ao outro. Quando soube desse problema de minha filha Isabel, fiquei deprimido. Schneider me encorajou: “Você tem de trabalhar com isso”. Publiquei três ou quatro artigos nos Estados Unidos descrevendo um modelo em hamster de distúrbio de desenvolvimento de corpo caloso provocado por cirurgia.
O que acontece em quem não tem o corpo caloso?
Em um trabalho feito com Fernanda Tovar-Moll, e publicado em 2014 na revista PNAS, descobrimos que quem nasce sem o corpo caloso, como minha filha, que está com 30 e poucos anos e foi analisada no estudo, apresenta um mecanismo compensatório [de processamento de informações e emoções]. Como o corpo caloso dessas pessoas não se forma durante o desenvolvimento no útero, os neurônios que originam essa estrutura tentam encontrar outros caminhos e criam conexões alternativas. Agora estamos estudando os feixes que são anômalos e possivelmente geram os comprometimentos apresentados por essas pessoas. Haveria algum grau de plasticidade nas conexões de longa distância, mas fica restrita às sinapses, as conexões entre células vizinhas. Durante a formação do corpo caloso, que começa cedo, por volta da 12a semana de gestação, podem surgir vias alternativas.
Qual a história de sua pesquisa sobre a contagem de células do cérebro?
É o resultado da associação inicial com a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que desenvolveu uma técnica de contagem das células cerebrais. Embarquei nessa história estudando o cérebro humano em associação com o grupo do banco de cérebros da USP [Universidade de São Paulo]. Saiu dessa linha de pesquisa meu trabalho mais citado, mencionado cerca de 500 vezes por outros estudos, que trata do número de neurônios do cérebro humano. Foi publicado em 2009 com um aluno meu de mestrado, o Frederico Azevedo.
É nesse estudo que vocês estabelecem que o cérebro humano tem 86 bilhões de neurônios, menos do que os 100 bilhões que se supunha anteriormente.
Exato. Continuamos nessa linha. Agora temos um projeto em curso com bebês. Queremos saber com quantos neurônios o ser humano nasce. É um trabalho mais lento, mas de muito interesse. Se o bebê nascer com mais neurônios do que os que existem no indivíduo adulto, é sinal de que há uma perda no amadurecimento. Se nascer com menos, é sinal de que há um ganho após o nascimento. Isso pode ter implicações, inclusive na aprendizagem.
E o seu trabalho com pessoas com membros amputados?
Também está relacionado ao corpo caloso. As pessoas que sofrem amputação de uma parte qualquer do corpo, braço, perna, mama, orelha, podem apresentar um fenômeno chamado síndrome do membro fantasma, que consiste em sentir sensações da parte que não existe mais. A amputação elimina o membro, mas a região do cérebro relacionada à representação desse membro continua a existir. Os neurônios permanecem vivos, embora não recebam mais informação do membro. Parece haver uma ocupação desse território cerebral que ficou sem uso. Vimos que o corpo caloso adquire uma deficiência na região em que ocorria a troca de informações com o membro amputado. Nosso primeiro artigo mostrando isso saiu em 2015 no Journal of Neuroscience. É resultado do doutorado de um neurocirurgião, Elington Lannes Simões. Nossa hipótese é de que essa deficiência gere a sensação fantasma. O corpo caloso é um feixe majoritariamente inibidor. A atividade dos neurônios desse feixe em um hemisfério modula a atividade no hemisfério oposto por meio de inibição. Uma deficiência no corpo caloso pode diminuir essa inibição, produzindo a sensação fantasma.
Por que entrou na divulgação científica?
Tenho um cérebro muito dispersivo. Quando meu córtex pré-frontal era pouco mielinizado [imaturo], fui membro do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, e fiquei preso por dois meses. Eu era do centro acadêmico de medicina e os militares suspeitavam que eu fosse comunista. Era verdade, mas neguei até a anistia. Fui preso na casa dos meus pais, que foram agredidos, em 13 de junho de 1969, e fiquei no quartel dos fuzileiros navais da Ilha das Flores até 13 de agosto. Essa experiência me deu uma consciência social que levei para a ciência e a divulgação científica.
E o que você fez?
Em 1976, fui secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, no Rio. Por essa época, comecei a conversar com algumas pessoas, como os físicos Ennio Candotti e Alberto Passos Guimarães, os antropólogos Gilberto e Otávio Velho, e outros, e começamos a pensar o projeto de uma revista de divulgação científica. Em 1979, fui para o pós-doutorado nos Estados Unidos e Ennio tocou o projeto. Foi ele o criador de fato da Ciência Hoje. Quando eu estava no MIT, ele me pediu para visitar revistas de divulgação científica, como a Discovery, para ver como fazer uma revista desse tipo no Brasil. O editor da Discovery riu quando contei o plano. Era o início de 1982 e queríamos lançar a revista em julho, na reunião anual da SBPC, em Campinas. Não tínhamos um planejamento detalhado, mas conseguimos lançar a revista na data prevista. Vários colegas professores eram contrários à publicação porque não a julgavam necessária. Depois de um embate, a direção da SBPC topou publicar a Ciência Hoje, com a condição de que não seria um veículo oficial da entidade. Agora a revista está terminando por iniciativa da direção da SBPC, em vista da grave situação econômica da revista, que já estava deficitária, e do impacto da crise atual. A versão impressa não existe mais e é quase certo que mesmo a on-line deixará de existir. A Ciência Hoje das Crianças foi um projeto mais bem-sucedido. Era vendida para o MEC, que a distribuía nas escolas. Essa estratégia sustentou durante anos o Instituto Ciência Hoje e seus vários produtos.
Por que o senhor fez livros para crianças?
Uma das atividades nas reuniões anuais da SBPC do final dos anos 1980 era uma visita de cientistas a escolas de ensino fundamental. Em uma delas, falei para crianças de 10 anos sobre cérebro e neurônios. Para simplificar a linguagem, usei o termo “células nervosas” em vez de “neurônios”, falei por 15 minutos e depois uma criança perguntou: “Tio, tem célula calma?”. Percebi que minha simplificação não havia dado certo e comecei a pensar em escrever para crianças. Assim nasceram os cinco livrinhos da série “As aventuras de um neurônio lembrador”, publicada pela editora que minha mulher, Cilene Vieira, estava criando na época, a Vieira & Lent. A série foi transformada na peça de teatro Um neurônio apaixonado, pela roteirista Claudia Valli.
Recentemente, o senhor se expressou publicamente sobre algumas questões da ciência, o que não é muito comum entre cientistas. Por quê?
Não consigo aceitar o silêncio quando acho que devo me manifestar, como fiz nos casos da mudança da Suzana Herculano-Houzel para os Estados Unidos [em maio de 2016, Lent postou uma mensagem no Facebook dirigida a Suzana que dizia: “(…) Suas palavras pregam o desânimo, a desistência, o abandono do Brasil e de nossa ciência. A capitulação. (…) Não podemos dizer aos nossos alunos que desistam, que entreguem os pontos”]. Também discordei das declarações do também neurocientista Miguel Nicolelis em 2007. Quando Nicolelis voltou a trabalhar no Brasil, ele disse no site da Associação Santos Dumont para o Apoio à Pesquisa, criada por ele, algo do tipo, sobre o centro de pesquisa que ele estava construindo em Natal (RN): “Aqui nasce a neurociência brasileira”. Não era verdade. Já havia uma neurociência brasileira instalada, com gente como Aristides Leão [1914-1993] e Carlos Chagas Filho [1910-2000] no Rio, Miguel Covian [1913-1992] em Ribeirão Preto, César Timo-Iaria [1925-2005], que foi professor dele na USP, e Iván Izquierdo, no Rio Grande do Sul. Nicolelis foi messiânico, sugerindo que um só pesquisador poderia resolver todos os problemas dessa área. Já tínhamos visto essa história com Edson Xavier de Albuquerque, chefe do Departamento de Farmacologia na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Ele era amigo do João Leitão de Abreu [1913-1992], que havia sido ministro de um dos governos militares e chegou à UFRJ com a ideia de resolver o problema da farmacologia brasileira. Não sobrou nada. Foi embora e não deixou nenhum discípulo.