Sessenta e seis por cento dos municípios brasileiros não têm nenhuma oferta de ensino superior. Isso deriva do fato de que a demanda é ordenada pelos interesses dos atores que formam o cenário das políticas públicas de educação. No entanto, esse é apenas um dos enormes desafios que o Brasil deve superar para atingir os níveis adequados de qualidade da graduação e da pós. O tema foi debatido em sessão coordenada pelo Acadêmico Jailson Bittencourt de Andrade, na 66ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que aconteceu em Rio Branco, no Acre.

Abílio Baeta Neves, Luiz Roberto Liza Curi, Jailson Bittencourt e Adalberto Fazzio

O professor de sociologia e antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Abílio Baeta Neves foi um dos participantes da sessão, e afirmou ser surpreendente que problemas antigos persistam mesmo depois de ampliação de investimentos no ensino superior, tanto público quanto privado, inclusive com iniciativas como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). “Estamos caminhando de fato na direção de solucionar o problema do ensino superior?”, questionou.
Apesar desse crescimento, ainda temos uma taxa de matrícula no ensino superior muito baixa. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a taxa bruta é de 23%, e a líquida é de 15% – menor do que em países como Bolívia e Venezuela. “O Brasil não merece isso. Não temos a quantidade de investimento público que permitiria um salto significativo.” O Plano Nacional de Educação (PNE) prevê aumentar essas taxas, respectivamente, para 50% e 33% nos próximos dez anos.
Ao incluirmos o ensino médio na análise, o quadro torna-se ainda mais preocupante: em 2013, 18% da população de 15 a 18 anos concluiu o segundo estágio da educação básica. Isso significa que, atualmente, há mais estudantes no nível superior do que no médio.
Ensino superior defasado nos setores privado e público
Neves destacou que o nosso ensino superior está num patamar muito aquém do que o esperado, e não apenas no setor privado. Disse ainda que ainda não sabemos lidar com o processo de expansão de conglomerados de instituições privadas controladas por acionistas anônimos, como no caso do Grupo Kroton-Anhanguera, que tem mais de um milhão de estudantes. “Quem são esses investidores na educação?”
Apesar do pouco avanço na área, as expectativas são grandes: “Imaginamos que o nosso sistema de ensino superior deva ser capaz de dar todas as respostas que o Brasil precisa e que todas as instituições devem caminhar na mesma direção”, comentou Neves. Ele aproveitou para falar sobre a experiência do programa Ciência sem Fronteiras (CsF), que “mostrou a ferida” e trouxe preocupações.
Bolsistas do CsF, oriundos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), foram unânimes ao relatar que a estrutura de ensino da instituição em que estudaram em San Diego, nos Estados Unidos, era completamente diferente – mais “leve”, com poucas horas em sala de aula e muitas de estudo e orientação. Os professores cobravam fortemente a realização dos trabalhos e os intercambistas se sentiram mais à vontade. “Eles gostaram muito e ficaram preocupados com a volta ao Brasil”, disse Neves. “Sugeri à reitora que usasse essa experiência para fazer mudanças.”
O professor considerou que, nas universidades públicas, mexer na oferta de disciplinas é um tabu, inclusive porque torna inevitável a reformação dos professores. “Não temos nenhum estímulo. O Reuni [Reestruturação e Expansão das Universidades] foi um programa homogeneizador. As instituições estão totalmente uniformizadas num padrão que é insuficiente.”
Para Neves, buscar a massificação do ensino e a excelência das instituições ao mesmo tempo é pretensioso demais. “Isso não existe em nenhum lugar no mundo. Entre as universidades de ponta, pouquíssimas têm mais de 25 mil alunos. Isso não significa que a população é desassistida, e sim que há sistemas que são complementares e subsidiários.”
Os números do ensino superior
Luiz Roberto Liza Curi, do Conselho Nacional de Educação (CNE), falou que o corporativismo é um problema na formulação de políticas publicas de educação superior. Esse cenário é determinado por vários atores, como o Ministério da Educação (MEC), o CNE, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). O desafio é chegar a um consenso entre os interesses de todos.
Trata-se de um esforço enorme. Segundo Curi, é justamente por conta dessa dificuldade de conciliação de interesses que dados como aquele citado no início desta matéria são uma realidade. Se, entre os 5.564 municípios brasileiros, 3.662 não têm educação superior, por mais que tenham baixa densidade populacional, é porque não é relevante para os atores proeminentes. “Mas e como fica a saúde, por exemplo? Como levar médicos e hospitais para uma cidade sem levar o curso de medicina? Por isso, as políticas de saúde e de infraestrutura têm que interferir no processo de expansão do ensino superior.”
Pela mesma razão, a distribuição das instituições de ensino superior pelo país não é igualitária. 49% estão no Sudeste, 17% no Sul, 18% no Nordeste, 10% no Centro-Oeste e apenas 6% no Norte.
Outro dado preocupante é o da ampla concentração de matrículas: 36,2% destas são em áreas de ciências sociais aplicadas, como administração, direito, pedagogia e ciências contábeis. “Isso também é consequência dos atores, eles é que definem essa expansão. Abrem cursos de direito porque, como há muitos concursos públicos, haverá mais alunos”, disse Curi.
Ele abordou também o setor privado, que não pode ser apenas uma oferta indesejável de matrículas. “Não basta construir a faculdade e ganhar a autorização, tem que entregar o resultado.” Hoje, dos sete milhões de matrículas no ensino superior, apenas 27% são em instituições públicas. Do mesmo modo, 87% das 2.416 instituições de graduação e pós-graduação são privadas. Por isso, esse setor merece atenção.
Curi informou que metade dos matriculados no setor privado não concluem o curso. Na engenharia, essa taxa de evasão chega a 77%, contra 44% no setor público. Além disso, um fenômeno que tem se tornado relevante é o ensino a distância (EAD), que cresceu 12% em relação ao ano passado. É preciso pensar, ainda, nos oito milhões de jovens que nem trabalham, nem estudam (a geração “nem nem”).
Reformar o ensino superior com interdisciplinaridade
Para o professor de física da Universidade de São Paulo (USP) e Acadêmico Adalberto Fazzio, é preciso, antes de tudo, separar a invenção – que é a pesquisa, então deve ser feita na universidade – da inovação – correspondente ao produto, portanto está ligada ao mercado.
Para ele, a principal função da unive
rsidade continua sendo a formação de pessoal. “Cumpri-la, frente ao crescimento explosivo da inovação tecnológica e ao caráter cada vez mais interdisciplinar dos avanços no conhecimento, requer uma revisão profunda”, declarou, citando Manifesto de Angra dos Reis sobre a Reforma Universitária (que pode ser lido na publicação da Academia Brasileira de Ciências “Subsídios para a Reforma da Educação Superior”). “Parece que a universidade é a solução de todos os problemas.”
Fazzio afirmou, ainda, que a interdisciplinaridade não é algo novo. Na verdade, até o século 19, não existia barreiras disciplinares, ou seja, o foco eram os temas, e não as disciplinas. “Os centros de pesquisa das empresas de sucesso sempre foram interdisciplinares.” O Acadêmico lembrou que, apesar da formação especializada do século 20, sete físicos, nove químicos e um engenheiro ganharam o Nobel de medicina, 12 físicos ganharam o Nobel de química e dois engenheiros ganharam o Nobel de física.
Ele deu o exemplo da Universidade Federal do ABC (UFABC), criada em 2005 quando a região, com três milhões de habitantes, não tinha nenhuma instituição desse tipo. Fazzio contou que, nessa universidade, o aluno tem a opção de fazer um bacharelado interdisciplinar, com duração de três anos. Em 2013, já contava com dez mil estudantes.
Jailson Bittencourt de Andrade, professor de química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), enfatizou que é justamente na capacidade de diálogo entre as áreas e na integração entre educação, ciência e tecnologia que devem ser centradas as mudanças de atitude, tanto no setor acadêmico quanto no empresarial.