Como bem se sabe, o Brasil é um dos países com taxas de desigualdade social incrivelmente alarmantes. Outros tipos de desigualdade também se destacam, mas um deles – a desigualdade de gêneros na ciência, de forma positiva. Não que aqui a existência de discriminação seja um mito; dados comprovam que os níveis profissionais mais altos nas carreiras científicas ou de política de ciência e tecnologia ainda são ocupados pelos homens. A intensidade dessa estratificação foi alvo de discordância entre os palestrantes do simpósio “Fortalecendo a Presença das Mulheres na Ciência Brasileira”, mas todos concordam que em muitos outros países a situação discriminatória é bem mais grave.

Promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) no fim do ano passado, o evento reuniu pesquisadoras de peso para analisar, dentre outras questões, a realidade brasileira no que se refere à presença da mulher no campo científico. A socióloga Alice Abreu foi uma delas. Professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 2009, ela trouxe dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) sobre a inserção das mulheres no ensino superior. Só há três países no mundo em que a maioria de doutores titulados é feminina e o Brasil está entre eles. Os outros são Portugal e Itália. Aqui, de acordo com o órgão, elas estão em maior número dentre os mestres titulados desde 1997 e, dentre os doutores, desde 2004. Mas, segundo aponta Alice, muitas se perdem no caminho que vai da entrada na universidade até a sua consolidação no mercado de trabalho. “O grande desafio da ciência nacional, portanto, é assegurar que essas mulheres altamente qualificadas participem de maneira integral das mais altas posições do sistema”, opina. A palestrante ressaltou que nunca houve uma ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) ou uma presidente mulher na ABC.

A conferencista Alice Abreu

Mas, se comparada à realidade mundial, Alice coloca a situação nacional à frente de muitos dos demais países. Em seu entendimento, o Brasil conta com um sistema de CT&I complexo e robusto, além de fortes investimentos em treinamento e um rápido crescimento no número de publicações científicas. Suas políticas voltadas para o gênero, ela defende, também são sólidas. Por que, então, a baixa participação nos escalões superiores? Apesar de enxergar isso na prática – já que, dentre os professores titulares das universidades brasileiras, há muito mais homens do que mulheres – a geneticista e Acadêmica Mayana Zatz é enfática: “Eu não acho que nós enfrentemos discriminação na ciência.” De acordo com a conferencista, os problemas do Brasil são outros, como a burocracia excessiva e a difícil importação de material para pesquisa.

Graduada em biologia, curso de maioria feminina, Mayana só se sentiu desafiada por ser mulher quando foi aos Estados Unidos cursar um pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Segundo a pesquisadora, que é membro titular da ABC desde 1996, suas colegas de trabalho diziam que ela deveria “parecer profissional para conseguir algum respeito dos homens”. E, na prática, isso significava usar maquiagem, cabelo preso e salto baixo. Recusando-se a seguir esses padrões, a professora teve de trabalhar muito até provar que merecia reconhecimento por suas contribuições.

Outras conferencistas do encontro compartilharam experiências similares. Coordenadora da primeira sessão do simpósio, a professora da UFRJ e Acadêmica Belita Koiller (na foto à direita) contou que, ao viajar aos EUA, ela era a única mulher do local onde trabalhava. Também em solo norte americano, a Acadêmica Eliete Bouskela mudou seus planos por não ter se adaptado à realidade discriminatória da primeira cidade que visitou. Foi, então, à Universidade de Washington e entrou para um grupo de discussões sobre gênero e participação feminina na ciência. Algum tempo depois, mudou-se para a Suécia, animada com as perspectivas de igualdade de gênero que a esperavam: de acordo com diversas pesquisas, 92% das mulheres suecas estão empregadas. Mas a situação era um pouco diferente do que Eliete imaginava. “Essa porcentagem é verdadeira, mas isso não significa que todas elas tenham uma carreira. As mulheres trabalham por necessidade. No país, se a mulher não trabalha, o homem não tem direito a uma significativa diminuição em seu imposto de renda”, explica. Além disso, segundo a pesquisadora, é comum que o trabalho feminino seja em tempo parcial. Porém, como fazer ciência em tempo parcial? Por isso, na Suécia, a colocação das mulheres no campo científico é extremamente ruim. “O número de professoras representava um décimo do numero total de professores da universidade onde eu trabalhava”, exemplifica.

Eliete Bouskela chegou inclusive a ter uma filha na Suécia

Interessada no tema, Bouskela conheceu um grupo de sociólogas no Brasil que estudava como a questão do gênero se colocava desde a infância, ainda no ensino fundamental. Mesmo com maioria feminina de docentes nessa etapa das escolas, muitas das professoras entrevistadas contaram que elas prestavam mais atenção nas perguntas feitas pelos meninos. Em seu entendimento, eles tinham maior chance de se tornarem profissionais bem sucedidos. E não importava que os cadernos das meninas fossem mais organizados e suas performances escolares, superiores.

Embora pareça uma realidade distante, cientistas como a Acadêmica Yraima Cordeiro também enxergam no ensino fundamental o principal problema do Brasil. Quando se trata da formação de jovens, é imprescindível investir em divulgação científica desde cedo. Tendo isso em mente, a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia criaram o “Cientista do Nosso Estado”, programa em que os pesquisadores participantes devem desenvolver ao menos uma atividade anual com alunos de escolas públicas. Para a Acadêmica, atitudes como essa são fundamentais para despertar o interesse de crianças e adolescentes pelo campo cientifico. “E essa obrigação acaba se tornando um prazer”, atesta Yraima. Mas vale lembrar: trata-se de uma via de mão dupla. “Também é necessário conscientizar as instituições públicas da importância de estar aberta a esse tipo de atividade”, observou Yraima.

Yraima Cordeiro é membro afiliado da ABC há dois anos