Leia o artigo dos Acadêmicos Adalberto Vieyra, professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, e Debora Foguel, professora do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Conselho da SBPC, publicado no JC e-mail em 10/12:
O caminho virtuoso da pós-graduação brasileira
Primeiramente, faz-se necessário reconhecer o que significou, para a ciência brasileira, a existência de um modelo de programas de pós-graduação bem estruturado, diversificado em termos de áreas de conhecimento e cobertura do território nacional, avaliado pelos pares através de indicadores transparentes e, até recentemente, financiado com algum grau de previsibilidade e valendo-se de critérios que não excluíam áreas de saberes.
Este modelo exitoso nos trouxe até aqui e, a recente pandemia – ou sindemia, como alguns preferem denominar o estamos vivendo, já que há sinergismo entre a COVID-19 com outras pandemias, como as doenças pré-existentes, as mudanças climáticas, a pobreza e a fome – desvelou como que a ciência, as instituições de pesquisa, os profissionais de saúde e os artistas deste País são capazes de responder a desafios monumentais e sem precedentes.
Ainda que o país apresente fragilidades na educação básica (aqui residem a maior parte das Obras Inacabadas da nossa História!) e no ensino superior, é na pós-graduação que nossos resultados têm sido destacados e reconhecidos internacionalmente. Além da qualificação profissional de docentes e pesquisadores, o crescente desempenho da pós-graduação brasileira tem tido um impacto direto na produção científica nacional.
O rápido crescimento, tanto na formação de pessoal altamente qualificado em nível pós-graduado, como em publicação de artigos científicos, livros e obras artísticas é mais bem apreciado e valorizado quando recordamos que a primeira dissertação de mestrado defendida em um curso de pós-graduação no país ocorreu em 1963 e o primeiro doutorado nessa mesma década. Em um período de cerca de 60 anos, o país foi capaz de construir um sistema de pós-graduação que se tornou referência em nível mundial.
E este sistema não se acomodou! Estendeu seus braços acolhedores para a educação básica (Criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES da Educação Básica), buscou parcerias com o setor empresarial e produtivo (Mestrado e Doutorado Profissional), criou programas em rede nacional (Mestrados Profissionais para Professores da Educação Básica e Programas Multicêntricos com sede em Sociedades Científicas, incluindo no sistema de pós-graduação jovens docentes talentosos contratados em universidades distantes dos grandes centros) e instituiu políticas de cotas sócias e raciais em vários programas.
Embora nos pareça que estas últimas ocorreram de forma tímida e, por isso, aqui, aproveitamos para conclamar àqueles que nos leem que façam essa discussão tão necessária nas suas instituições. Essa é, talvez, a maior e mais triste obra inacabada da nossa História para a qual a pós-graduação precisa se debruçar e dar também sua contribuição. Não é possível que, no ano de 2020, apenas 29% dos alunos de pós-graduação do País sejam pretos e pardos e que cerca de 18% dos docentes universitários sejam desse grupo de pessoas majoritário em nosso País ou que, ainda, esse grupo represente menos de 10% dos docentes doutores na pós-graduação. Basta!
Apesar de todo esse esforço, ainda o Brasil figura dentre as nações com menores taxas de mestres e doutores na sua população. São cerca de 0,8% de brasileiros de 25–64 anos com título de Mestre (13% é a média dos países da OCDE) e 0,2% os com título de Doutor (1,1% é a média da OCDE). Essa é uma das obras inacabadas de nossa História! Formar jovens qualificados para dar conta dos desafios atuais e futuros… esses últimos sequer os conhecemos e não sabemos em que esquina estão à espreita.
Ou seja, nossa jornada enquanto Nação que se encontra às vésperas de completar 200 anos de Independência, mas longe de alcançar sua plena Soberania, ainda é longa e, ao que tudo indica, será ainda mais árdua e extensa frente às políticas de desmanche do sistema que estamos assistindo. Insistimos no termo desmanche e não desmonte, já que entendemos que para algo que é desmontado há sempre a possibilidade do remonte, ao passo que algo que foi desmanchado, talvez se perca para sempre…
Não podemos permitir os cortes sobre cortes que vêm sendo feitos no orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovacões, no número de bolsas de iniciaçao científica, pós-graduação e pós-doutorado. Onde pensam os governos federal e estaduais “estocar” os pós-doutores formados nos últimos anos no País, profissionais altamente qualificados e desempregados? As portas da Infraero não podem ser a solução para esses profissionais! O que esperam para criar um amplo programa Nacional de Retenção de Cérebros Brasileiros?
Ressaltamos que a eficiência deste modelo de pós-graduação foi nutrida, e até mesmo nutriu, políticas públicas exitosas no país onde destacamos as realizações seguintes:
(a) A ampliação do sistema de Universidades Federais. Nas últimas décadas, especialmente na primeira década do século XXI, houve um aumento em quantidade e na distribuição pelo Território Nacional, sobretudo em regiões antes desassistidas: em 2002, tínhamos 43 sedes de universidades federais, que passaram para 59 com 171 campi em 2009. Lembremos que cerca de 90% da pesquisa no Brasil ocorre nas universidades públicas deste País, o que significa que subfinanciá-las é sinônimo de desmonte da pesquisa nacional com graves consequências para o exercício pleno da Soberania Nacional!
(b) O aumento do número de doutores atuando no país, juntamente com o aumento dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado), demandou a criação de programas de bolsas de estudo implantados tanto pelo governo federal como também pelas fundações estaduais de apoio à pesquisa. Em todos os níveis de formação: alunos do ensino médio, graduandos em iniciação científica, pós-graduandos em nível de mestrado e doutorado, e pesquisadores tanto em nível de pós-doutorado como aqueles merecedores de bolsas de produtividade em pesquisa.
(c) A criação da CAPES da Educação Básica. Resgatando seu significado: aperfeiçoamento de pessoal DE nível superior e não PARA o nível superior, com um genuíno envolvimento da creche até o pós-doutorado.
(d) O Programa Nacional de Incubadoras e Parques Tecnológicos é outro subproduto que merece ser citado, uma vez que já propiciou a criação de mais de 400 incubadoras de empresas e quase uma centena de iniciativas associadas aos Parques Tecnológicos. Este programa, e outros por ele inspirados, tem favorecido o empreendedorismo tecnológico e social. E, em consequência, a formação de empreendedores científicos, tecnológicos e sociais mais e mais passa a ser também um dos objetivos da pós-graduação brasileira.
(f) O Portal de Periódicos da CAPES que abriga uma coleção de obras de referência e de periódicos sem paralelo em abrangência no mundo, cobrindo todas as áreas do conhecimento tem, sabidamente, um elo direto com a pós-graduação. E tem contribuído para tornar realidade o acesso imediato e igualitário à informação científica, inclusive nos mais remotos lugares do País.
(g) O processo de avaliação da CAPES, introduzido no Brasil há mais de 40 anos garantiu progressos extraordinários da nossa ciência, na qualificação de recursos humanos e na capacitação de 38 mil grupos de pesquisa em todo o Brasil.
As cinco “Eras” da Pós-graduação Brasileira: Estaríamos de volta ao Cretáceo, era das grandes extinções?
Acreditamos que estamos vivendo o que seria a “5a Era” da pós-graduação brasileira, muito temerosos pelo porvir. Uma era de profundas reflexões, onde os percursos formativos dos estudantes, sua natureza e seus objetivos deveriam constituir a pauta prioritária de reflexões e análises por parte dos programas de pós-graduação. Uma era onde a preocupação com a integridade em pesquisa e a ética deveria permear todo o percurso formativo.
Poderíamos dizer que a “1a Era” da pós-graduação no país caracterizou-se pela estruturação e normatização do sistema em si, a partir da comissão Sucupira e seu parecer exarado em 1965, ano em que existiam no país apenas 38 programas de pós-graduação (PPGs). Foi o período da construção dos alicerces da pós-graduação brasileira que, junto com o sistema universitário, já começava historicamente atrasado.
A “2a Era” foi dominada pela concepção e delimitação do que se entendia por “tempo de titulação”. O tempo de titulação foi, nesse momento, um dos indicadores mais relevantes a ser perseguido, mas este já não pode ser mais avaliado fora da atmosfera de cada programa e de cada área e dos próprios projetos. Projetos novos, que impliquem em “sair da zona de conforto” (e mais do mesmo) e que demandem altos investimentos, não podem ser simplesmente comprimidos em janelas temporais rígidas.
A “3a Era” foi demarcada pela implantação do sistema QUALIS, que normatizou o impacto das produções acadêmicas em periódicos. O sistema QUALIS acaba de passar por uma profunda reestruturação para corrigir as distorções e heterogeneidade que havia no seu uso entre as áreas. Hoje, há vozes que se insurgem contra o uso desse sistema, que indica quais são os veículos que atraem publicações de melhor qualidade. Não podemos admitir que a procura constante de indicadores independentes de nossas opiniões seja substituída por opiniões pessoais ou sentimentos. Não nos furtaríamos a afirmar que o Brasil dispõe do melhor sistema de avaliação da pós-graduação do planeta! E que o Qualis, tem contribuído decisivamente para isso. Graças ao seu contínuo aperfeiçoamento!
A “4a Era” poderia ser definida como a era das discussões, aspirações e grandes iniciativas em torno do trinômio “internacionalização/ nucleação/ solidariedade”, ao qual se juntam, cada vez com mais força, a ética e a integridade em pesquisa. Esta Era ainda não se esgotou, em especial no que tange a internacionalização, que, no Brasil, ainda é fomentada por programas governamentais descontínuos e financeiramente modestos e que, ademais, mudam de foco constantemente. Sabemos o quanto é enriquecedor para a ciência o intercâmbio de estudantes e pesquisadores, seja na melhor formação dos discentes, seja para o enriquecimento da pesquisa por meio da coautoria, e ainda para a melhor qualificação do que se cria em termos nos mundos das ciências, das letras e das artes.
Deu-se no cretáceo a extinção de inúmeras formas de vida animais e vegetais do planeta Terra. As causas dessa extinção em massa ainda não são bem definidas. Um meteoro teria atingido a Terra? Movimento dos continentes? Mudanças nas condições climáticas? Hoje, buscamos vestígios do que foi a Terra e de informações de como eram e como viviam esses animais e plantas extintos.
Tememos que estejamos vivendo o cretáceo da pós-graduação brasileira. Sabemos suas causas e vamos lutar para combatê-las por acreditar na importância da ciência em todas as suas áreas e vertentes (básica, aplicada, humanas e sociais, tecnológica etc.), das artes e da literatura. Não queremos que os seres do Antropoceno, no futuro, nos visitem em busca dos vestígios dessa história de sucesso!