Os Acadêmicos Mercedes Bustamante (Departamento de Ecologia, UnB) e José Alexandre Felizola Diniz Filho (Departamento de Ecologia, ICB, UFG) e o pesquisador Paulo Inácio Prado (Instituto de Biociências, USP) publicaram o artigo abaixo, subscrito pelos outros membros da Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne 72 cientistas de instituições de ensino e pesquisa brasileiras:

A pandemia do novo coronavírus está traduzindo em números trágicos não somente o descaso com o sistema de saúde pública mas também o discurso e as políticas anticientíficas. Apesar desse contexto, instituições e pesquisadores brasileiros estão cumprindo sua função social e mobilizam instalações, equipamentos e profissionais para apoiar as ações no combate à pandemia.

No entanto, a atual gestão da Capes, principal agência de fomento à pós-graduação no Brasil, se isola nesse momento ao adotar medidas que debilitam as políticas de qualificação de recursos humanos.

Às vésperas do carnaval, a Capes anunciou um novo modelo de distribuição das cotas de bolsas de mestrado e doutorado para o ano de 2020. Esse modelo foi apresentado pela Capes como inédito e inovador, capaz de “…corrigir distorções na distribuição do benefício e valorizar os cursos com melhor desempenho acadêmico e aqueles oferecidos em municípios com menor desenvolvimento humano”. No entanto, análises mais cuidadosas dos padrões de perdas e ganhos de bolsas mostraram que o modelo não fazia nem uma coisa nem outra.

A lógica do modelo é relativamente simples e consiste em gerar um número esperado (chamado número-base) de bolsas de mestrado e doutorado que cada programa deveria ter, considerando a avaliação dos Programas de Pós-Graduação- PPGs (notas que variam de 3 a 7) em diferentes áreas do conhecimento. A partir do número-base, o PPG pode aumentar ou diminuir sua cota pelo efeito de multiplicadores, calculados a partir de faixas de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município e do número-médio de titulados ao longo de 4 anos. Se um PPG possuísse mais bolsas do que o esperado pelo modelo, ele perderia até 10% das suas bolsas. Já os PPGs que possuíssem menos bolsas do que o esperado pelo modelo poderiam ter um incremento de até 10% (ou até 30%, no caso dos programas de excelência que são aqueles com notas 6 e 7). Entretanto, havia problemas em todos os componentes desse modelo: o número-base é muito baixo e os multiplicadores causam acréscimos em uma proporção relativamente pequena de casos (apenas 10% dos PPGs conseguiria aumentar sua cota esperada em 50%).

Ainda, como existem muitos cursos novos com poucas bolsas, o que aconteceria em princípio é que as cotas seriam transferidas de cursos maiores e consolidados para cursos com poucas bolsas. Isso seria até adequado em um primeiro momento, mas as coisas não são tão simples assim. Como a Capes estabeleceu um número esperado de cotas para cada PPG, com a aplicação anual do modelo, os PPGs maiores e consolidados (com mais bolsas) vão continuar perdendo cotas, enquanto os programas menores, que em geral têm notas mais baixas e menos alunos titulados, vão rapidamente deixar de ganhar bolsas por atingirem o número esperado. Assim, a aplicação reiterada do modelo poderia, em curto a médio prazo, desestruturar programas que já estão funcionando bem e, ao mesmo tempo, não ser suficiente para melhorar a qualidade daqueles que estão começando e recebendo, efetivamente, poucas bolsas novas. Em resumo, o modelo causaria redução no total de bolsas e distribuiria de maneira desigual o que resta entre áreas de avaliação.

A comunidade acadêmica foi surpreendida com a recente publicação da Portaria no. 34 da Capes, que dispõe sobre as condições para fomento a cursos de pós-graduação stricto sensu no país. O modelo descrito na Portaria é diferente e pior do que havia sido anunciado anteriormente e não foi discutido com os pró-reitores de pós-graduação das universidades brasileiras, tampouco com os coordenadores de área que atuam junto à Capes e com os representantes docentes e discentes. Em manifestações posteriores à publicação da polêmica portaria, a Capes indica que não há cortes de bolsas. Mas, o modelo embute uma redução acelerada das bolsas disponíveis, inclusive para programas de pós-graduação de excelência.

A Portaria também implica em remanejamentos de bolsas sem consulta aos programas ou às coordenações de áreas ou fundamentos transparentes. Lembramos que a avaliação dos cursos de pós graduação referente ao quadriênio 2016-2019 será realizada em 2020. Portanto, as mudanças propostas são prematuras por não estarem baseadas em uma visão mais recente dos PPGs e desestabilizam o sistema de pós-graduação no país.

Programas de Pós-graduação dependem de planejamento de médio e longo prazos. A formação de recursos humanos qualificados não é instantânea ou pode funcionar no modo liga/desliga. As bolsas permitem que os alunos tenham dedicação exclusiva e sejam capazes de desenvolver projetos de pesquisa inovadores de alto nível. Na sequência de precarização da ciência no Brasil, uma redução de bolsas torna ainda mais difícil a manutenção dos níveis de excelência dos PPGs consolidados e a melhoria da qualidade de programas novos.

Isso ocorre justo no momento em que a Capes insiste (corretamente) que a produção dos discentes deve ocupar um papel de destaque na avaliação dos PPGs. Um número menor de alunos dedicando-se integralmente a seus projetos impacta negativamente a produção científica e também a demanda e o interesse pela pesquisa e pós-graduação. A redução do número de ingressantes se traduz em menor número de titulados.

Certamente há necessidade de avaliar distorções na concessão de bolsas no Brasil, mas a solução desses problemas precisa de uma discussão ampla e aberta com a comunidade científica e não da implementação açodada de um modelo cujos pressupostos e objetivos não estão claros. Ao contrário do que está sendo divulgado, o modelo não está valorizando realmente o mérito e não considera diferenças regionais, entre áreas de conhecimento ou os passivos históricos na construção da pós-graduação brasileira.

A Capes é fundamental para o Brasil e se consolidou por meio de fortes interações com a comunidade acadêmica. Os pesquisadores, de hoje e de amanhã, e as instituições brasileiras demandam a revogação da Portaria 34 da Capes e a abertura de um processo responsável de debate sobre a concessão de bolsas no país.