Leia artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq, publicado no Jornal da USP em 1 de outubro:
Observando o que acontece no mundo, afirmo que vivemos tempos sombrios. A escuridão, que cobre cada vez mais o mundo, tem diversos componentes, muitos deles desconexos, que, combinados, formam um véu cinzento que torna o futuro incerto.
As guerras mais destacadas pelos meios de comunicação ocorrem no Médio Oriente e na Europa. No entanto, o número de mortes por guerras e outros conflitos armados em África, bem como as mortes violentas decorrentes do crime organizado, muitas vezes superam as relatadas pelos meios de comunicação. As chamadas mortes indiretas, decorrentes desses conflitos, mas não causadas por ferimentos de guerra ou outros tipos de violência, agravam este panorama. As alterações climáticas, atribuídas por consenso científico à ação humana, estão a produzir consequências trágicas em todo o mundo. As nações mais ricas e poluidoras fingem não ter nada a ver com elas. A isso se soma a situação política de alguns países, que está a levar as democracias ao suicídio e ao surgimento de movimentos políticos extremistas.
Hannah Arendt, em alguns dos seus livros, como Homens em tempos sombrios ou Origens do totalitarismo, analisa a escuridão dos tempos. Não vou aqui me alongar sobre a brilhante e profunda análise de Hannah, simplesmente copio duas frases que, segundo ela, caracterizam a escuridão do mundo:
• Dissolução da verdade factual: em ensaios como Verdade e política e Sobre a mentira na política, ela mostra como a manipulação sistemática dos fatos cria um clima de irrealidade. Quando tudo se torna opinião, extingue-se a luz que guia o julgamento comum.
• Massificação e solidão: em Origens do totalitarismo, a base do totalitarismo é a atomização: indivíduos isolados e desconectados tornam-se presas fáceis de ideologias que prometem um significado total. A solidão política abre caminho para o terror.
A obscuridade deste mundo não tem o mesmo tom em todos os lugares. Algumas características são semelhantes e estão a ser distribuídas, quase universalmente, pelas tecnologias de comunicação instantânea. Alguns tons sombrios – paradoxalmente – são evidentes. Sempre que fatos e dados se confundem com opiniões e ideologias, as relações humanas se obscurecem, a ciência se retrai e a política torna-se cinzenta. O isolamento e a atomização dos indivíduos impedem olhar para o outro e vê-lo como um ser humano, igual a quem o está a olhar. Os movimentos identitários, que muitas vezes defendem causas justas, contribuem, às vezes sem querer, para o isolamento, pois as relações só se dão dentro do mesmo círculo.
(…)