Em março deste ano, o ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, estava participando de um encontro da American Physical Society (APS), da qual é membro, quando, durante uma assembléia, o presidente da instituição, John M. Doyle, anunciou que estava entrando com um processo contra o novo mandatário norte-americano por conta de demissões em massa nas agências federais de ciência. Em seguida, a reunião foi conectada às agências e Doyle pediu uma salva de palmas para seus funcionários. “Eu fiquei impressionado, todos se levantaram e aplaudiram longa e veementemente. A resistência estava chegando”, afirmou Davidovich, visivelmente emocionado.
O relato foi feito durante a mesa-redonda “A Reviravolta na Política Científica Norte-Americana e seu Impacto Global”, realizada no dia durante a 77ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Recife. Além de Davidovich, a mesa também contou com os presidentes da ABC e SBPC e Acadêmicos, Helena Nader e Renato Janine Ribeiro; a Acadêmica e professora da Escola de Saúde Pública de Harvard, Marcia Caldas de Castro; e o presidente da American Association for the Advancement of Science (AAAS), Sudip Parikh.
Censura, perseguição e cortes internos
Desde que tomou posse, em 20 de janeiro, o novo governo dos Estados Unidos iniciou uma campanha contra a ciência e os cientistas. O processo começou com o ataque às medidas voltadas à diversidade, equidade e inclusão, sumarizadas na sigla “DEI”, que se tornaram palavras proibidas na administração pública. O novo executivo chegou ao ponto de criar listas de palavras e temas censurados, sobre os quais os pesquisadores não poderiam se debruçar sob o risco de perderem financiamento.
Atualmente, mais de 50 instituições de ensino e pesquisa estão sofrendo investigação federal por conta das medidas do presidente. Além disso, estão planejadas demissões em massa no setor científico, desde a Nasa até centros de saúde, e cortes de 25% em todo o orçamento federal voltado à ciência. “Isso dá 50 bilhões de dólares, sobretudo para a pesquisa básica, que é a que mais se beneficia do financiamento federal”, afirmou o presidente da AAAS.
Um exemplo de instituição ameaçada é o National Institute of Health (NIH), para o qual foram anunciados cortes de 35% no orçamento. Na última década, dos 356 novos medicamentos aprovados nos EUA, apenas dois não contaram com financiamento do NIH, conforme apontou a Acadêmica Marcia Castro. “Pelo NIH agora, se um pesquisador recebe dinheiro, ele não pode mais ter nenhum subcontrato com colaboradores de fora. O problema é que, em saúde global você precisa ter esse colaborador, senão sua pesquisa é completamente colonial”, exemplificou.
Retirada de financiamentos externos
Os rumos da política norte-americana não impactam apenas aquele país. Em se tratando de uma das potências globais quando o assunto é ciência, é de se esperar que as medidas extrapolem as fronteiras, deixando desamparadas políticas em todo o mundo. E em nenhuma área o impacto é tão duro quanto na saúde. A retirada de cena do investimento americano, em alguns países, significa a diferença entre a vida e a morte.
Os números foram trazidos pela Acadêmica Marcia Caldas Castro. Um dos exemplos mais célebres é o corte de 50% no orçamento da USAID, agência federal norte-americana que, entre outras coisas, financia ajuda humanitária em alguns dos lugares mais vulneráveis do mundo. “Um estudo recente estimou que, caso isso continue, em 5 anos teremos tido 14 milhões de mortes evitáveis associadas apenas aos cortes na USAID”, afirmou Castro.
Essas mortes estão associadas à doenças cardiovasculares e respiratórias, ao câncer, à falta de prospecção de novos medicamentos e a desarticulação de cadeias inteiras de amparo que contavam com o financiamento. “Em alguns dos países mais vulneráveis o salário inteiro de profissionais associados à programas de saúde eram pagos pela USAID. O Demographic Health Survey (DHS), a maior fonte de dados em saúde para o continente africano, era financiado com esse dinheiro, portanto ficaremos no escuro. (…) Não estamos falando de dinheiro para publicar paper, mas de dinheiro para aumentar a expectativa de vida, coisa que a ciência já provou que é capaz de fazer”, afirmou a Acadêmica.
Resistência e mobilização da comunidade científica
A Universidade de Harvard, da qual a Acadêmica faz parte, entrou no centro da disputa entre Trump e a ciência ao anunciar publicamente que não cumpriria com uma lista de exigências do novo governo. Em represália, o governo congelou mais de 2 bilhões de dólares em bolsas e cancelou contratos com a instituição. O caso foi parar na justiça, em ação movida pela universidade em que acusa o presidente de atentar contra a autonomia universitária e a liberdade acadêmica.
O episódio é uma mostra de que a resistência científica é possível e necessária. Sudip Parikh, presidente da AAAS, se mantém otimista. Ele enxerga na trajetória da ciência norte-americana percalços e inequidades que foram superados progressivamente, fazendo com que o setor refletisse melhor toda a diversidade da população norte-americana. “Temos que ter em mente que vivemos tempos maravilhosos na ciência, a quantidade de descobertas que trataram doenças antes incuráveis, a quantidade de investimentos em pesquisa básica, cujo único objetivo é o conhecimento, continua sendo uma época maravilhosa para estar vivo. Mas estamos numa encruzilhada e precisamos decidir para onde queremos ir”, frisou.
Parikh frisou que, mais do que nunca, a ciência precisa tentar se comunicar melhor e alcançar a sociedade, já que quando ela compreende a importância e o poder das instituições científicas, fica muito mais difícil cortar verbas. “Nós já conseguimos apoio bipartidário no Congresso contra os cortes e estou convencido que eles não chegarão aos níveis ventilados. Ainda não chegamos ao final dessa história”.
Em tempos turbulentos, a presidente da ABC, Helena Nader, destacou a importância da diplomacia científica como forma de resistência conjunta. “É chocante que o país que inspirou a criação do nosso próprio sistema científico esteja com essa postura. (…) Diplomacia científica envolve diplomacia para a ciência, ciência na diplomacia e ciência para a diplomacia. A defesa da ciência refere-se à promoção ativa de integração das evidências científicas nas políticas públicas e no discurso social, buscando combater a desinformação e proteger a independência científica. É resistir à interferência política em pesquisas e defender práticas baseadas em evidências”, afirmou.
Assista à mesa-redonda na íntegra:
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