1ª Sessão dos Membros Afiliados da ABC

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A primeira sessão protagonizada pelos membros afiliados da Academia Brasileira de Ciências, realizada durante a Reunião Magna de 2025, teve como tema central os desafios e as interseções entre a Amazônia Urbana e a Saúde na Amazônia. A sessão foi coordenada pelos membro afiliados Giovana Bataglion (UFAM) e por Fernando Val (UEA), pesquisador com trajetória dedicada à saúde coletiva na região.

Abertura

Giovana Bataglion

Iniciando os trabalhos, Giovana Anceski Bataglion agradeceu, em nome dos membros afiliados, a oportunidade de atuarem não apenas como ouvintes, mas como protagonistas na elaboração e realização da Reunião Magna, destacando a importância de construir um evento enraizado nas experiências e urgências da Amazônia.

Ela é professora adjunta do Departamento de Química do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Suas pesquisas na área de química analítica envolvem a aplicação de técnicas cromatográficas e espectrometria de massas em estudos ambientais e de geoquímica orgânica. Atua ainda no desenvolvimento e validação de métodos analíticos na área ambiental, biológica e ciência de alimentos. Coordena projetos de pesquisa (Fapeam e CNPq) relacionados com a caracterização da matéria orgânica dissolvida e sedimentar de igarapés e rios da Amazônia. Foi eleita membra afiliada da ABC para o período de 2022 a 2026.

Bataglion propôs a integração entre os temas “Amazônia Urbana” e “Saúde”, conectando-os por meio da problemática da contaminação das águas — dos igarapés urbanos aos grandes rios amazônicos. Destacou que essa contaminação ultrapassa as doenças de veiculação hídrica: envolve uma diversidade de contaminantes biológicos e químicos, em especial fármacos de múltiplas classes — analgésicos, ansiolíticos, antibióticos, hormônios — presentes em altas concentrações nas águas urbanas da região.

Lembrou que, ano após ano, os relatórios sobre saneamento básico mostram que as capitais da região Norte figuram entre as piores em índices de tratamento de esgoto. Nos municípios do interior, o cenário é ainda mais crítico. Os resíduos lançados nos igarapés fluem para os grandes rios e, eventualmente, para o oceano, carregando consigo substâncias que podem afetar profundamente a biota aquática e a saúde humana.

Bataglion também chamou atenção para os microplásticos e para os genes de resistência a antibióticos, ambos encontrados em quantidades preocupantes nas águas e peixes da região. Com as mudanças climáticas agravando os eventos extremos — secas prolongadas e inundações severas —, esses processos de contaminação tendem a se intensificar, impactando tanto áreas urbanas quanto comunidades ribeirinhas.

Finalizou reforçando a necessidade urgente de novos parâmetros de qualidade da água e de processos de tratamento adequados à realidade amazônica, superando legislações ultrapassadas e ineficazes. “Precisamos conhecer nossa contaminação para poder tratá-la adequadamente”, afirmou.

Saúde na Amazônia

Em seguida, Fernando Fonseca de Almeida e Val trouxe uma reflexão sobre a saúde no contexto amazônico. Como jovem cientista da região, enfatizou a responsabilidade de representar vozes e trajetórias invisibilizadas, que constroem conhecimento em meio a adversidades.

Ele é docente permanente do Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) em convênio com a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, ambos na Universiadde Federal do Amazonas (UFAM).  Atua na UTI da Unidade Hospitalar da FMT-HVD em Manaus com pacientes acometidos por doenças infectocontagiosas. É também pesquisador da FMT-HVD, atuando na Unidade de Pesquisa Clínica Carlos Borborema. Suas pesquisas envolvem o impacto das alterações climáticas na saúde da população da Amazônia e a incidência de sequelas e incapacidades. Coordenador do Centro de Pesquisa em Avaliação, Reabilitação e Desempenho Humano (CePARD). Foi eleito membro afiliado da ABC para o período de 2019 a 2023.

Val defendeu uma ciência comprometida com o presente e com as urgências das populações amazônicas, especialmente aquelas historicamente marginalizadas, seja nas margens dos rios, nas florestas ou nas periferias urbanas.

Comentou sobre  sua pesquisa que aborda as consequências de longo prazo de doenças infecciosas como HIV, covid-19 e tuberculose. Mostrou que, mesmo após o tratamento clínico, muitos pacientes enfrentam sequelas físicas e psicológicas que comprometem sua qualidade de vida. A omissão dessas consequências secundárias, que raramente aparecem nos indicadores tradicionais de saúde, revela uma lacuna crítica que precisa ser enfrentada com ações de reabilitação e reintegração.

“Estamos tratando doenças, mas não necessariamente restaurando a saúde”, afirmou. Destacou exemplos como trabalhadores que perdem a capacidade respiratória após a tuberculose ou mulheres com sequelas motoras após acidentes com animais peçonhentos — situações comuns na região, mas pouco reconhecidas pelas políticas públicas.

Val defendeu políticas intersetoriais e integradas, que reconheçam a complexidade dos territórios amazônicos, aliando saúde, ambiente, educação e justiça social. Para ele, a ciência deve ser profundamente enraizada na realidade da Amazônia, valorizando os saberes locais e promovendo a construção coletiva de soluções.

Com esse espírito, apresentou o pesquisador Wuelton Monteiro, referência na área de saúde na Amazônia, com trajetória marcada pela articulação entre ciência, território e populações indígenas.

Saúde Única e Tratamento Descentralizado

Pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD),  Wuelton Monteiro é professor de epidemiologia clínica da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Atua também como docente dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas (UFAM), Medicina Tropical (UEA/FMT-HVD) e Biociências e Biotecnologia Aplicadas à Farmácia (BBAF Unesp-Araraquara). É investigador principal ou coordenador de diversos projetos de pesquisa financiados pela Fundação Bill e Melinda Gates, National Institutes of Health (NIH, EUA), Universidade de Oxford, Instituto Butantan, Fapeam e CNPq, em colaboração com instituições nacionais e internacionais renomadas. Foi eleito membro afiliado da ABC para o período de 2017 a 2021.

Ele iniciou sua fala destacando a importância de repensar as fronteiras entre natureza, saúde e crescimento com base em uma perspectiva intercultural e territorializada. A partir de exemplos da cosmologia indígena, ilustrou como a saúde, para esses povos, está profundamente entrelaçada com a natureza e com o equilíbrio das relações.

Discorreu sobre o conceito de Saúde Única — abordagem que integra os componentes humano, animal e ambiental — e o associou a fatores como segurança alimentar, acesso à água potável, poluição e mudanças climáticas.

Monteiro compartilhou os resultados de um projeto inovador voltado à descentralização do tratamento de acidentes ofídicos (picadas de cobras) em territórios indígenas. Historicamente, essas populações não tinham acesso ao soro antiofídico em suas comunidades, o que resultava em altas taxas de mortalidade. O projeto, realizado em parceria com o Ministério da Saúde, identificou polos com infraestrutura adequada e capacitou profissionais locais, inclusive com materiais educativos culturalmente adaptados.

O projeto permitiu que 14 unidades indígenas passassem a aplicar o soro diretamente no território, reduzindo os riscos do deslocamento e respeitando os tempos e os rituais próprios das populações. O tratamento passou a incluir também fases de reabilitação e reintegração cultural, mostrando que a cura, para essas comunidades, vai além da dimensão clínica.

Além disso, Monteiro apresentou um novo projeto de vigilância epidemiológica comunitária, em desenvolvimento com comunidades indígenas da região de Tabatinga. O objetivo é monitorar doenças infecciosas em humanos e animais de contato cotidiano, a partir de práticas de engajamento comunitário e coleta de amostras para análise laboratorial, sem romper com os saberes e práticas tradicionais.

Finalizou destacando o papel transformador que universidades e institutos de pesquisa podem exercer se se comprometerem com uma ciência voltada para ação, cooperação intersetorial e justiça climática. “Na natureza não existem fronteiras entre vírus, nem separações epistemológicas. Precisamos de uma ciência que reconheça isso”, concluiu.

Cidades Amazônicas e Geografias do Comum

Convidado da sessão, o geógrafo Michel de Melo Lima é professor efetivo da Universidade do Estado do Pará (UEPA), do curso de licenciatura em geografia, no campus de Igarapé-Açu. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre Ordenamento Territorial e Urbanodiversidade na Amazônia (Geourbam) e do de Geografia do Pará Urbano (GeoPUrb). Suas pesquisas em geografia humana têm ênfase na geografia urbana e geografia da Amazônia, envolvendo desenvolvimento socioambiental, produção do espaço urbano, planejamento urbano e regional, cidades pequenas e médias, cidades ribeirinhas amazônicas, orlas fluviais, empreendimentos hidrelétricos, conflitos sociais e territórios de uso comum.

Ele resgatou o histórico da região e apontou que o espaço regional amazônico tem sido marcado por desencontros entre os colonizadores europeus e as populações originárias. Esses encontros forçados, acompanhados de imposições econômicas ao longo da história — como os ciclos da borracha e da castanha — contribuíram para formar aglomerados urbanos que hoje conhecemos como cidades amazônicas. Esses espaços são, portanto, locais de encontros de múltiplas temporalidades sociais.

As cidades na Amazônia diferenciam-se por suas espacialidades e valores de uso, seja na floresta, nos rios, no interior da mata ou no litoral. Elas acolhem populações que, ao lado de seu uso cotidiano da natureza, também lidam com recursos cada vez mais reaproveitados e qualificados para o mercado. “Essa convivência de valores distintos nos oferece um ponto de partida para entender a complexidade da região”, observou Michel.

A produção urbana amazônica integra as relações entre sujeitos e seus ambientes — rios, florestas, mangues — refletidas em práticas cotidianas como a caça, a pesca, a extração de produtos florestais, o artesanato e o uso de plantas medicinais. Compreender a Amazônia urbana exige reconhecer que tais práticas não se restringem ao campo ou ao interior. Elas estão presentes nas cidades, marcadas por formas locais e globais de organização social, por relações de trabalho e por lógicas de apropriação diferenciadas da terra. Trata-se de cidades com processos produtivos diversos, que expressam conflitos, convenções e cosmovisões próprias.

Dentro desse contexto, propõe-se o conceito de “geografias do comum” — uma dimensão coletiva, solidária, apropriativa e autônoma da produção do espaço urbano. Esse conceito, de acordo com Michel de Melo Lima, busca dar conta da realidade de cidades como Altamira, Tucuruí e Marabá, marcadas por processos históricos como os impactos das hidrelétricas de Belo Monte e Tucuruí.

Essas cidades têm origens ligadas ao extrativismo e ao comércio fluvial. Altamira e Tucuruí emergem no contexto da borracha, enquanto Marabá tem origem na fundação de um entreposto agrícola. Esses espaços possuem centralidade regional não apenas pela densidade populacional, mas por articularem fluxos de bens, pessoas e informações. No entanto, a ação do Estado, do capital e das elites locais frequentemente ignora os sujeitos que historicamente produziram esses espaços — indígenas, ribeirinhos, quilombolas, lavadeiras, barqueiros e agricultores autônomos.

A modernização regional, intensificada a partir da década de 1960, introduziu grandes projetos hidrelétricos, turísticos e minerais que desterritorializam essas populações, marginalizando suas formas de vida. “A instalação de hidrelétricas e a construção de hidrovias, por exemplo, têm provocado o deslocamento forçado de comunidades inteiras, com efeitos colaterais como desemprego, insegurança alimentar, alcoolismo e até envolvimento com o tráfico de drogas”, ressaltou o palestrante.

Os bairros nas cidades amazônicas — como o bairro de Pombal em Tucuruí ou a comunidade Terra Prometida em Vitória do Xingu — ilustram modos de vida urbanos vinculados ao rio, à floresta e ao extrativismo. São espaços de segunda moradia, de comercialização e de acesso a serviços. Ainda assim, esses modos de vida são com frequência invisibilizados nas análises urbanas convencionais.

A proposta das geografias do comum reconhece e valoriza esses usos coletivos dos bens naturais. A floresta, o rio, a terra — tudo isso é parte da vida cotidiana dessas populações e não deve ser reduzido a mero recurso. Trata-se de uma lógica ecológica e social que entra em conflito com a racionalidade capitalista hegemônica. Michel Lima destacou que a defesa desses territórios e modos de vida configura, portanto, um posicionamento político insurgente e anticapitalista.

“O reconhecimento dessas geografias e de suas subjetividades — marcadas pela partilha, pela corresponsabilidade e pela autodeterminação — é essencial para enfrentar os desafios contemporâneos da Amazônia, incluindo a degradação ambiental, as mudanças climáticas e os problemas de saúde”, apontou Michel. Negligenciar esses modos de vida agrava os problemas relacionados à saúde coletiva e impede avanços em políticas públicas eficazes e sensíveis à realidade amazônica.

“Pesquisadores, formuladores de políticas públicas e toda a sociedade estão convidados a reconhecer e fortalecer essas populações, que historicamente têm resistido e existido frente às dinâmicas hegemônicas que ameaçam a Amazônia e seus habitantes”, concluiu o geógrafo.

Perguntas e respostas

Após as exposições, a sessão foi aberta para perguntas do público. As intervenções destacaram a complexidade das interações entre saúde, urbanização e modos de vida tradicionais na Amazônia.

Um dos participantes questionou sobre a ausência de grandes epidemias originadas na Amazônia, mesmo sendo uma região de alta biodiversidade e intenso contato entre humanos e animais silvestres. O pesquisador respondeu que, apesar desse potencial, há muitos quadros clínicos com etiologia indefinida na região, especialmente em casos de síndromes febris agudas. Esses quadros muitas vezes não correspondem aos vírus testados nos painéis convencionais, o que sugere a possibilidade da presença de vírus ainda não descritos ou não suficientemente estudados. O pesquisador apontou que essa lacuna indica a necessidade de mais atenção científica e sanitária às realidades locais.

Outra pergunta tratou da classificação dos animais silvestres domesticados — como preguiças e macacos criados em casa por populações ribeirinhas e indígenas. O pesquisador explicou que esses animais são frequentemente adotados após serem encontrados órfãos na floresta, e que, para fins de estudo, têm sido classificados como “domesticados” ou “semi-domesticados”, embora originalmente sejam espécies silvestres.

Foi também abordado o tema dos acidentes ofídicos (mordidas de cobras venenosas), que ocorrem com frequência no contexto urbano do Rio de Janeiro e ainda mais intensamente na Amazônia. Apesar da incidência cinco vezes maior na região amazônica, os cursos de medicina e enfermagem ainda dedicam pouca atenção ao tema. Como resposta a essa lacuna, foi criada, na Universidade do Estado do Amazonas, uma disciplina optativa com 45 horas dedicadas ao estudo de animais peçonhentos, como serpentes, escorpiões e aranhas. A procura dos alunos por essa disciplina foi surpreendente, demonstrando o interesse por uma formação mais conectada à realidade local.

Em seguida, uma pergunta foi dirigida à pesquisadora Giovanna, sobre a presença de poluentes químicos na água da região. Ela confirmou que, além da necessidade urgente de saneamento básico, há também iniciativas de biorremediação, com o uso de plantas para tratar águas contaminadas. A Universidade Federal do Amazonas tem testado espécies vegetais para filtrar resíduos e poluentes, associando esse processo aos métodos convencionais de tratamento.

Por fim, abordou-se a influência das mudanças climáticas nas práticas de trabalho e nas formas de vida dos povos tradicionais. O orador principal relatou que, nas conversas com comunidades locais, muitos trabalhadores já não conseguem mais suportar longas jornadas sob o sol, como faziam antes. Eles mudaram os horários de trabalho, buscam alternativas e percebem mudanças no nível dos rios e no calor, ainda que não associem diretamente esses fenômenos a causas estruturais globais. Trata-se de percepções cotidianas que indicam transformações ambientais com impactos diretos sobre o modo de vida e o trabalho.

Encerramento

Ao final da sessão, os organizadores agradeceram a presença do público e foi reforçado que, para enfrentar as crises ambientais, sociais e sanitárias da Amazônia, é urgente reconhecer, respeitar e empoderar as populações tradicionais. Essas comunidades, historicamente marginalizadas, são também aquelas que têm resistido às dinâmicas hegemônicas e contribuído com saberes e práticas essenciais para o equilíbrio ambiental e a saúde coletiva.

(Elisa Oswaldo Cruz com ChatGPT para ABC | Fotos: Marcos André Pinto)