Desde o início da pandemia de Covid-19, a ciência vem constantemente se surpreendendo com a variedade de órgãos e sistemas do nosso corpo que a doença é capaz de afetar e deixar sequelas. Perda de olfato e paladar, queda de cabelo, fadiga e dores de cabeça crônicas, dificuldades respiratórias e até mesmo depressão são alguns exemplos de complicações que podem persistir mesmo meses após a infecção.

Para debater esse assunto, a Academia Brasileira de Ciências organizou a 48ª edição dos Webinários da ABC com o tema “Complicações pós-Covid: Alerta ao sistema de saúde”. Foram convidados os médicos Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, Mário Saad, endocrinologista e professor do Departamento de Clínica Médica da Unicamp e Flavio Kapczinski, psiquiatra e pesquisador da UFRGS.

A moderação ficou a cargo do membro titular da ABC, Arnaldo Colombo.

Margareth Dalcolmo

O que aprendemos e o que esperamos no pós-Covid

Quando a Covid-19 surgiu, a primeira impressão foi de que se tratava de uma doença exclusivamente respiratória, caracterizada por uma infecção com grande carga viral inicial, que poderia evoluir para inflamações pulmonares, levando a um quadro de síndrome respiratória grave. Com o passar do tempo, esse cenário foi se complexificando. “Rapidamente entendemos que todos esses modelos eram ultrasimplificações, a doença está longe de ser linear”, afirma Margareth Dalcolmo, e complementa, “hoje sabemos que não é uma pneumonia, mas uma doença da microcirculação”.

Dalcomo citou um estudo publicado na Lancet que demonstra que 80% das pessoas que enfrentaram a forma grave da Covid-19 tiveram algum tipo de complicação posterior. Desse grupo, 58% relataram fadiga crônica e 44% dores de cabeça, mas os sintomas são inúmeros e tratados por diversas áreas da medicina. “Tratam-se de distúrbios vasculares, neurológicos, endócrinos e muitos outros. É urgente que hospitais e universidades entendam esse como um desafio transdisciplinar”, avalia.

Falando especificamente do sistema respiratório, a pesquisadora ressaltou o problema das fibroses pulmonares, desenvolvidas por diversos pacientes que ficaram internados por muito tempo. Essas lesões ocorrem por alguns fatores, sendo que um deles é a utilização de corticosteroides durante o tratamento, que são necessários, porém bastante agressivos. Outro fator de risco muito significativo é a obesidade, que foi explorada mais a fundo por Mário Saad.

Mario Saad

Complicações pós-Covid: Diabetes e obesidade

Dentre os fatores de risco na infecção pelo novo coronavírus, dois dos que mais influenciam no desenvolvimento da forma grave são a obesidade e a diabetes. Nas palavras de Mario Saad, “existe uma relação bidirecional entre a Covid-19 e essas condições, um aumenta a gravidade do outro”.

Um dos problemas é a resistência à insulina. A Covid-19 altera vias metabólicas que levam a essa resistência, como a modificação das células beta, da mesma forma como ocorre na diabetes. “O agravamento da Covid em obesos e diabéticos são muito mais frequentes porque muitos dos sintomas e distúrbios gerados pela doença já estavam presentes nessas pessoas e se agravaram”, explicou Saad.

Apesar da resistência mais alta à insulina, muitos obesos não são diabéticos, por conta da capacidade do corpo de compensar esse problema secretando mais insulina. Entretanto, verificou-se que o novo coronavírus também pode desequilibrar essa produção, levando ao desenvolvimento da diabetes. De acordo com Saad, “durante a pandemia avançamos muito no conhecimento da diabetes, inclusive entendendo melhor o papel da inflamação, porque era possível observar a evolução dessa doença em um período muito mais curto de tempo, gerando até novos tipos de diabetes”.

O palestrante deixou um alerta. “Vivemos uma epidemia de Covid-19 e viveremos outra de síndromes pós-Covid. É fundamental aumentar o investimento em pesquisas translacionais, pois ainda conhecemos muito pouco das diversas complicações”.

Flavio Kapczinski

Síndromes psiquiátricas pós-Covid

Uma das descobertas mais surpreendentes durante a pandemia foi a relação entre a doença e o desenvolvimento de problemas psiquiátricos. Muitas pessoas sem quaisquer condições pré-existentes ou que tiveram a forma leve da doença vieram a desenvolver transtornos como ansiedade, depressão, insônia, estresse pós-traumático, névoa mental e até mesmo hemorragias intracranianas, AVCs e demência.

Segundo Flavio Kapczinski, hoje em dia já sabemos que esses quadros estão associados a respostas inflamatórias no sistema neuroencefálico. “No cérebro, a Covid-19 afeta, principalmente, a substância branca. É uma questão glial e não neuronal”, destacou o pesquisador.

O palestrante apresentou algumas das vias pelas quais esses processos ocorrem, destacando que os transtornos psiquiátricos que a doença gera podem piorar nos meses após a infecção, desencadeaando problemas ainda maiores. “O período pós-Covid tem mostrado uma propensão da evolução de problemas psiquiátricos para doenças neurodegenerativas e demência”, alertou.

Assim como na diabetes, Kapczinski também chamou atenção para os avanços que a neurociência teve durante a pandemia. “Já especulávamos que os distúrbios de humor tinham base inflamatória. AnCovid-19 confirmou isso e nos fez entender melhor a neuroprogressão”, finalizou.

Após as apresentações, o espaço foi aberto para perguntas do público e dos próprios palestrantes.

Novos tratamentos

A pesquisadora Margareth Dalcolmo fez um panorama dos vários tratamentos já cogitados para a doença, enfatizando aqueles que aparentaram ser mais promissores. Ela revelou também que já existem algumas pesquisas avançadas no desenvolvimento de antivirais específicos para o Sars-Cov-2, que poderiam auxiliar no tratamento das formas leves.

“Existem fenômenos muito pouco relevantes do ponto de vista clínico – perda de olfato e paladar, queda de cabelo – que podem afetar seriamente a qualidade de vida das pessoas. Novos medicamentos podem ajudar nesses casos”, avaliou Dalcolmo.

Fatores sociais da obesidade

Mario Saad fez um breve histórico da obesidade no Brasil e no mundo, destacando que esse é um problema que aumentou muito nas últimas décadas e para o qual existe um forte fator socioeconômico. “A cinquenta anos atrás, as camadas populares sofriam muito mais com a desnutrição. Hoje em dia a obesidade é proeminente. Isso se deve a dificuldade de se manter uma alimentação balanceada e exercícios físicos nessas condições”, explicou.

Para ele, o país deveria considerar políticas públicas que combatam o sedentarismo e possibilitem o acesso a legumes e verduras. “Na Unicamp, por exemplo, existem grupos de medicina coletiva com projetos de hortas coletivas nas periferias, que facilitam enormemente o acesso a alimentos saudáveis para essas pessoas”.

Outro fator que contribui para o sedentarismo é o home-office. “Sem os deslocamentos habituais, estima-se que reduzimos, em média, metade dos passos dados em um dia”, explicou Saad, “para balancear isso, o volume de exercícios físicos necessários aumenta”.

O pesquisador fez ainda um alerta final: “Pessoas maiores de 30 anos devem realizar avaliações cardiovasculares preventivas”.

Novos modelos de tratamento psiquiátrico

Falando sobre o tratamento psicológico remoto durante a pandemia, Flávio Kapczinski avaliou a experiência como positiva, apesar de ainda existir certa resistência dentro da comunidade médica. Para ele, a tecnologia é uma aliada importante, não só nas consultas, mas na orientação dos pacientes sobre qual o melhor tratamento a se procurar. “O primeiro passo é sempre identificar se existem sequelas neurodegenerativas, para depois encaminhar as pessoas para tratamentos psiquiátricos ou neurológicos”, explicou.

Para o pesquisador, a pandemia afetou diretamente o estilo de vida das pessoas. “Isso se reflete na disponibilidade para exercícios físicos, nas relações de trabalho e familiares”. No Brasil, a incidência de complicações psiquiátricas pela Covid-19 foi ainda maior que em outros países, o que se deve, segundo Kapczinski, a uma “fraca rede de suporte para a maior parte da população, em todos os níveis”.

Por último, destacou também a necessidade de entendermos as doenças psiquiátricas pelo que de fato são – doenças. “Uma forte inflamação microglial, como ocorre na Covid-19, pode levar até dois anos para recuperar. Precisamos dar tempo para as pessoas afetadas, entendendo que esses são problemas clínicos muito sérios”, finalizou.

Confira o webinário na íntegra no canal da ABC no YouTube.