marceloviana_edit-3.jpgOs próximos meses serão de muito trabalho para Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro. Além de comandar a renomada instituição acadêmica, esse carioca criado em Portugal é o organizador geral do 28º Congresso Internacional de Matemáticos (ICM 2018), o maior e mais importante encontro da área, que ocorre a cada quatro anos. Pela primeira vez, o evento será no Brasil, na capital fluminense, entre 1º e 9 de agosto. Quando esta entrevista for publicada, ele provavelmente será uma das poucas pessoas do mundo que conhecem o nome dos ganhadores da medalha Fields, o mais prestigioso prêmio da área. Como é praxe, os vencedores dessa honraria e de outros prêmios concedidos pela União Matemática Internacional (IMU) são anunciados durante o evento. O brasileiro Artur Avila recebeu a medalha Fields durante o congresso de 2014, realizado em Seul, na Coreia do Sul. “Tenho 20 quartos de hotéis no Rio reservados em meu nome para abrigar os ganhadores e outros vips”, comenta Viana, com o leve sotaque português de quem passou a infância e a juventude no Porto, em cuja universidade fez a graduação em matemática, antes de voltar a viver do outro lado do Atlântico.

A matemática brasileira feita nas universidades e centros de pesquisa como o Impa chega prestigiada ao ICM 2018. A IMU acaba de elevar o Brasil ao grupo dos 11 países que formam a elite da pesquisa em matemática no mundo, como os Estados Unidos e a França, as duas maiores potências da área. O pedido de ingresso fora feito em 2017 pelo Impa e pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM).

Se a pesquisa acadêmica nessa área de conhecimento vai bem, o mesmo não se pode dizer do ensino básico de matemática no país, com desempenho ruim dos alunos brasileiros em testes internacionais de conhecimento. Nesta entrevista, Viana, especialista na área de sistemas dinâmicos, fala desses dois lados da matemática nacional, a que produz, ao mesmo tempo, um ganhador da medalha Fields e crianças que não sabem fazer contas básicas.

Como foi o trabalho com a IMU para que o Brasil fosse aceito no grupo de elite de pesquisa em matemática? Foi um trabalho de convencimento ou havia pré-requisitos técnicos que o país alcançou?
Não há requisitos explicitados, mas a avaliação é baseada no desempenho da matemática do país. Fizemos um dossiê com mais de 30 páginas em que apresentamos as razões que justificavam nossa entrada no grupo 5. Nesse dossiê, há, por exemplo, um gráfico em que mostramos o número de artigos internacionais em matemática que tiveram um autor brasileiro nos últimos 30 anos. Fomos de 253 artigos em 1986 para 2.349 em 2016. Estamos falando de todo o Brasil e não apenas do Impa. Mas esse nem é o meu número favorito no dossiê. Cerca de 30 anos atrás, o país produzia 0,4 de cada 100 artigos científicos de matemática publicados no mundo. Era muito pouco, pois tanto a população do Brasil como o PIB do país representam cerca de 2,8% do mundo. Nossa meta na pesquisa em matemática também tinha de ser dessa ordem. Agora estamos chegando em 2,4 artigos de cada 100 produzidos no mundo. No dossiê, há outros parâmetros desse tipo. Há dados de pesquisa, de eventos, de formação de pessoal na pós-graduação, de educação básica, de popularização da matemática, de olimpíadas de matemática. A avaliação não é feita por uma fórmula. Os matemáticos não gostam muito de avaliações numéricas. É uma avaliação de conjunto, subjetiva, mas tem de ser convincente. No grupo 5, estão mais 10 países. Não vamos destoar. Estamos junto dos Estados Unidos e da França, duas grandes potências, Alemanha, Reino Unido. Essas são as quatro maiores delegações do ICM 2018. O Brasil é a quinta. Do grupo 5 também fazem parte China, Rússia, Canadá, Japão, Israel e Itália.

Mas, em parte, a grande delegação nacional no congresso não é decorrente de o evento ser aqui?
Há um elemento para nós, matemáticos, que ajuda a medir isso. A cada quatro anos, há esse congresso internacional. Todo mundo pode assistir, mas só dá palestra quem é convidado. Não se pode se candidatar a ser palestrante. Cerca de 200 palestrantes falam no congresso, 20 nas sessões plenárias e os demais em sessões específicas, de áreas da matemática. Nosso primeiro palestrante em um congresso foi Leopoldo Nachbin [1922-1993], em 1962. O segundo foi Maurício Peixoto em 1978, 16 anos mais tarde. Depois tivemos participações esporádicas no congresso até que, em certo momento, começamos a ter um palestrante por edição do evento. O primeiro plenarista fui eu, em 1998. No congresso deste ano, haverá 13 matemáticos brasileiros dando palestras. Então é verdade que há efeito casa, quem abriga o congresso tem mais palestrantes do que o normal. Mas vou lhe dar um contraponto. Há quatro anos, o congresso ocorreu na Coreia do Sul, país respeitável em matemática. Sabe quantos coreanos deram palestras no evento? Quatro.

Você está dizendo que a matemática brasileira é melhor do que a da Coreia do Sul?
Não estou dizendo isso, mas você me entendeu. A IMU é estruturada em grupos. Quando o Brasil entrou na união em 1954, estava no grupo 1, o mais baixo. Os países desse grupo pagam uma unidade da anuidade da IMU [€ 1.395 em 2018] e têm direito a um voto na assembleia geral da entidade. O grupo 2 tem dois votos e paga quatro anuidades e assim por diante. Em 2005, por iniciativa do Jacob Palis [matemático brasileiro que foi diretor-geral do Impa e secretário-geral e presidente da IMU], nos candidatamos ao grupo 4, onde estávamos até o início do ano ao lado de países como Coreia do Sul, Polônia, Suécia, Índia e Suíça. Já era uma posição bastante honrosa para um país que, 60 anos atrás, quase não tinha matemática. Agora estamos no grupo 5, que é o mais elevado, com direito a cinco votos e pagaremos 12 anuidades. A anuidade é paga pela Sociedade Brasileira de Matemática, que é a organização que representa o Brasil na IMU.

O ponto de partida do dossiê é 1986, quando você deixa Portugal e se transfere para o Brasil. Como era a matemática brasileira nessa época?
O Impa já tinha ótima reputação. Nomes como o do Jacob, do Welington de Melo e do Paulo Sad já eram conhecidos no exterior. Mas o Impa era muito menor do que hoje, em todos os aspectos, inclusive no escopo de atividades. Estávamos começando a atuar na educação básica com os projetos de aperfeiçoamento de professores criado por Elon Lages Lima, que também foi diretor do instituto. As olimpíadas de matemática eram bem menores. Mais tarde, nos anos 2000, nos tornamos organizadores da Obmep [Olimpíada Brasileira das Escolas Públicas], além de cuidar da OBM [Olimpíada Brasileira de Matemática, aberta a todas as escolas]. Passamos a apoiar olimpíadas regionais e a mandar alunos para competições no exterior. Popularizar a matemática é hoje uma das nossas prioridades. Nos últimos 30 anos, houve uma mudança quantitativa e qualitativa no Impa. Nosso corpo científico mais do que dobrou. O número de alunos praticamente triplicou. Houve um crescimento e, ao mesmo tempo, o Impa se projetou muito no exterior. Isso teve muito a ver com a atuação do Jacob, mas não foi só isso. Até que, em 2014, o Artur Avila recebeu a medalha Fields e ganhamos o direito de sediar o ICM 2018. Essas duas novidades projetaram o Impa a um patamar extraordinário na matemática mundial.

Como avalia a pesquisa brasileira em matemática feita fora do Impa?
Historicamente, a matemática brasileira se irradiou de dois centros: do Impa e da USP. O impacto da USP, e também da Unicamp, em São Paulo é evidente, assim como em outras partes do país. Nos anos 1990, houve um processo de capilarização, com o surgimento de cursos de pós-graduação em centros do Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Hoje todos os estados do Nordeste têm pós-graduação em matemática reconhecida pela Capes. Isso é relativamente novo, ocorreu nos anos 2000. Podemos, então, dizer que a matemática está razoavelmente bem distribuída pelo país e tem potencial para crescer. Temos pesquisadores com projeção e colaborações internacionais, mas as instituições ainda não se veem ocupando espaço no cenário global. Por exemplo, seria importante que as nossas instituições fossem mais consistentes em ter e manter sites bilíngues. No Impa estamos fazendo um grande esforço nesse sentido.

Em 2016, você recebeu na França o Grande Prêmio Científico Louis D., concedido pela primeira vez à matemática e a um pesquisador brasileiro. Antes, em 2002, você foi cogitado como um dos possíveis agraciados com a medalha Fields. Como foi viver essa expectativa de ganhar a medalha?
Nasci em 1962. Poderia então ganhar a medalha até 2002. Na época, estava em um período muito ativo. O valor monetário do prêmio em si é baixo, cerca de € 10 mil. Mas, como é um prêmio dado para matemáticos de, no máximo, 40 anos, ele é uma marca para o resto da vida. Conheço um matemático que ganhou a medalha e me disse que seu salário aumentou muito depois que ele deixou seu país de origem e foi trabalhar nos Estados Unidos. Em termos emocionais, ganhar a medalha provavelmente produz um impacto maior do que o Nobel, que, às vezes, se ganha já perto do fim da carreira. Mas, respondendo a sua pergunta, não há uma lista oficial de candidatos à medalha. Aliás, ninguém se apresenta como candidato. Sei que fui indicado para a medalha em 2002. Mas nunca deixei de viver por causa disso, nem antes nem depois de não ter ganho. Em 2002, houve só dois ganhadores da medalha [o francês Laurent Lafforgue e o russo Vladimir Voevodsky, 1966-2017]. Os ganhadores podem ser sempre entre dois e quatro, com forte tendência para ser quatro. Mas essa é uma decisão que o comitê dos medalhistas toma e a IMU tem de acatar. Há anos em que os ganhadores são uma unanimidade.

Como é esse comitê que decide os ganhadores?
A IMU é gerida por um comitê executivo, eleito na assembleia geral para um mandato de quatro anos. O comitê executivo nomeia os principais comitês acadêmicos e depois não participa mais das escolhas. Esse é um mecanismo para evitar conflitos de interesse. No caso da medalha Fields, é formado um comitê de 10 ou 12 pessoas que costuma ser presidido pelo presidente da IMU. Em 2002, o Jacob era o presidente e se absteve de participar do comitê para evitar conflito de interesse. O segredo então é colocar nessa comissão da medalha matemáticos nos quais ninguém pode botar defeito. O comitê decide e é soberano. O sistema cria algumas tensões. Durante muitos anos, o limite de 40 anos para o ganhador da medalha não era uma regra escrita.

Por que essa regra foi criada?
O matemático canadense John Fields [1863-1932] criou o prêmio com o dinheiro que sobrou da realização do congresso dos matemáticos em Toronto, em 1924. Seu objetivo era incentivar jovens matemáticos. Mas ele não disse mais do que isso. No congresso de 1936, foi criado o primeiro comitê para a concessão da medalha, que interpretou o termo jovem como alguém de até 40 anos. Os comitês seguintes mantiveram essa tradição, mas isso não estava escrito. Mesmo depois que a IMU escreveu essa regra explicitamente, continuou existindo uma tensão. Nos anos 1990, a regra esteve a ponto de ser quebrada. Em 1993, o matemático britânico Andrew Wiles descobriu a prova do maior teorema em aberto, o de Fermat, que estava sem solução há mais de 300 anos. O problema é que ele teria 41 anos no congresso seguinte da IMU, em 1994, quando a medalha poderia ser dada. Se tinha uma hora para quebrar a regra dos 40 anos, era essa. Mas o que ocorreu? Uns meses antes do congresso, descobriram um furo na prova do teorema. Wiles se apresentou no congresso, mas a prova ainda não estava completa. Ele demorou mais um ano para resolver de vez o problema, já com 42 anos. No congresso seguinte, em 1998, ele teria 45 anos e aí já era tarde demais . Acho que, desde então, o limite dos 40 anos virou uma regra pétrea – e saudável. Depois dos 40 anos, não é preciso mais ficar pensando no prêmio, pois não se pode ganhá-lo mesmo.

Temos candidatos brasileiros a receber a medalha Fields neste ano?
Acredito que sim. Tenho escrúpulos em dizer algum nome, isso cria uma pressão e expectativa enormes. Diria que há 10 candidatos significativos em todo o mundo. Depois da morte no ano passado da matemática iraniana Maryam Mirzakhani, que, em 2014, foi a primeira mulher a ganhar a medalha Fields, é possível que o comitê dê o prêmio para outra matemática.

O Impa é uma organização social que depende essencialmente de verbas do governo federal. Os cortes no orçamento de ciência e tecnologia nos últimos anos afetaram a instituição?
Houve cortes e chegou a ser proposto um orçamento de R$ 39 milhões do MCTIC [Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações] para o Impa neste ano, menos da metade do que normalmente recebemos, além da contribuição do MEC [Ministério da Educação], que foi de R$ 26,5 milhões. Por um momento, fiquei preocupado se teríamos como fazer em 2018 a Obmep, que custa R$ 45 milhões, e o congresso internacional, que custará cerca de R$ 15 milhões. Uma parte boa do congresso deve ser custeada pelas inscrições dos participantes, mas ainda não sabemos quantas pessoas participarão do evento. Esperamos 5 mil pessoas no congresso, mas pode ser menos. O primeiro congresso a chegar nesse número foi o da Coreia do Sul. As taxas de inscrição são relativamente altas, US$ 450 para pesquisadores e US$ 200 para alunos. Se vierem 3 mil, estarei satisfeito. Assinamos no final do ano passado um termo de complemento orçamentário com o MEC e o MCTIC, que vão nos repassar mais verbas. O dinheiro continua curto e prevemos alguns cortes. Em 2017, nosso orçamento foi da ordem de R$ 100 milhões. Mas não havia o congresso internacional para ser organizado.

Por que as pessoas tendem a achar a matemática chata? Os matemáticos não se vendem bem?
Certamente os matemáticos são péssimos marqueteiros. A matemática não é uma matéria fácil de ensinar por duas razões principais. Para as crianças pequenas, a disciplina não é chata. Vejo isso nas minhas crianças, embora saiba que elas possam não representar crianças típicas. A matemática das crianças de 5 a 7 anos é a de contar brinquedos ou a quantidade de fatias de pizza. Essa matemática bate com os interesses da criança. Obviamente, isso não vai ser sempre assim. Há um momento na escola em que a matéria fica mais abstrata. Não há como evitar isso. É quando perdemos nosso público – a menos que o professor consiga mostrar que a matemática tem a ver com coisas que interessam à criança e ao jovem, que querem se divertir. Essa é a primeira razão para não gostar da disciplina. A segunda é que a matemática trata de um conjunto de conhecimentos encadeados. Quando se perde um pedaço do conhecimento, ou ele é recuperado logo ou o pedaço seguinte se torna incompreensível. Mas não é impossível resolver esse problema. Vários países conseguiram isso.

Quais por exemplo?
Os países nórdicos e asiáticos de um modo em geral. Cada um deles aposta em seu ponto forte. Há explicações até culturais por trás desse fenômeno. Uma das coisas que mais me impressionaram na abertura do congresso de 2014 foi um vídeo feito pelos sul-coreanos. Eles quiseram enfatizar que hoje estão bem e que 50 anos atrás, quando o país estava em uma guerra sangrenta, as escolas não pararam de funcionar. A dificuldade da matemática não é misteriosa. Ela é identificada, assim como suas soluções. Temos de ter professores bem formados, que trabalhem em boas condições, tenham gosto pelo ensino e sejam bem recompensados. Estamos carentes em qualquer um desses parâmetros.

A Obmep é considerada a maior olimpíada de matemática do mundo, com 18 milhões de participantes. Ela descobre talentos para a disciplina, mas o desempenho dos alunos do ensino médio em matemática do país continua fraco em provas internacionais como o Pisa, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Por que o sucesso da olimpíada não se transfere para o desempenho desses alunos?
A olimpíada é muito bem-sucedida no que ela pode fazer: descobrir talentos, criar uma dinâmica de interesse pela matemática. Há estudos que mostram que, quando uma escola se envolve com a olimpíada, o desempenho dos alunos melhora. Mas a olimpíada não pode resolver os problemas do Brasil por si só. O primeiro problema da educação é a formação do professor, que, de modo geral, é péssima. Cerca de 5% dos licenciados em matemática são formados em universidades públicas, 15% em cursos públicos de ensino a distância e 80% em faculdades particulares. Algumas poucas faculdades particulares são boas. Esses 5% que se formam nas universidades públicas, de uma forma geral, não vão para a sala de aula. A olimpíada identifica e apoia os professores. Mas estamos falando de alguns, não da massa de professores. Além da formação, tem a questão da valorização do professor. A Obmep dá motivação para o professor, pode ser uma medalha ou a satisfação de ver seus alunos entusiasmados. Mas esse incentivo tem de ser estrutural, da escola. Prevalece na escola brasileira a ideia de que todos têm de ser iguais, que dar incentivo é discriminação ou pior, que é meritocracia, como se premiar o mérito fosse ruim. De 2003 a 2012, o Brasil foi o país que mais cresceu em matemática no Pisa [foi de 356 para 391 pontos]. Mas não vou esconder que o resultado de 2015 foi uma decepção [queda para 377 pontos]. Ainda assim, havia uma melhoria em 2015 em relação ao desempenho de 2003. Quero crer que 2015 foi um percalço e vamos voltar a subir.

Mas o desempenho em matemática dos alunos brasileiros no Pisa é muito ruim. O pais ficou no 66º lugar entre 70 países em 2015.
Sim, estamos péssimos. Mas havíamos melhorado mais de 30 pontos entre 2003 e 2015, o que não era um ganho trivial. Defendo, por exemplo, a criação de um exame nacional, como o da OAB, para certificar os professores de matemática.

Vamos falar um pouco de sua história pessoal. Por que seus pais portugueses imigraram para no Brasil?
Era tradição na minha família. Meu pai, meu avô e meu bisavô vieram para o Brasil ganhar um dinheirinho. Eles eram do Norte de Portugal, de Póvoa de Varzim, terra natal de Eça de Queiroz, perto do Porto. Eram agricultores ou pescadores, às vezes as duas coisas. Plantavam legumes, batatas, cenouras. Meu pai, Joaquim, chegou ao Brasil em 1952. Cinco anos depois, voltou para Portugal para casar. Mas desmanchou o noivado, conheceu minha mãe, Isaura, e casou com ela. Eles vieram morar no Rio, onde ficaram cinco anos. Nasci em 1962, mas, a essa altura, a situação aqui não era tão favorável e minha mãe convenceu meu pai a voltar. Voltei com ela aos 3 meses, e meu pai retornou um pouco depois. Aprendi a falar e cresci em Portugal. Lá sou brasileiro. Aqui, português. Sou estrangeiro onde estou. Fiz meus estudos lá e a graduação na Universidade do Porto. Meus dois irmãos nasceram e vivem lá.

Seus pais haviam estudado?
Sou da primeira geração da família que fez faculdade. Meu pai era motorista, trabalhou até na construção civil aqui no Rio. No cartão de entrada no Brasil, ele era descrito como carpinteiro. Era mentira – carpinteiro era uma espécie de upgrade para ele. Ele era agricultor. Minha mãe era professora do ensino primário. Hoje ela está aposentada e meu pai faleceu.

Você tinha interesse por matemática na escola?
Era bom aluno de um modo geral. A disciplina de que mais gostava era matemática. Com 15 anos, minha mãe me perguntou o que queria ser. Disse que queria ser matemático e ir até o topo. Ela ficou impressionada com minha certeza. Fiz a graduação e me formei em 1984. No ano seguinte, houve uma conferência de uma semana na Universidade de Coimbra. Cheguei na segunda-feira e me inscrevi de última hora para apresentar um trabalho. Fui então apresentado à estrela do evento, Jacob Palis. Ele seria o último a se apresentar e me perguntou se eu iria falar. Disse que sim. Minha apresentação seria às 20h30 da sexta-feira. Pensava que, a essa hora, todo mundo já teria ido embora e, graças a Deus, ninguém veria a minha apresentação. Estava nervosíssimo. Mas o Jacob disse que iria ficar para assistir. E ficou mesmo. No final da palestra, ele me convidou para vir ao Impa. A primeira coisa que eu disse era que precisaria de uma bolsa de estudos.

Ele sabia que você era brasileiro?
Sabia. Mas, na época, tinha sotaque totalmente português e me sentia português.

Você já tinha resultado de pesquisa para apresentar no evento de Coimbra?
Logo depois que terminei a graduação, ganhei um apoio da universidade para passar duas semanas em Paris com um matemático francês, Adrien Douady [1935-2006]. Quando cheguei lá, o policial me perguntou sobre o visto [na época brasileiros precisavam de visto para entrar na França]. “Ué, não tenho”, respondi. Ele disse que precisava. Perguntei onde poderia conseguir. Ele me encaminhou para a administração do aeroporto. Aí comecei a desconfiar de que as coisas não iam bem. Eu não sabia o que era um visto. Nenhum dos meus amigos tinham visto.

Você morava em Portugal, mas só tinha documentos brasileiros?
Ninguém me falou que precisava de visto. Tinha 22 anos. Comecei a achar estranho quando ouvi uma funcionária do aeroporto perguntar se eu era perigoso. Ganhei coragem e fui falar com a polícia para saber o que estava acontecendo. Fiquei retido um dia todo na sala de espera do aeroporto. Tive uma experiência antropológica interessante. Um sujeito se aproximou e me perguntou se eu tinha moedinhas para o orelhão. Dei as moedinhas e ele me deu um maço de cigarro. Na época, ainda fumava. Começamos a conversar e descobri que ele era um traficante marroquino de maconha que estava retido como eu. Ele estava tranquilo. Na hora que o policial veio me encaminhar de volta para Portugal foi o pior momento. O traficante começou a falar: “Solta o garoto, ele é boa gente”. Quer dizer, tive como defensor um traficante marroquino. Voltei para Lisboa e tive de me virar para chegar ao Porto. Na segunda-feira seguinte comprei uma passagem e pedi o visto no consulado. Exatamente uma semana depois, estava de volta ao mesmo aeroporto de Orly, morrendo de medo. Dessa vez foi tudo normal e fiquei uma semana em Paris com o Adrien Douady. Ele me propôs alguns problemas para pensar, consegui resolver um deles e fui apresentar o resultado em Coimbra.

É possível explicar o que era esse problema?
Era algo da minha área, de sistemas dinâmicos. Comecei a estudar essa área na graduação. Na época, havia avanços grandes no estudo de fractais e Douady foi um dos grandes renovadores dessa área de pesquisa. Em linguagem simples, na área de sistemas dinâmicos há um fenômeno e se conhece a lei que descreve a evolução desse fenômeno. No sistema solar, por exemplo, com os planetas girando em torno do Sol, a lei é a da gravitação, de Newton. Mas, normalmente, saber a lei não diz diretamente o que vai acontecer com esse sistema. Existe uma fórmula matemática que precisa ser resolvida. É preciso tentar extrair informação da lei. A área de sistemas dinâmicos abrange um conjunto de técnicas e resultados que ajudam nesse processo. Em geral as equações não são simplesmente resolvidas com uma fórmula, uma solução. Existe um tipo de lei que chamamos iterações. Esse tipo de lei é uma fórmula que diz que, se você estiver no estado X agora, na próxima vez estará no estado f de X. E, na seguinte, no estado f de f de X. E assim sucessivamente. É preciso sempre aplicar essa transformação. Mas a questão é saber o que acontece no final, onde essa sequência vai parar. Se essa lei descreve um sistema ecológico, o que se quer saber é se, no final, as espécies ainda estarão vivas ou estarão extintas. No meu primeiro trabalho estudei um tipo de transformação.

Não havia oportunidades melhores na Europa do que vir estudar matemática no Brasil?
Praticamente não havia doutorado em matemática em Portugal e eu sabia que teria de deixar o país. Naquela época Portugal ainda negociava a entrada na União Europeia e havia poucas bolsas de estudo. A maioria era de origem estrangeira, do Conselho Britânico ou da Fundação Fulbright. Veja a ironia: a maioria das poucas bolsas disponíveis era destinada a portugueses. Eu era brasileiro e tinha acesso a menos da metade dessas bolsas. Não tinha ainda me naturalizado português porque não queria fazer o serviço militar. Hoje tenho as duas cidadanias. Já conhecia a reputação do Impa e tinha estudado em livros do Jacob quando ele me propôs vir para o Rio de Janeiro com uma bolsa de doutorado. A proposta era interessante. O Brasil sempre teve uma tradição de conceder bolsas baseadas no mérito do aluno, sem olhar a cor do passaporte. Para mim, isso não era importante, pois eu era brasileiro. Mas essa é uma característica importante do nosso sistema de pós-graduação. No Impa, metade dos alunos são estrangeiros, quase todos latino-americanos. Metade deles fica no Brasil e metade volta para seus países. É ótimo nos dois casos. Os que voltam são nossos embaixadores.

Hoje se fala muito em algoritmos, inteligência artificial, big data. Como conciliar as pesquisas em matemática mais aplicada e abstrata?
Em matemática, nunca se sabe o que vai resultar em uma aplicação. Esta é uma regra-chave: é preciso deixar o ser humano exercer sua criatividade. Quando os avanços da matemática são aplicados, eles são invisíveis. Sem matemática, a tomografia não existiria. Há muita matemática no modo como o sinal de uma partida de futebol é transmitido, por exemplo. Nem eu tinha consciência disso.

Como assim?
Há alguns anos, uma matemática americana de origem belga, Ingrid Daubechies [hoje na Universidade Duke e primeira mulher a presidir a IMU, entre 2011 e 2014], deu uma palestra no Impa e falou desse tema. Entre outras coisas, ela ajudou a fazer o protocolo jpeg 2000, um padrão de compressão de imagens. Ela estuda wavelets, um objeto matemático, uma ondinha, um espaço vetorial de dimensão infinita. O conceito de wavelets foi algo inventado na matemática sem ter em mente nenhum tipo de aplicação. Hoje ele é uma ferramenta usada nas transmissões em alta definição. Funciona assim: o gramado de um jogo é quase todo igual e a fórmula, o algoritmo dessas wavelets, reconhece automaticamente essa semelhança e diminui a resolução desse trecho da imagem. Não é preciso aparecer muitos detalhes do gramado. Mas, quando a câmera focaliza o rosto do Neymar, por exemplo, a resolução volta a ser maior, há mais detalhes. Esse sistema diminui muito o peso do sinal a ser transmitido. Quem já ouviu os matemáticos fazerem propaganda disso? Esse é um método muito inteligente de regular automaticamente a resolução da imagem em função do que se quer ver. Mas, se a sociedade não sabe disso, ela não valoriza a matemática. Também não se pode exigir, a priori, que a pesquisa tenha de ter aplicações em mente para ser estimulada.

Quais são hoje os grandes desafios da pesquisa em matemática?
Para mim, o grande desafio é criar ferramentas para lidar com objetos de estudo novos, que não existiam há 30 anos. Ou seja, matematizar esses novos objetos. Posso citar dois ou três desafios da ciência que só vão estar resolvidos quando forem resolvidos matematicamente. Hoje, no entanto, ainda não estamos nem perto disso. Em física, por exemplo, algumas teorias recentes, como a quântica de campos e a das cordas, me parecem um meio caminho entre alquimia e magia. São teorias que os pesquisadores usam como ferramentas, para fazer contas, mas que não têm uma fundamentação racional, que faça sentido. Também é assim em toda a mecânica quântica, em conceitos como o emaranhamento. Welington de Mello deu durante anos cursos sobre teoria quântica de campos. Um dia perguntei-lhe do que se tratava e ele disse algo assim, citando outro matemático: “É uma teoria inexistente sobre um objeto que ninguém compreende”. Para falar do futuro da matemática, gosto de contar uma história que é uma combinação de muito dinheiro, inteligência e a maneira norte-americana de pensar. James Simons, um bom matemático norte-americano, enveredou pelo mercado financeiro e ficou bilionário. Ele criou uma fundação privada para financiar a ciência. Há alguns anos, ele perguntou à Ingrid Daubechies o que ele podia fazer para ajudar a matemática. Ela sugeriu criar um instituto para estudar grandes massas de dados. Não gosto de usar o termo big data. Ele então criou um novo instituto, financiado pela Fundação Simons. Essa é uma matemática nova, a que vai extrair informação das grandes massas de dados.