Entre os diversos exemplos concretos do quanto e como está sendo desconstruída a ciência brasileira, a situação crítica do Rio de Janeiro chama atenção – o estado de penúria da Faperj e o abandono total da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) não têm precedentes.
Em nível nacional, a situação também não é positiva. O orçamento baixo para a Chamada Universal 2016 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também é grave, já que o objetivo desta Chamada é democratizar o fomento à pesquisa cientifica e tecnológica no país, contemplando todas as áreas do conhecimento. O CNPq divulgou o resultado no dia 9 de dezembro. Foram submetidas 21.640 propostas e dessas, 12.499 foram recomendadas. No entanto, apenas 4.587 projetos foram contemplados com recursos, totalizando um investimento de R$ 188 milhões. Nesse montante, estão incluídas 1.384 bolsas de Iniciação Científica e 761 bolsas de Apoio Técnico. A aprovação final seguiu o total de recursos previstos em edital de R$ 200 milhões, sendo R$ 150 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e R$ 50 milhões do CNPq.
Isso significa que 57% dos projetos apresentados eram de bom nível, daí terem sido recomendados. Mas a escassez de recursos só permitiu que, destes 12.499 projetos de alto nível científico, apenas 36% recebessem apoio financeiro. Ou seja: 64% dos bons projetos que concorreram ao Universal não receberam recursos. E isso se refletirá diretamente no desenvolvimento social e econômico do país.
Em contraponto, o ex-presidente do CNPq (2011-2015) e Acadêmico Glaucius Oliva afirma que a relação de projetos recomendados e aprovados tem mantido um padrão. O que ocorre, segundo ele, é que há um teto de verbas que podem se destinadas aos projetos e, por esse valor, se sabe de antemão o número aproximado de pesquisas que serão contempladas. “O número de aprovações já está praticamente definido”, completa ele. O que vem ocorrendo, no entanto, é uma diminuição relativa do financiamento direcionado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Em 2010, os recursos do FNDCT eram de cerca de R$2,8 bilhões, mais que o dobro do valor aprovado para 2017, por volta de R$1,3 bilhão. O número supera o de 2016, mas é inferior ao de sete anos atrás.
Falta de perspectivas no Brasil x artigos publicados nos EUA
O médico e professor Emiliano Medei, diretor adjunto de Administração no Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ), com dois estágios de pós-doutorado nos EUA e eleito membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências para o período de 2011 a 2016, foi um dos que não obteve os recursos da Chamada Universal. “Como professor adjunto da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] já participei de três processos seletivos do Universal, ganhei um, mas não ganhei esse, exatamente no ano que passei a aplicar da faixa C para a faixa B. A situação das pesquisas no Laboratório de Cardiologia Celular e Molecular [IBCCF/CCS/UFRJ], onde coordeno um grupo com 12 pesquisadores, está seriamente ameaçada.”
No entanto, para a revista Nature Communications, uma das mais conceituadas dos Estados Unidos, a pesquisa de Medei é bastante relevante. Tanto assim que ele teve um artigo publicado em outubro de 2016, referente à sua pesquisa relativa ao estudo e tratamento da diabetes. Mais especificamente, de uma inflamação causada pelo aumento da glicose, que causa a produção da substância IL1 – beta, responsável por afetar células cardíacas, causando problemas no ritmo do coração.
O estudo, além de comprovar a influência dessa substância nos casos de doenças cardiovasculares, encontrou formas de revertê-la, por meio do uso de duas drogas: MCC-950, que inibe a produção da IL1- beta, e anakinra, que impede que ela se deposite nas células do organismo. Saiba mais sobre o estudo. “Será que uma pesquisa bem avaliada nos EUA como essa foi não tem qualidade para receber recursos do governo brasileiro? “, questiona Medei. ” E o pior, para nós, cientistas cariocas, é a conjugação desse corte de recursos federais acoplado à falência do Estado do Rio de Janeiro, que faz com que a nossa Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Carlos Chagas Filho] esteja conseguindo apenas pagar os bolsistas – com atraso -, mas não está nem depositando os recursos de editais já ganhos dentro do prazo. Sabemos do esforço e empenho que nossos colegas cientistas que estão à frente destas agências de fomento Estaduais e Federais estão fazendo, mas sem o devido apoio dos respectivos Governos Estaduais e Federal, respectivamente, é muito difícil de avançar.”
Outro pesquisador ameaçado pela mesma situação – não recebimento do Universal e falência da Faperj – é o biólogo Leonardo Travassos, professor adjunto do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da UFRJ. Eleito membro afiliado da ABC para o período 2015-2019, a qualidade da pesquisa que conduz no Laboratório de Imunoreceptores e Sinalização reconhecida pelo PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences], um dos mais prestigiosos periódicos científicos norte-americanos. Seu trabalho, que foi publicado na terceira edição do PNAS de novembro de 2016 , trata do processo de autofagia – uma espécie de mecanismo de limpeza das células – e a sua possível influência no tratamento de determinadas doenças. Os pesquisadores explicam que quando o organismo é afetado por doenças como dengue, leptospirose e malária, muitos glóbulos vermelhos são destruídos, liberando no sangue uma molécula denominada heme. Dentro dela existem átomos de ferro que induzem o acúmulo de proteína nas células e estes acúmulos, que são nocivos ao organismo, podem se manter indefinidamente nele, caso não sejam eliminados pelo processo autofágico, que remove estes excessos.
“A situação é tão crítica que os jovens pesquisadores que estão em início de carreira e não receberam o Universal ou recursos da Faperj muito provavelmente não vão ter nada para mostrar nos próximos dois anos, pelo menos. Assim como o meu próprio grupo, diversos outros estão desse jeito, em condições críticas de financiamento e sem perspectivas de melhora. É pior do que uma fuga de cérebros: é um descarte de cérebros, um abandono completo dos profissionais de excelência formados e treinados com dinheiro público por tantos anos.”
Para a professora adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas e diretora da Unidade de Bioimagem de Pequenos Animais do do Cenabio, além de co-fundadora e diretora científica do Instituto DOr de Pesquisa e Ensino (IDOR) Fernanda Tovar Moll, – que ainda é membro afiliado da ABC (2016-2020) – esse tipo de situação vem acontecendo com frequência e está espantando os futuros cientistas em potencial. “Está havendo uma debandada. Todas as pós-graduações estão com menos alunos, estamos passando por uma maré baixa.”
Cientistas cariocas sem opção
E a fase profissional e etária desses cientistas de excelência é crucial. Travassos relata que, aos 40 anos de idade, não consegue ganhar ainda os recursos da bolsa Cientista do Nosso Estado (CNE), a mais importante da Faperj, mas também não pode renovar a bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE). “Eu estou numa fase em que não sou cientista jovem nem sênior. Aqui no Rio estamos implorando para voltarmos à época em que os recursos, embora longe do ideal, ainda eram suficientes para manter um fluxo minimamente constante de financiamento para os laboratórios. É uma realidade muito diferente da que se observa em São Paulo, apenas para citarmos um exemplo mais próximo”.
Leonardo refere-se à diferença no financiamento das Fundações de Amparo estaduais, que faz com o que a Faperj saia em desvantagem em relação à vizinha paulista. A renda da Fapesp, até 2016, era de 1% da arrecadação tributária líquida do estado, o que garantiria à Fundação um montante anual médio de cerca de R$800 milhões. Em 2015, por exemplo, esse valor chegou a pouco mais de R$1 bilhão. Já no Rio, ainda que a Constituição do Estado garanta o repasse de 2% do rendimento líquido tributário, a verba anual recebida pela Faperj é de cerca de R$400 milhões. Além disso, outros fatores influenciam a estabilidade do encaminhamento de verba para a Fapesp. Os equipamentos devem ter uso compartilhado pelos pesquisadores e é preciso ainda que sirvam para a prestação de serviços externos à universidade, o que também gera uma renda extra para elas.
Porém, mesmo com o time ganhando querem mexer: a ABC e SBPC enviaram carta ao governador Geraldo Alckmin contra a redução dos recursos destinados à Fapesp na Lei Orçamentária Anual de 2017 (LOA 2017, Lei Nº 16.347 de 29 de dezembro de 2016), cujo montante aprovado não atine o limite mínimo de 1% da receita tributária do Estado de São Paulo, conforme prevê o artigo 271 da Constituição Estadual.
Resultados de hoje são fruto de financiamento de cinco anos atrás
Medei ressalta que a produção científica de hoje reflete o investimento de anos atrás. Os editais que renderam verbas usadas nas pesquisas de Travassos são de 2011, por exemplo. Bem como os de Medei, cujo financiamento principal veio da Faperj, no entanto. Já as pesquisas de Moll e Stevens contaram com recursos de outros editais na época disponíveis. “A epidemia de zika atropelou a todos, não havia recursos específicos para o tema quando começamos”, explica Rehen.
Segundo Travassos, estamos em um momento onde todo o investimento que já foi feito pelo estado está sendo desperdiçado. “Não investir em ciência não é economia hoje, é um grande desperdício. Além da questão de todo o investimento e de carreiras que estão indo para o ralo, a ciência também movimenta uma cadeia econômica.” Fernanda Moll ressalta que hoje, no Brasil, a visão dos governantes é de que investimento em pesquisa é despesa. “Eles não enxergam como um investimento de longo prazo que pode, sim, gerar receita.”
Ciência é sinônimo de desenvolvimento e gera receita
O investimento do PIB em pesquisa e desenvolvimento mostra uma visão diferente dos países. O Brasil investe 1,2%, estava na média dos BRICS. A China, porém, já se distanciou desse grupo – já atingiu o investimento de 2,05 % e pretende chegar a 2020 com 2,5% do PIB investidos em P&D. Está se aproximando dos países com mais alto índice de investimento.
“Ao olharmos a situação internacional, podemos entender claramente a lição”, diz o presidente da ABC, Luiz Davidovich. “Os EUA atualmente investem 2,8% do PIB em P&D – saíram de uma crise entre 2008 e 2013 justamente por meio desses investimentos. A União Europeia (UE) está em plena crise econômica, que se reflete numa crise política. Mas os países membros têm um acordo de chegar em 2020 com 3% do PIB investidos em P&D. Israel e a Coreia do Sul já investem mais que 4%, a Suécia já está 3%. E por que isso? Porque eles têm a plena noção de que para superar a crise é preciso apostar em ciência e tecnologia. Essa á a maneira sustentável de sair do buraco.”
Falta comunicação entre os cientistas e a sociedade
Para Fernanda Moll, uma coisa que precisa mudar é a comunicação dos cientistas com a população. “Nós precisamos aprender a atingir a sociedade. Isso é uma coisa que a gente não sabe. Se você parar alguém na rua e perguntar o que é Faperj, as pessoas não sabem.”
Travassos contou uma história de um amigo que estava em um táxi em São Pauloe, conversa vai, conversa vem, o taxista perguntou o que ele fazia. E ele respondeu: “Sou cientista”. O taxista, surpreso, retrucou: “O senhor é cientista? Olha, nem vou cobrar a corrida do senhor, não sabia que tinha cientista no Brasil”.
Já Rehen conta que saiu antes do fim do Simpósio Internacional sobre Zika (saiba mais no NABC Especial I e NABC Especial II) realizado no Rio entre 7 e 10 de novembro por conta de um compromisso profissional, na Califórnia. Logo que chegou em San Diego, pegou um Uber. O motorista ligou o rádio que estava transmitindo uma entrevista com uma cientista presente justamente no evento do Rio, do qual ele havia saído. Ou seja, uma rádio dos Estados Unidos entrevistando uma brasileira em um evento no Brasil. “Precisamos de mais espaços para falar de ciência. Não há uma cultura científica, as pessoas não estão tão acostumadas a falar sobre pesquisas no Brasil.”
Do ponto de vista do Acadêmico Glaucius Oliva, falta compreensão da classe política e, às vezes, da sociedade, sobre a importância da ciência. “Isso também é resultado da dificuldade que a própria comunidade científica tem de comunicar ciência para a sociedade, de mostrar que a ciência básica é central para que tenhamos capacidade de responder a problemas aplicados como o da zika.” Ou seja, a qualidade da ciência deve ecoar na comunicação científica. Os cientistas precisam investir nisso: divulgação e comunicação científica.
Veja as avaliações dos jovens cientistas de outras regiões do pais e de renomados pesquisadores nas matérias de Renato Grandelle, no jornal O Globo:
Cientistas veem retrocesso no cenário das pesquisas
Levantamento feito pelo repórter Renato Grandelle do jornalO Globo com 100 membros afiliados da ABC expõe decepção com perda de apoiopúblico.
Cientistas de renome criticam cortes a pesquisas no país
Principal reivindicação citada pelos Acadêmicos Artur Ávila, Paulo Artaxo e Luiz Davidovich, entre outros, é por projetos públicos a longo prazo.