Falar sobre a “beleza da matemática”, tema da conferência do francês Étienne Ghys, que abriu a Reunião Magna 2015, pode parecer paradoxal. O público em geral tem pouco interesse nessa disciplina. “As pessoas costumam lembrar-se apenas de fórmulas feias e terríveis; memórias dolorosas de tempos de colégio”, comentou o diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) e professor da École Normale Supérieure de Lyon, diplomado membro correspondente da ABC no dia 5 de maio. “A imagem da matemática está longe de ser positiva como a do artista. O matemático é visto como um calculador frio, quase como uma máquina.”
Ghys afirmou ser curioso o fato de a maioria pensar que matemática e beleza não podem coexistir, enquanto que os matemáticos, quando estão juntos, não costumam descrever teoremas, mas falar da beleza estética dessa ciência. “Entre nós, existe um consenso implícito, razoavelmente claro, em torno do conceito de beleza da matemática. Como é possível que 99,99% da população achem algo feio, enquanto 0,01% consideram esta mesma coisa bonita? Podemos descrever e compreender uma beleza matemática reservada a uma pequena casta?” Ele cogitou que esse fenômeno pudesse representar um link social com o propósito de construir uma identidade e “proteger-se da agressão do mundo exterior”.
Os artistas tomam muito cuidado com a palavra beleza, continuou Ghys, e, muitas vezes, a rejeitam, enquanto o público tende a associar a arte a ela. No entanto, ele ressaltou que, há séculos, a beleza não está mais no centro da arte. Um exemplo é a célebre obra de Marcel Duchamps intitulada “Fontaine”, de 1917, que é um mictório.
A matemática na filosofia
A estética é um capítulo importante na filosofia clássica, desde Platão, mas poucos filósofos abordam a beleza da matemática. O matemático húngaro Paul Erdös, por exemplo, tinha uma ideia muito simples e ingênua da beleza da matemática, de acordo com Ghys: “Ele disse que, se a pessoa não a vê espontaneamente, não há como mostrá-la”. Erdös era ateu, mas afirmava que Deus tem um livro em que escreveu as mais belas demonstrações matemáticas, e que, de vez em quando, mostra uma página desse livro a alguém. “Para Erdös não é necessário acreditar em Deus, mas é preciso acreditar no livro.”
O francês destacou que alguns matemáticos se consideram “exploradores que desmatam florestas selvagens, às vezes descobrindo clareiras bonitas”. Há também os que seguem a teoria filosófica de Platão do realismo estético. “O mundo externo ao ser humano é eterno. Os matemáticos, nesse sentido, são espectadores, e a beleza é uma qualidade ligada aos objetos”, explicou. É uma qualidade objetiva; independe do sujeito que o observa. Esse pensamento é o “neoplatonismo matemático”.
O austríaco Kurt Gödel dizia que há teorias matemáticas impossíveis de se mostrarem verdadeiras ou falsas. Sua interpretação é a de que os seres humanos não têm ferramentas suficientes para conhecer plenamente as entidades matemáticas – elas existem independentemente de nós, e somos incapazes de entendê-las. “Elas vivem em um mundo paralelo, e Gödel as imaginava como anjos e demônios. É algo próximo da alegoria da caverna de Platão. Os cérebros humanos são como prisioneiros, que vivem numa sombra.”
O auditório da ABC lotado para a conferência de Étienne Ghys
Em seu romance “Da Terra à Lua”, Júlio Verne estava tão convencido da universalidade da matemática que os homens poderiam representar o teorema de Pitágoras em um triângulo tão grande que poderia ser visto (e compreendido) da Lua: “Qualquer ser inteligente, disse o matemático, deve entender o significado científico daquela figura. Os selenitas, se existirem, irão responder por uma figura semelhante e, uma vez a comunicação estabelecida, será fácil criar um alfabeto que permitirá conversar com os habitantes da Lua”.
Em “Hípias Maior”, Sócrates definiu a beleza como apenas uma forma da verdade, que deve ser associada com o prazer de ver e ouvir. Já Bertrand Russel afirmou que a matemática, quando vista da maneira certa, tem em si não só a verdade, mas “uma beleza austera, fria, como a de uma escultura”.
A beleza a partir do cérebro
Ghys deu um exemplo do que considera estética na matemática:um número primo, divisível apenas por ele próprio e por um. Se o número não é primo, pode ser decomposto por dois números menores, que também podem ser decompostos se não forem primos e por aí vai. No final, todos os números são decompostos em números primos. Euclides diz que há uma infinidade de números primos. “Para qualquer conjunto finito de números primos, podemos encontrar números primos diferente daqueles. Então há uma infinidade deles”, explicou.
O francês mencionou um trabalho recente de neurobiologia do Reino Unido, que tentou localizar a percepção da beleza no cérebro humano a partir da observação de obras de arte. Com voluntários matemáticos, essas obras foram trocadas por trabalhos de matemáticos famosos, e percebeu-se que a área do cérebro que aprecia a beleza matemática é a mesma usada para admirar a arte ou a beleza de uma música: é o campo medial do córtex orbitofrontal.
Além disso, todos os seres humanos sentem a mesma emoção estética frente a uma paisagem, devido à glândula pineal, órgão localizado perto do centro do cérebro. “Descartes dizia que é nesta glândula que há uma conexão entre o corpo e a alma”, contou Ghys. “Ou seja, aqui, em vez de concentrar o foco na beleza exterior, a ênfase é no sujeito que está observando.” Por essa análise, o matemático não é mais um espectador; mas um ator, e a cena da ação não é externa – trata-se de um processo psicológico interno e inconsciente.
O palestrante levou em conta que os conceitos de beleza na matemática também podem ficar bem próximos da unanimidade: basta observar a simplicidade de fórmulas como a de Euler e outras não tão simples, como a de Ramanujan (ver foto abaixo) e imaginar qual delas é considerada mais bela.
O “page rank” matemático
“O desejo de beleza nos lev
a às mesmas escolhas que a utilidade”, ressaltou Ghys, citando o matemático e filósofo Henri Poincaré, que inspirou a edição de 2015 da Reunião Magna: “O cientista não estuda a natureza porque é útil, mas porque gosta do que faz, porque é bonito”. Immanuel Kant defendia que o objeto estético deve ser útil, mas sem ser pensado exclusivamente com esse propósito.
Ghys afirmou que o espaço matemático e o espaço da web são parecidos, com milhões de conexões, sendo o primeiro, ainda assim, consideravelmente maior. “Minha sugestão é ver a beleza da matemática como uma espécie de page rank do Google, para atribuir importância às páginas. A eficiência de um teorema depende do tamanho do território que sua descoberta abra.”
Na web, continuou Ghys, quem calcula o ranqueamento de páginas são os “robôs do Google” – este seria um papel análogo ao inconsciente do matemático, que faz o trabalho de avaliação “sem avisar nossa consciência”. Conforme afirmou Poincaré: “É pela lógica que provamos e pela intuição que descobrimos”.