No âmbito da filosofia, a ética surge como o estudo dos valores morais e princípios ideais do comportamento humano. Vinda do grego “ethos” – que significa “modo de ser” ou “caráter” – sua principal finalidade é orientar o comportamento de uma sociedade de modo coerente, distinguindo atitudes positivas de comportamentos negativos. Quando aplicada ao campo científico, ainda não há unanimidade no que diz respeito à definição do que seriam posicionamentos éticos ou antiéticos. Nesse contexto, o tema foi amplamente debatido durante os Encontros Regionais de Membros Afiliados da ABC que ocorreram ao longo do ano de 2012.
Familiarizando-se com o termo
O evento organizado pela Regional Norte discutiu o tema durante a mesa “Ética na Ciência”, que contou com a mediação de Ândrea Kely Ribeiro dos Santos, membro afiliado da Academia. Os relatores foram os também Acadêmicos Artur Luiz da Costa da Silva e Noemia Kazue Ishikawa e os professores José Edison Ferreira e Milena Caldatono foram os palestrantes.
Os professores José Edison Ferreira e Milena Caldato
Professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA), Ferreira deu início ao painel distinguindo as noções de ética e moral, frequentemente confundidas pelo senso comum. Em seguida, passou à descrição de termos como juízo objetivo, juízo de realidade, juízo de valor e juízo ético.
Caldato, por outro lado, começou sua apresentação questionando se tudo o que a ciência consegue colocar em prática é lícito de ser realizado. Referindo-se a alguns exemplos históricos – como os testes com voluntários nos estudos de sífilis, drogas como a talidomida e indução de células tumorais em idosos – a professora adjunta da Universidade do Estado do Pará (UEPA) enumerou certas variáveis capazes de influenciar a conduta ética de um cientista durante suas pesquisas, como a economia, a hegemonia técnica e científica, os interesses individuais e as taxas de produtividade.
E os voluntários para esse tipo de exame, são sujeitos ou objetos de pesquisa? Os dois professores falaram abertamente sobre o conceito de vulnerabilidade, questionando a real condição de decisão dos voluntários que consentem participar desses experimentos.
Análise contextual
Na reunião promovida pelo Comitê Organizador do Encontro Regional de Membros Afiliados da Região Nordeste & Espírito Santo, ocorreu uma mesa-redonda com o mesmo nome: “Ética na Ciência”. Nessa ocasião, os conferencistas foram os Acadêmicos Manoel Barral Netto e Letícia Veras Costa Lotufo e o professor Charbel El-Hani. A coordenação do simpósio, por sua vez, ficou a cargo de Camila Indiani de Oliveira, afiliada da ABC e pesquisadora do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia.
Diferentemente da mesa da Regional Norte, esse painel funcionou como um exemplo de análise contextual. A ética foi tratada por El-Hani, professor associado do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como um valor normativo do trabalho dos cientistas ao longo da história. Segundo ele, trata-se de um dos temas mais abordados entre os pesquisadores na atualidade: “Infelizmente, isso se justifica pela recorrência de casos de má conduta profissional, e não pelo fato dela enobrecer a pesquisa científica.” O conferencista observou quão grande é a responsabilidade social do profissional da ciência, uma vez que a ética no âmbito da pesquisa é um assunto complexo, com graves implicações cotidianas e políticas.

Plágio, manipulação de dados e sabotagem foram alguns dos outros pontos levantados durante a mesa. “A verdadeira questão da ética na ciência diz respeito à responsabilidade em relação ao conhecimento produzido”, encerrou Lotufo, que com isso vinculou sua apresentação à fala de El-Hani sobre o papel da ética na normatização da pesquisa científica.
A visão da nova geração
Já em São Paulo, o membro afiliado Hamilton Varela mediou o painel “Integridade Científica”, que contou com falas dos Acadêmicos Fernando Galembeck e Luiz Carlos Dias, além dos professores Elizeu Coutinho de Macedo e Roberto Gomes Berlinck. Integrante do Grupo de Estudos da ABC sobre Ética em Ciência, Galembeck deu início à discussão afirmando que a universidade, nos dias atuais, está longe de ser um reservatório de integridade e moralidade.

Elizeu Macedo também abordou a ética no âmbito universitário. Em sua visão, orientadores podem exercer um papel mais ativo nessa questão da integridade científica. “Além de orientar o aluno sobre como lidar com os dados, eles deveriam levantar com maior freqüência questões relacionadas à autoria, ao conflito de interesses, ao papel dos colaboradores em pesquisas conduzidas por centros diferentes, e, principalmente, ao trato com os sujeitos de pesquisa – tanto humanos quanto animais.”
Como presidente do Comitê de Ética da Universidade Presbiteriana Mackenzie – onde é coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social e do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento -, ele diz que norteia sua atuação pelos princípios da bioética. “Esses princípios procuram garantir ao sujeito de pesquisa benefícios como proteção e sigilo. Os comitês de ética existem – ou foram regulamentados – a partir de 1996, com a resolução 196 do Ministério da Saúde, a qual estabelece que toda pesquisa envolvendo seres humanos deve passar por um desses órgãos. No ano passado, foi aprovada a Lei Arouca, estabelecendo que as pesquisas com animais também devem fazê-lo”, explica. Outra exigência é a de que ensaios clínicos com seres humanos sejam registrados antes que tenham início as coletas de dados. O registro é fundamental, pois garante que os resultados encontrados – mesmo que desfavoráveis ao financiador – sejam publicados. Ademais, o sujeito de pesquisa pode, dessa forma, verificar os procedimentos previstos antes de confirmar sua participação no projeto.
Coincidindo com a discussão realizada durante o evento da Regional Norte, Macedo explicou que esse tipo de pesquisa se baseia na utilização de medicamentos e procedimentos novos na área da saúde. Em grande parte das vezes, os estudos envolvem indivíduos com determinadas condições clínicas que os tornam dependentes do fármaco em questão. “É necessário se questionar se, depois dos testes, esse paciente continuará tendo acesso ao tratamento e, em caso positivo, por quanto tempo. É uma situação que envolve, portanto, certa desigualdade: o pesquisador tem um poder – o medicamento – e o sujeito de pesquisa, não”, apontou Macedo.
O palestrante ainda destacou uma série de princípios e condutas elaboradas pelos National Institutes of Health (NIH) para a garantia de posicionamentos mais éticos por parte dos cientistas. “Eles definem integridade científica como a não fabricação de dados e resultados, a não criação de gráficos para que a apresentação dos resultados seja mais interessante, além da não fabricação e manipulação do material de pesquisa para que esse esteja de acordo com hipóteses ou novidades esperadas pelo pesquisador.”

Responsável pela área de química da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Dias voltou ao ponto levantado por Macedo. Embora o CNPq ressalte a importância das ações preventivas – estimulando a existência de disciplinas com conteúdo ético – ele observa que essa discussão ainda é pouco freqüente nos cursos brasileiros. É impossível, no entanto, não dar crédito à consulta realizada no ano de 2011 pela Capes: a partir da constatação de que o ambiente acadêmico não contava com debates suficientes sobre a temática, várias atividades foram sendo desenvolvidas nesse sentido. “No ano de 2012, todas as semanas de química, realizadas em praticamente todos os programas de graduação e pós-graduação do país, tiveram algum tipo de atividade relacionada à ética em pesquisa e em publicação de resultados”, comentou.

Ainda dentro dessa temática, Berlinck levantou a hipótese de uma relação entre a competitividade e o plágio. “Não estou dizendo que a pressão por resultados justifique desvios de conduta. No entanto, é preciso começar a avaliar de uma forma mais qualitativa, e não quantitativa”, elucida. Em resposta, Luiz Carlos Dias explicou os motivos pelos quais o atual modelo científico brasileiro não favorece uma avaliação criteriosa pautada no mérito: “O tempo disponibilizado aos comitês de assessoramento é muito pequeno em relação à demanda do país, em vista da quantidade de projetos e solicitações de bolsa. É inevitável, portanto, que se utilizem critérios numéricos nas avaliações.”
Em conferência ministrada por José Roberto Goldim, chefe do Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o debate sobre a ética também teve destaque no evento promovido pela Regional Sul. Em painel também intitulado “Integridade na Ciência”, o biólogo Goldim levantou diversas definições para o termo, inclusive citando o pensador inglês Samuel Johnson: “Integridade sem conhecimento é frágil e inútil e conhecimento sem integridade é perigoso e terrível.” Por fim, ele apresentou sua própria definição acerca da bioética, área em que trabalha: “Trata-se de uma reflexão complexa, compartilhada e interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem a vida e o viver.” E quais seriam os critérios para avaliar a adequação da ciência? De acordo com Goldim, a geração de conhecimento, a exequibilidade e a relevância – isto é, a quem interessa a pesquisa em questão.

ão apresentou um código básico de responsabilidade do pesquisador. Esse código classifica a falta de integridade ética na ciência em duas categorias principais: as condutas inadequadas culposas e as dolosas.
As condutas inadequadas dolosas, por sua vez, são caracterizadas por erros intencionais. A nomenclatura de suas sub-categorias é feita em inglês: erro por trimming, cooking ou forging. O primeiro tipo envolve forçar as observações para que elas se ajustem a um determinado padrão desejado. O processo denominado cooking transforma medidas usuais em medidas com alto grau de acurácia, através da coleta de tantas medidas quantas forem necessárias para obter dados que sejam adequados ao padrão desejado, eliminando as demais observações. Por fim, forgery é registrar dados fictícios de acordo com o padrão desejado.
O palestrante apresentou um exemplo aos presentes: o caso de Yoshitaka Fujii, médico anestesista japonês reconhecido internacionalmente por suas pesquisas sobre náusea e vômitos em processos pós-operatórios. Após denúncias, o Comitê da Sociedade Japonesa de Anestesiologia avaliou 212 dos seus 249 artigos publicados no PubMed. Foram encontrados apenas três com dados válidos – 37 tinham dados insuficientes, 172 continham dados fabricados e 126 haviam sido construídos totalmente sobre dados fabricados. “A Universidade de Toho, onde Fujii trabalhava, se retratou por oito dos seus artigos publicados e o demitiu. O curioso aqui é que seu índice H continua subindo, uma vez que não existe um índice H do bem e outro do mal e, em função do escândalo, ele passou a ser ainda mais citado, mesmo que como um péssimo modelo”, ilustrou Goldim.
Tendo em vista não só a complexidade do assunto, mas também – e principalmente – a dificuldade na definição do que seriam comportamentos científicos plenamente éticos, fica claro que muitos debates como esses ainda devem ser promovidos. Para que a prática científica baseada em valores éticos seja cada vez mais difundida no contexto global, é preciso que pesquisadores de renome conversem sobre essa temática. Nesse sentido, parece interessante citar o físico teórico alemão Albert Einstein: “Muitas pessoas dizem que o intelecto é que faz um grande cientista. Eles estão errados: é o caráter.”