O ano de 2009 marcou 100 anos da descoberta do Trypanosoma cruzi e da Doença de Chagas e 130 anos do nascimento do grande pesquisador brasileiro. Um dos mais eminentes membros falecidos da ABC, Carlos Chagas foi o homenageado da segunda parte do evento Annus Caroli, ou seja, “o ano dos Carlos”. A iniciativa foi da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que contou com apoio da FAPEMIG e do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A organização esteve a cargo dos Acadêmicos Sergio Danilo Pena, Paulo Sérgio Beirão e Francisco César de Sá Barreto.


Sergio Pena, um dos organizadores do evento, introduzindo o tema

A primeira mesa-redonda contou com os Acadêmicos Wanderley de Souza (UFRJ) e Eloi Garcia (Fiocruz) falando sobre ultraestrutura e interação do T. cruzi. O Acadêmico Ricardo Gazzinelli (UFMG) abordou imunidade inata e infecção com o T. cruzi e os Acadêmicos Mauro Martins Teixeira (UFMG) e Rodrigo Corrêa-Oliveira (Fiocruz) discutiram imunopatogênese e mecanismos inflamatórios.

Fechando o evento, foram proferidas as conferências Doença de Chagas: novos aspectos clínicos e epistemológicos, com o Acadêmico José Rodrigues Coura (Fiocruz) e Centenário da descoberta da Doença de Chagas – Carlos Chagas e seus seguidores, com o Acadêmico Egler Chiari (UFMG).

O Trypanosoma cruzi, a Doença de Chagas e a Evolução da Ciência no Brasil

O Acadêmico Carlos Morel, do Centro de Desenvolvimento Técnico na Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC-Manguinhos), fez a conferência de abertura. Baseado na sua larga experiência de pesquisador da biologia molecular do Trypanosoma cruzi, o presidente do Instituto Oswaldo Cruz e diretor do Center for Disease Control da Organização Mundial de Saúde l, mostrou o trajeto da Doença de Chagas, em uma bela memória iconográfica, desde a sua descoberta há 100 anos até o seu controle, chegando à conclusão de que não deve ser subestimada a capacidade dos países em desenvolvimento identificarem e lidarem com seus problemas de saúde.

Em seguida, diferenciou invenção de inovação, que é muito mais prática e aplicada, concluindo que apenas evidência científica e achados de pesquisa não são suficientes para estabelecer ou impor prioridades políticas. Levantando os novos desafios dessa doença polimórfica que muda de mecanismos de transmissão e que, através de fluxos migratórios, ameaça agora se instalar no primeiro mundo, ele terminou com a conclusão de que apenas a pesquisa intensa abrirá para nós as portas para o seu controle total.

Ultraestrutura do Trypanosoma cruzi

Abrindo a mesa-redonda Avanços na biologia do Trypanosoma cruzi, o professor do Instituto de Biofísica da UFRJ e Acadêmico Wanderley de Souza brindou a audiência com belíssimas imagens, obtidas por uma variedade de modernas técnicas de microscopia eletrônica, incluindo a microscopia de força atômica.

Sua revisão descreveu o conhecimento atual da organização subcelular das mais importantes estruturas e organelas encontradas no Trypanosoma cruzi, incluindo detalhes do cinetoplasto, flagelo, glicossoma, acidocalcissoma e o vacúlolo contrátil. Wanderley enfatizou que as imagens publicadas por Carlos Chagas em 1909 já permitiam visualizar várias das organelas que só recentemente foram caracterizadas a nível de ultraestrutura.

Interação do Trypanosoma cruzi com o vetor

Como parte da mesma mesa-redonda, o Acadêmico Elói Garcia, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC-Manguinhos), descreveu aspectos da interação do Trypanosoma cruzi com os insetos triatomíneos, que ocorrem no intestino dos últimos, onde o parasito matura e é eliminado pela urina e fezes do inseto.

Ele descreveu um modelo experimental do desenvolvimento do Trypanosoma cruzi e Trypanosoma rangeli no inseto hemíptero Rhodnius prolixus, dando especial atenção às interações desses parasitas com moléculas presentes no tubo digestivo e na hemolinfa do inseto, além de efeitos da organização das células epiteliais sobre o desenvolvimento do parasita. “A susceptibilidade do inseto vetor ao T. cruzi depende do estado nutricional do hospedeiro, da cepa do parasita e de interações moleculares com compostos tripanolíticos, lectinas e bactérias residentes no tubo digestivo”, explicou Garcia.

O pesquisador descreveu também a importância das bactérias presentes no intestino do inseto citado, concluindo que a pesquisa da interação parasito-microbiota no intestino do vetor é de importância capital para o entendimento e possível controle da maturação de formas infectantes do T. Cruzi.

Imunidade inata e a infecção com o Trypanosoma cruzi

Abrindo a mesa-redonda Imunopatologia e a patogênese da Doença de Chagas, o Acadêmico Ricardo Gazzinelli, professor do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG, enfatizou que a conhecida variabilidade da doença tem sido atribuída ao acolhimento de respostas e heterogeneidade do parasita. Ele destacou a importância das respostas imunes como principais determinantes da resistência do hospedeiro à infecção por T. cruzi e da patogênese da doença de Chagas.

Gazzinelli deu ênfase aos estudos recentes que definem o papel do sistema imune inato, receptores imunes e células imunodominantes como elementos da interação parasito-hospedeiro e do resultado da infecção. Discutiu estratégias para induzir uma imunidade duradoura mediada por células T que persista durante toda a vida do hospedeiro vertebrado. Finalmente, descreveu a aplicação desses estudos no desenvolvimento de vacinas.

Imunopatogênese e mecanismos inflamatórios I

Em seguida, o Acadêmico Mauro Martins Teixeira, Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, discorreu sobre a Doença de Chagas, especialmente sobre um grupo moléculas de quimiocina. A relação da expressão dessas moléculas com o desenvolvimento da Doença de Chagas e como o bloqueio delas modifica a resposta inflamatória à doença de Chagas são o seu foco de interesse.

O Acadêmico trabalha sobre dois conceitos. “O primeiro é que doença e infecção são coisas diferentes, pois pode haver infecção sem doença, embora a infecção possa levar à doença. O outro conceito é que podemos ter genes que controlam a doença sem afetar a infecção”, esclarece Martins. O pesquisador deu como exemplo a gripe. “De cada 100 pessoas que se infectam pelo vírus da gripe, apenas 40 manifestam a doença, e uma dessas pode ter doença grave. A infecção é inaparente.”

Martins explicou que são várias etapas da relação do hospedeiro com o parasito, que podem provocar não-infecção, infecção, infecção com doença e infecção com doença grave. “O que estamos tentando descobrir é quais são os genes relacionados à doença grave. Um dos genes que eles estudam é receptor da quimiocina e é muito importante para a lesão crônica da Doença de Chagas. “O problema é que ele também tem um papel no controle da doença, o que dificulta muito o seu estudo”.

Seu grupo estuda também a dengue, que é uma doença mais curta, o que torna o estudo dos novos genes mais fácil. “Identificamos um gene (receptor) que é expresso normalmente na célula, mas sua ativação durante a infecção por dengue está associado com as formas mais graves da doença. O bloqueio desse receptor faz com que a doença ocorra de forma menos grave.” O conceito, portanto, de que existem genes que correspondem às formas mais graves das diferentes doenças e que esses genes são potencialmente alvos terapêuticos é o foco dos estudos de Martins, que pretende em breve testar seu estudo em humanos.

Imunopatogênese e mecanismos inflamatórios II

Concluindo a mesa-redonda, o Acadêmico Rodrigo Corrêa-Oliveira discutiu o papel do sistema imunológico no desenvolvimento da lesão chagásica cardíaca e digestiva. Destacou o papel protetor de alguns tipos de proteínas – as interleucinas – na evolução clínica da doença e demonstrou que uma determinada interleucina pode intervir na patologia da enfermidade e no desenvolvimento de resistência à infecção, sendo esta atividade relacionada à fase da doença.

Corrêa-Oliveira mostrou a grande importância de outra interleucina no controle de morbidade e encerrou a apresentação discutindo o papel da genética do hospedeiro no desenvolvimento das formas graves da doença. Neste ultimo tema, mostrou que 95% dos fatores envolvidos no bloqueio completo de ramo direito estão relacionados a genes do hospedeiro.

Doença de Chagas: aspectos clínicos e epidemiológicos

O Acadêmico José Rodrigues Coura, pesquisador do Departamento de Medicina Tropical da Fiocruz, no Rio de Janeiro, explicou em sua palestra que embora a doença de Chagas exista na natureza há milhões de anos entre os animais silvestres, ela só se adaptou ao domicílio humano nos últimos 200-300 anos, com os desmatamentos para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária. “Os desmatamentos afastaram os animais silvestres de cujo sangue os insetos vetores se alimentavam. Por isso, em conseqüência, esses vetores conhecidos popularmente como barbeiros passaram a se adaptar ao domicílio, utilizando os animais domésticos e o homem como fonte alimentar”, explicou o pesquisador.

A doença descoberta por Carlos Chagas em 1909 é produzida por um parasito que Chagas chamou de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao médico e cientista Oswaldo Cruz. “Este parasito se transmite entre os animais e o homem, principalmente por vetores ou pela ingestão de alimentos contaminados”, lembrou Coura. Além do parasito, Carlos Chagas descobriu o seu transmissor, a doença humana e os reservatórios doméstico e silvestre. Coura mostrou figura que explica os ciclos da infecção. “A infecção apresenta um ciclo silvestre, entre vetores e animais silvestres, um ciclo peridoméstico, entre vetores peridomiciliados e animais domésticos e um ciclo doméstico entre vetores, animais domésticos e o homem.”

A transmissão da infecção ocorre quando os vetores infectados picam o homem e depositam suas fezes contaminadas na pele. Os indivíduos picados, ao se coçarem, introduzem os parasitos no ferimento da picada ou nas mucosas. Coura ressaltou que a transmissão pode ocorrer ainda por ingestão de alimentos contaminados com o parasito, por transfusão de sangue de uma pessoa infectada para outra não infectada ou por mecanismos menos freqüentes, como acidentes de laboratório e transplante de órgãos infectados.

A doença de Chagas em si, segundo o Acadêmico, pode apresentar uma fase aguda aparente, com febre, sinais de porta de entrada (chagoma de inoculação na pele ou conjuntivite unilateral, por inoculação na mucosa ocular, chamado de Sinal de Romaña), acometimento dos gânglios, baço, fígado, coração e sistema nervoso central, com meningoencefalite nos casos mais graves.

“A maioria dos casos é assintomático. Dois a três meses após a fase aguda os indivíduos entram na fase crônica, com um período de latência de 5 a 15 anos, quando aproximadamente 50% dos casos podem apresentar uma forma cardíaca, com palpitação e evolução para insuficiência cardíaca, ou uma forma digestiva, com dificuldade de deglutição, dilatação do esôfago e/ou prisão de ventre por dilatação do cólon”, esclareceu Coura. Um elevado número de casos – segundo o pesquisador, de 40 a 50% – permanece na chamada forma “indeterminada”, ou seja assintomática, não evolutiva.

Centenário da Descoberta da Doença de Chagas – Carlos Chagas e seus seguidores

A última palestra do evento foi dada pelo Acadêmico Egler Chiari, professor do Departamento de Parasitologia da UFMG. Em uma revisão histórica envolvente, ele descreveu o trabalho pioneiro e a descoberta fundamental de Carlos Chagas. Destacou sua carreira e seus prêmios. Falou então dos pesquisadores que continuaram seu trabalho, como Emmanuel Dias, Amílcar Vianna Martins, José Pellegrino, Francisco Laranja, Gerard Nóbrega, Júlio Muniz, Herman Lent e Magarinos Torres e a interação deles com os argentinos Salvador Mazza e Cecílio Romaña.

Chiari encerrou a palestra falando da contribuição seminal de Zigman Brener, dos Acadêmicos Aluízio Prata e José Rodrigues Coura, Washington Luis Tafuri e Luigi Bogliolo. “Teria sido justo que ele tivesse incluído seu próprio nome entre os grandes investigadores que avançaram nosso conhecimento sobre essa doença, mas foi impedido pela modéstia”, comentou Sérgio Pena, um dos organizadores do evento.