Para comemorar 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação de seu livro A origem das espécies, além do centenário de publicação do artigo de Carlos Chagas sobre a Doença de Chagas e 130 anos do seu nascimento, diversos membros da ABC participaram do evento Annus Caroli, realizado nos dias 26 e 27/11, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Todos os palestrantes eram Membros Titulares da ABC e pesquisadores nível 1A do CNPq – uma elite de cientistas brasileiros.

O primeiro dia foi dedicado a Charles Darwin e abordou a evolução de forma ampla. Após introdução do professor Sérgio Danilo Junho Pena (UFMG), foram abordados a evolução do cérebro (Roberto Lent, UFRJ), o papel das toxinas em sistemas coevolutivos predador-presa (Paulo Sérgio Beirão, UFMG), a criação de fármacos (Robson Santos, UFMG), a evolução das mitocôndrias (Aníbal Vercesi, Unicamp), o Big Bang e a evolução do cosmos (Beatriz Barbuy, USP) e a origem da vida na Terra (Carlos Menck, USP).

Um aspecto interessante do evento foi o fato de nenhum dos palestrantes trabalhar diretamente com evolução. “São cientistas de diferentes áreas que mostraram a relevância da evolução por seleção natural no entendimento do seu trabalho e no desenvolvimento de estratégias experimentais”, observou um dos organizadores, Sérgio Pena.

O segundo dia foi focado em Carlos Chagas, e será descrito em outra matéria. A iniciativa foi da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que contou com apoio da Fapemig e do Instituto de Estudos Avançados Transdisiplinares (Ieat) da UFMG. A organização esteve a cargo dos Acadêmicos Sergio Danilo Pena, Paulo Sérgio Beirão e Francisco César de Sá Barreto.

Darwin e a seleção natural: faces e facetas

A conferência inaugural foi proferida por Sérgio Danilo Pena, Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.

Charles Darwin nasceu em 12 de fevereiro de 1809. Em torno das comemorações de 200 anos do seu natalício neste ano, dezenas de exposições foram organizadas e centenas e centenas de artigos científicos e de divulgação foram escritos em todo o mundo. Na opinião de Sergio Pena, tanto as exposições quanto os artigos caíram no mesmo lugar comum e usaram os mesmos clichês de sempre, contando as mesmas velhas estórias, sem adicionar muita informação ao retrato intelectual que temos desse ícone da ciência moderna.

Em sua palestra, Pena procurou discutir aspectos diversos de Darwin, tentando iluminar ângulos e ressaltar aspectos especiais de Darwin como pessoa, como pensador e como cientista. Abordou a possibilidade de Darwin ter contraído a Doença de Chagas e ressaltou que a evolução é um fato, e não uma mera teoria.

Um dos idealizadores do evento Annus Caroli, que homenageia Charles Darwin e Carlos Chagas, o geneticista Sérgio Pena comparou a aventura de Darwin antes de formular a teoria da seleção natural à “jornada do herói” descrita no livro O herói de mil faces, do escritor e estudioso norte-americano Joseph Campbell, que explica a criação do “mito do herói”. “A recompensa da jornada de Darwin, ou seu elixir, é a teoria da seleção natural”, afirmou o professor na abertura do evento.

Pena lembrou que Darwin era um homem de saúde frágil e que, ainda assim, suportou uma viagem de quase cinco anos para desenvolver suas pesquisas. “Darwin não era gênio, mas era extremamente organizado e comprometido”, disse ele, durante a conferência Darwin e a seleção natural, na qual discorreu sobre a importância da teoria da evolução natural no campo da biologia e em outras áreas do conhecimento. Contou também um pouco da vida do estudioso britânico e de sua viagem a bordo do navio Beagle, que lhe permitiu explorar diversos ecossistemas ao redor do globo e elaborar a teoria da seleção natural.

Segundo o professor Sérgio Pena, um dos maiores desafios da teoria da seleção natural de Darwin foi se compatibilizar com a teoria de Gregor Mendell sobre genética e herança biológica. “Somente no início do século 20 é que as duas teorias se fundiram, gerando o que chamamos hoje de síntese moderna”, explicou.

O pesquisador abordou também a importância da teoria da seleção natural para os estudos da genômica evolucionária e o debate entre as teorias darwinianas e a religião. Pena destacou o papel fundamental que os estudos de Darwin desempenharam na área das ciências humanas e no tratamento de doenças como a AIDS, consolidando sua relevância para diversos campos do saber. “Não existe mais uma teoria da evolução, mas o fato da evolução”, afirmou.

Criação de fármacos: desenho inteligente ou evolução?

O Acadêmico Robson A. Souza dos Santos, professor do Departamento de Fisiologia da UFMG, apresentou vários aspectos do desenho de fármacos que interferem com o sistema renina-angiotensina. Ele mostrou como, a partir de observações em sistemas naturais de toxinas de serpente foram desenvolvidos por medicamentos inibidores da enzima (ECA) que converte o peptídeo angiotensina I em angiotensina II e também degrada a bradicinina. “Assim, os inibidores possuem capacidade de relaxar a musculatura dos vasos sanguíneos, essencial no tratamento da hipertensão”, explicou.

Robson Souza mostrou o papel fundamental da ciência brasileira no entendimento desse sistema renina-angiotensina, pelo descobrimento da bradicinina por Maurício da Rocha e Silva e Wilson Beraldo e também dos inibidores da ECA pelo Acadêmico Sérgio Ferreira. Robson mostrou então as propriedades de um peptídeo hipotensor também formado nessa via, a angiotensina-(1-7). Através de colaboração com o Prof. Ruben Dario Sinisterra Millán, do Departamento de Química da UFMG, foi desenvolvido um método de encapsulamento da angiotensina-(1-7) em uma matriz de carboidratos, impedindo a sua degradação no sistema digestivo humano e viabilizando o peptídeo como um novo importante fármaco oral no tratamento da hipertensão.

Mitocôndrias e a evolução dos sistemas oxidativos

O Acadêmico Anibal Eugenio Vercesi, professor do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), abordou a evolução do ponto de vista mitocondrial.

Há cerca de quatro décadas, segundo o pesquisador, a mitocôndria era conhecida como a usina de energia da célula, uma vez que sua função mais conhecida era a produção de ATP, a moeda energética da célula. Este processo – denominado de fosforilação oxidativa – é energizado por um potencial eletro-químico de prótons, gerado pela respiração, através da membrana mitocondrial interna.

“A perda da impermeabilidade desta membrana a prótons conduz à morte celular por falta de ATP, em muitas condições patológicas. Além disso, as reações redox associadas à respiração geram oxigênio reativo, altamente tóxico às células, quando a capacidade antioxidante das mesmas é deficiente”, explicou Vercesi.

A mitocôndria tem um pequeno genoma, que no homem apresenta 37 genes. Entretanto, o Projeto Genoma Humano revelou que a maioria das funções mitocondriais é codificada por cerca de 1500 genes localizados no núcleo da célula. Esta observação deu origem à hipótese de endosimbiose, reformulada há cerca de 40 anos atrás pela microbiologista Lynn Margulis, que propõe que a mitocôndria é descendente de uma bactéria que foi internalizada por uma célula nucleada há bilhões de anos atrás, conferindo a ela a capacidade de fazer a respiração. Ao longo de bilhões de anos, houve transferências de genes do endosimbionte para o núcleo do hospedeiro. Esta relação resultou em uma simbiose estável transformando a bioenergética mitocondrial numa força evolutiva com forte impacto nos mecanismos genéticos de formação das espécies.

Em contraste com a redução do genoma mitocondrial, uma das proteínas do complexo respiratório triplicou seu tamanho através da aquisição de novas subunidades, a partir tanto do genoma do endosimbionte quanto do eucarioto hospedeiro. Este complexo aumentou de 14 subunidades na bactéria original para 30 em plantas e algas, 37 em fungos e 46 em mamíferos, aparentemente refletindo tanto a complexidade do organismo quanto a sua dependência das variações do meio externo”, esclareceu Vercesi.

Em sua apresentação, Vercesi discutiu resultados obtidos em seu laboratório sobre propriedades respiratórias de mitocôndrias de fungos, tripanossomas, plantas superiores e mamíferos. Enfatizou que ao longo de milênios as mitocôndrias adquiriram novas capacidades, inclusive de controlar os nívesi intracelulares de cálcio.

Sistemas co-evolutivos predador-presa e a evolução das toxinas

O Acadêmico Paulo Sérgio Lacerda Beirão, Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e um dos organizadores do evento, fez uma boa avaliação do mesmo, que em sua opinião teve um bom alcance. “Os palestrantes foram desafiados a olhar a sua área de investigação sob a perspectiva da evolução, ou seja, a partir de um novo ponto de vista. Isso é um desafio muito interessante.”

Sua palestra sobre a co-evolução das toxinas e de seus alvos foi focada nas toxinas que entram em canais iônicos, localizados em membranas. “Como as toxinas têm como objetivo matar ou paralisar a presa ou o predador elas tem que agir com baixa concentração com alta eficácia em um alvo vital, e nada é mais vital do que os canais iônicos”, explicou o pesquisador.

Beirão falou da evolução desses canais desde a bactéria até o homem e como as toxinas começaram a aparecer no reino animal no sentido do ataque (no predador) ou da defesa, no caso da presa. Ele mostrou como os canais evoluíram e adquiriram novas funções, assim como as toxinas também evoluíram, adquirindo funções convergentes. “Isso significa que animais diferentes acabam desenvolvendo toxinas com a mesma ação, embora com estrutura diferente.”

A evolução do cérebro: velhos e novos paradigmas

Diretor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB-UFRJ), o Acadêmico Roberto Lent destacou que muitas das concepções sobre a evolução e o desenvolvimento do cérebro são baseadas em comparações entre a massa corporal e a massa cerebral, devido à falta de técnicas confiáveis para estimar a composição celular absoluta do cérebro, um órgão com células muito heterogêneas.

Lent citou alguns desses velhos paradigmas:

  • o cérebro humano tem 100 bilhões de neurônios e dez vezes mais células gliais, as companheiras funcionais dos neurônios;
  • o crescimento evolutivo do cérebro depende do aumento numérico de suas células em todas as espécies, e pode ser descrito matematicamente por funções matemáticas do tipo “potência” (funções de escala);
  • o córtex cerebral é o pináculo da evolução;
  • o crescimento do cérebro ocorre pela adição de módulos de composição celular homogênea durante o desenvolvimento e a evolução;
  • o desenvolvimento cortical se completa durante o desenvolvimento embrionário, e não envolve a adição pós-natal de novos neurônios (neurogênese adulta).

Utilizando uma nova tecnologia desenvolvida no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, chamada fracionamento isotrópico, Lent e sua equipe realizaram contagens celulares em diferentes espécies mamíferas – inclusive a humana -, em adultos e em neonatos, para testar esses paradigmas. “Os resultados nos permitiram questionar muitos desses dogmas, e propor novos modelos para a interpretação da evolução e o desenvolvimento do cérebro”, esclareceu.

Além disso, a descoberta da função de escala da ordem dos primatas e a constatação de que os humanos não são “pontos fora da curva”, mas apenas primatas com cérebros grandes, tem permitido estimar a composição celular absoluta dos hominídeos, cuja capacidade endocraniana é conhecida. Lent destacou que a proposição desses novos paradigmas tem o potencial de possibilitar conclusões importantes acerca do aparecimento das funções mais sofisticadas de que o cérebro é capaz, como a cognição, a emoção e a linguagem, já que são os neurônios e células gliais, e não o tamanho global do cérebro, os reais determinantes da sua extraordinária capacidade computacional.

O Big-Bang e a evolução do universo

A Acadêmica Beatriz Barbuy estendeu o início da evolução humana ao Big Bang, início do Universo, que provavelmente ocorreu há 13,7 bilhões de anos atrás. Em uma apresentação elegante e accessível, mostrou como somos capazes de descrever eventos que remontam a 10-47 de um segundo do Big Bang. Discutiu vários modelos e ressaltou a importância que terá o Large Hadron Collider (LHC) na validação desses modelos, alé, de dar elementos que confirmam a proposta de Carl Sagan de que somos “matéria estelar contemplando o Cosmo”. Finalmente, ressaltou a necessidade e a importância estratégica do Brasil assumir seu papel de potência científica e participar financeiramente no consórcios de grandes telescópios que permitam o nosso entendimento dos processos de evolução cósmica.

Origem e evolução da vida na terra

“A origem da Vida na Terra parece ter ocorrido concomitante ao momento no qual nosso planeta apresentou água na forma líquida, necessária para abrigar as primeiras formas de vida”. Assim iniciou sua palestra o Acadêmico Carlos Frederico Martins Menck, professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).

No entanto, segundo o pesquisador, fósseis indicam que há 3,8 a 3,5 bilhões de anos atrás, as células já tinham um grau de complexidade comparável aos seres vivos que conhecemos, provavelmente tendo o DNA como material genético. “Isto não é compatível com a existência do Mundo de RNA, no qual as células teriam essa molécula como guardiã da informação genética. Assim, esse Mundo, se existiu, foi efêmero, dando lugar ao Mundo de DNA atual”, observou Menck. O cientista lembrou que nenhum dos organismos atuais conhecidos é composto de células de RNA, apesar de alguns vírus manterem essa molécula e, por isso, serem chamados de fósseis moleculares. Sendo assim, é possível que esses organismos, com células de RNA, estejam extintos.

Alternativamente, a origem da célula de DNA na Terra dependeu de processos evolutivos anteriores a própria origem do planeta, tendo ocorrido em algum outro local do universo. Menck constatou que, de fato, no curto período de 300 milhões de anos a vida não só floresceu na Terra, como sofreu mudanças que deixam poucos vestígios que nos indiquem como eram as primeiras formas de vida. “Essas formas iniciais evoluíram: mudaram o material genético e alcançaram um grau de complexidade similar a algumas bactérias atuais, apesar do ambiente hostil daquela época, o que é conhecido como o paradoxo do tempo para a origem da vida na Terra”. Para o Acadêmico, talvez a origem da vida não seja um processo complexo em si e pode ter acontecido várias vezes em nosso planeta, … ou mesmo em outros locais do universo.

Hoje, todas as células atuais são muito similares, possuindo DNA como material genético e um metabolismo de transcrição do RNA e tradução de proteínas incrivelmente similar, indicando um ancestral único. Menck explicou que, no entanto, simplesmente a herança vertical de uma geração a outra dos genes no processo de evolução dos seres vivos não é capaz de explicar a composição dos genes nos genomas desses organismos. “A transferência genética horizontal, de um organismo para outro contemporâneo, deve ter sido presente desde a origem dos primeiros formas de vida.”

Seu trabalho atual mostra dados de como a transferência genética horizontal afeta a composição atual dos genomas procariontes. “Além de genes com funções secundárias, detectamos alguns casos onde a substituição de vias metabólicas primárias (e essenciais aos organismos) deve ter ocorrido através de transferência entre organismos não relacionados evolutivamente. De um modo geral, calculamos que genomas procariontes são compostos de cerca de 15% de seus genes provenientes de transferência horizontal.

Para o organizador Sérgio Danio Pena, uma única palavra para descrever primeiro dia do Annus Caroli seria espetacular. “Ficou clara a importância seminal do arcabouço conceitual evolutivo que une todas as ciências, da astrofísica ao DNA. Essenreferencial científico ilumina o entendimento dos fenômenos naturais e serve de inspiração e modelo para desenvolvimento de novas estratégias experimentais. E assim, uniram-se todos os presentes para reverenciar a memória de Carlos Darwin.”