O Acadêmico Eliezer Barreiro, Professor Titular do Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas do Programa de Desenvolvimento de Fármacos (ICB/UFRJ), apresentou na 61ª Reunião Anual da SBPC, em Manaus, palestra em que tratou de um desafio estratégico para a Química brasileira.

Segundo Barreiro, as preocupações com as doenças ditas negligenciadas – leishmaniose, doença de Chagas, HTLV1, esquistossomose, tuberculose, hanseníase – ultrapassam nossas fronteiras e motivam esforços organizados e articulados para otimizar a pesquisa, desenvolvimento e inovação na área. “Entre outras entidades, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU) desenharam alguns pontos que são dignos de desafio, tentando mobilizar a competência científica estabelecida no planeta para que parte dela seja dedicada à melhoria da qualidade de vida de pessoas de nações tanto ao norte como ao sul do Equador”. Entre os desafios e esforços propostos para serem enfrentados até 2015 estão ações de saúde que incluem o desenvolvimento de moléculas de interesse terapêutico.

Barreiro procurou registrar algumas contribuições históricas relativas à questão da biodiversidade. Destacou a importância da preservação da memória científica, “para, eventualmente, com as revisões apreendidas, poder utilizá-las, aproveitando ao máximo os recursos tecnológicos”. O cientista ressaltou que temos na biodiversidade vegetal excelentes exemplos de diversidade química nas estruturas moleculares que podem ser utilizadas com eficácia contra doenças ainda invencíveis, através da compreensão de sua atividade.

Embora o Brasil seja um país de muitas diferenças regionais, um problema é praticamente comum: o acesso a medicamentos não está disponível para mais de 50% da população. As condições de pobreza e a falta de estrutura sanitária contribuem para a incidência e o impacto das doenças ditas negligenciadas. “É claro que estas são questões sociais básicas, que passam por ações políticas necessárias e urgentes. Nossa parte é organizar a competência sanitária que pode contribuir para melhorar a situação”. Barreiro avalia o desafio como bastante complexo e reconhece que sensibiliza autoridades de saúde pública de nosso país.

A quinina

O pesquisador enfocou a estrutura química da quinina, que é uma molécula latino-americana conhecida há muito tempo pelos ameríndios por controlar a febre cíclica em caso de malária. Jesuítas exportaram esse conhecimento à Espanha e foi o chá da casca da quinina que controlou a evolução dessas malárias primitivas. Seu uso, porém, tinha como efeito colateral provocar um desequilíbrio dos eletrólitos, instalando alguns tipos de hipertensão que se mostrou irreversível. “Então, é preciso domesticar esses compostos e, eventualmente, utilizar a quinina pura, desprovida desses efeitos do desequilíbrio natural.”, esclareceu Barreiro.

A quinina possui um núcleo quinolínico que despertou o interesse de sagazes químicos alemães de então, que por terem conhecimento suficiente da química de corantes, encontraram um derivado importante, a cloroquina. Esta substância ingressou no mercado e foi muito utilizada pelo exército americano durante a Segunda Guerra no norte da África. “Mas os Plasmodiuns reagiram e desenvolveram resistências à cloroquina e também a uma molécula que nasceu nos laboratórios de pesquisa da Unicamp, a metoquina, que é muito mais similar à quinina mas que também foi suplantada pela agilidade bioquímica dos protozoários”.

Barreiro contou que a penicilina veio como segundo recurso efetivo no tratamento da malária e hoje já foram identificados vários exemplos de moléculas semelhantes à penicilina, que foram otimizadas. “A expectativa sobre a domesticação dessa substância ainda existe, porque nem todas as substâncias naturais possuem as propriedades farmacocinéticas adequadas ao uso por via oral e nem a biodisponibilidade suficiente, o que demanda do químico medicinal estratégias de domesticar a estrutura não selvagem do produto natural. Nosso laboratório deu uma contribuição singela em modificações do padrão da penicilina”.

O safrol

Eliezer Barreiro referiu-se também ao potencial do safrol, principal componente químico do óleo de sassafráz. Este óleo era extraído continuamente da canela branca, de forma predatória, até quase o esgotamento da fonte. Descobriu-se, então, que o óleo poderia ser obtido das Piperaceaes, que são muito mais fáceis de manejar economicamente, porque são plantas arbustivas e uma das variedades dela é amazônica, conhecida como pimenta longa. Nelas, o óleo essencial encontra-se na copa da planta, que rebrota com facilidade após o corte. A Embrapa do Norte dispõe de uma plantação que produz sustentavelmente o óleo de piper, 80% composição do safrol.

“Considero o safrol um bióxido natural que fala português. É abundante, pode ser manejado de forma sustentável e é um bloco de construção para moléculas muito interessante”. O cientista contou que seu grupo explora o potencial do safrol já há algum tempo. “Obtivemos várias moléculas com diversos tipos de atividade e investimos, finalmente, em algumas delas que podem ser utilizadas em doenças negligenciadas”. Para ele, é um dever do cientista brasileiro que constrói moléculas para obesidade, diabetes e disfunção erétil, por exemplo, usar a competência adquirida em “doenças de pobre”. “E a utilização do safrol contra o T. Cruzi foi efetiva, foi capaz de inibir 50% dele e também da Leishmania brasiliensis.”

Aproveitando a biodiversidade de forma sustentável

O pesquisador destacou “os segredos moleculares que a natureza nos reserva”. Segundo ele, um químico orgânico sintético jamais teria a inspiração de construir um arcabouço molecular semelhante à penicilina se a natureza não lhes tivesse mostrado. “Se isso não fosse obtido da natureza, não teríamos tido a felicidade de identificar outros mecanismos de ação antimalárica que essa molécula representa. Significa dizer que os produtos naturais de origem vegetal, que guardam arquiteturas moleculares originais e inéditas impensáveis, podem ser capazes de responder como mecanismos de intervenção terapêutica inovadores”.

“Nosso exuberante patrimônio genético mostra que temos moléculas substancialmente importantes a descobrir”, disse Barreiro, que brincou afirmando que essa é uma demonstração cabal de que Deus é brasileiro. “Então, é necessário que nós conheçamos a nossa diversidade, nem que seja para saber melhor defini-la”. Ele explica que existem dificuldades para se controlar todos os fatores que envolvem o desenvolvimento de moléculas de interesse terapêutico a partir de substâncias naturais. “À medida que vamos avançando na cadeia de inovação, essa demanda para cumprir os ensaios aumenta e nem sempre a quantidade do produto natural disponível na fonte é suficiente ou atende sem o manejo adequado às qualidades necessárias”. Para o Acadêmico, não podemos continuar pensando como colonizados. “Temos que alcançar um desenvolvimento científico e tecnológico à altura desse desafio, nos apropriar dessa riqueza e sermos capazes de fazer com que ela seja acessível a todos os brasileiros. Para isso, é necessário que identifiquemos os gargalos desse processo de apropriação da riqueza”.

Um desses gargalos, em seu ponto de vista, é a capacidade de produzir extratos em quantidade, de forma padronizada, nos quatro cantos do país. “De nada vale termos as moléculas que a natureza nos dá se não formos capazes de domesticá-las e conseguirmos obter a quantidade necessária para fazer os testes em animais”. Barreiro destacou o que considera hoje uma das ações mais relevantes do Governo Federal no sentido de propor correntes de competência, os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), um projeto do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). “Nossa rede se situa exatamente em fármacos e medicamentos, propondo-se a identificar e articular as competências já existentes no país.”

“Temos a cumprir um caminho complexo e árduo. Mas nós, brasileiros, não tememos desafios”. O pesquisador destaca que os parceiros neste caminho devem ser três: universidades, empresas e governo. O governo federal está dando apoio através dos INCTs, que Barreiro considera ainda insuficiente, mas que reconhece certamente como um passo relevante. “As universidades, que formam hoje dez mil doutores por ano, com um sistema de pós-graduação consolidado que não tem mais de 50 anos, estão cumprindo o seu papel. Algumas empresas farmacêuticas brasileiras mostraram que estão sensíveis a essas ações. Nosso INCT de Fármacos e Medicamentos está atuando, exatamente, na composição desse trio e aglutinando competências científicas já existentes.”