Do homo sapiens para o homo ambientallis

O professor de Fisiologia Vegetal da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto de Botânica (IBT) Marcos Buckeridge deu início ao ciclo de palestras dessa sessão. Ao tratar da produção de etanol celulósico a partir da cana de açúcar, tema central de sua apresentação, o também membro convidado do Grupo de Estudos de Biocombustíveis da ABC relatou que é possível, praticamente, dobrar a produção de etanol através do uso da celulose.

O etanol celulósico, também chamado etanol de lignocelulose, é o etanol obtido a partir da celulose, hemicelulose e pectina, principais constituintes dos resíduos vegetais que não servem à alimentação humana e são pobres para o gado (palha). O uso de resíduos agrícolas, que de outra maneira não seriam aproveitados, para produção de etanol (etanol celulósico), poderia por fim a discussão sobre o preço dos alimentos versus biocombustíveis.

Buckeridge explica que a produção do etanol celulósico a partir da cana de açúcar pode ocorrer em quatro gerações. A primeira seria a produção de sacarose a partir do colmo da cana, técnica já existente. A segunda seria a produção de etanol a partir de açúcares produzidos pela hidrólise ácida do bagaço. A terceira envolve a produção de açúcares a partir da parede celular, usando enzimas de microorganismos. Já a quarta geração compreenderia uma integração de todas as gerações, mas com uma matéria prima modificada geneticamente e capaz de realizar alterações na parede celular que tornariam mais eficiente o processo da terceira geração. O pesquisador frisa que o avanço no conhecimento sobre a fisiologia de plantas utilizadas para a produção de etanol e o emprego de ferramentas de engenharia genética e industrial deverão desempenhar importantes papéis no aumento da produtividade do etanol, independentemente da geração.

“O Brasil mói dois milhões de toneladas de cana e o rendimento industrial do álcool a partir da sacarose é 92,5 toneladas por hectare, em média. Se utilizarmos o etanol celulósico, vamos produzir mais 123 toneladas. E se aproveitarmos a xilose do bagaço, mais 123. Isso significa que temos uma safra de 185 mil m3 de etanol da sacarose e poderíamos obter 372 mil m3 de etanol celulósico, alcançando uma safra total de 557 mil m3“. Esses números, segundo Buckeridge, tornariam o Brasil extremamente importante no cenário mundial.

O pesquisador salientou que a mudança climática global é a grande propulsora da busca por novas tecnologias para obtenção de etanol. Como objetivo de entender os mecanismos de acúmulo de biomassa e avaliar outros aspectos bioquímicos afetados por essas mudanças, Buckeridge estuda seus efeitos sobre a cana de açúcar e outras espécies de interesse para a obtenção de energia renovável em regiões amazônicas.

Buckeridge estuda também uma maneira de capacitar a cana para seqüestrar carbono. “A cana não seqüestra carbono. Quem o faz é a floresta. Nós precisamos de cana e também de floresta. Mas aqui no sudeste destruímos 95% dela”. O pesquisador explica um procedimento chamado de caminho do meio, no qual corredores de florestas são colocados no meio do canavial a fim de provocar a regeneração de florestas. “Precisarmos de pouca floresta para seqüestrar uma quantidade significativa de carbono e fazer com que a cana, além de produzir biocombustível, que evita a poluição, também ajude a seqüestrar carbono”. Buckeridge frisa que o Brasil é líder mundial de regeneração de florestas tropicais e que “podemos lançar mão dessa biotecnologia para tornar o nosso etanol muito potente ambientalmente.”

Encerrando, o cientista salientou que o Brasil hoje é considerado um exemplo de sustentabilidade energética e, no entanto, continua a queimar florestas. “Se quisermos ser uma potência ambiental – e o Brasil pode ser – temos que fazer é a passagem do homo sapiens para o homo ambientallis“.

Oportunidades globais para o bioetanol sustentável

Dando prosseguimento ao Simpósio, o conselheiro do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) Marcelo Khaled Poppe discorreu sobre as oportunidades globais para o bioetanol sustentável. O engenheiro elétrico, com mestrado em Economia da Produção Inovação e Sistemas de Energia Econômica pela Universidade de Paris IX, iniciou a palestra destacando o desempenho do Brasil no uso de energias renováveis.

Poppe atribui tal fato à importância da cana de açúcar, que fornece cerca de 15% da nossa necessidade de energia, equiparando-se ao que as hidrelétricas fornecem de energia primária no país. Segundo ele, esse é um dado muito importante porque a cana é um excelente captor de energia solar e fixador de tais fontes. “A participação das energias renováveis na matriz energética é significativa no Brasil. Quase 46% das nossas fontes primárias de energia são renováveis. Isso é muito diferente do que se encontra no mundo e, em particular, nos países desenvolvidos”,se entusiasma.

No ano de 2008, segundo Poppe, o Brasil já consumiu mais álcool, etanol, bioetanol de cana de açúcar do que gasolina em termos de volume métrico. Tal evolução, segundo ele, se deve à capacidade que o país tem tido de valorizar os seus recursos naturais através do conhecimento. O engenheiro explica que o desenvolvimento tecnológico é essencial para se atingir esses resultados. “Essa nossa produtividade de sete mil litros por hectare ao ano não ocorre só devido às condições de solo e clima de que dispomos, mas também devido à incorporação de ciência, tecnologia e inovação nas diversas etapas da produção”, completa.

De acordo com Poppe, considerando critérios agroecológicos e as culturas existentes não só agora, mas em 2025, estima-se que seriam necessários cerca de 32 milhões de hectares mobilizados para se produzir todo o açúcar e o álcool de que o país precisaria e também atender a 10% da demanda internacional de etanol. Como a defasagem entre a disponibilidade e a necessidade de área é muito grande, Poppe observou que deve ser feito grande volume de investimento na expansão da cana de açúcar na região sudeste.

Por outro lado, o pesquisador comemora a forte expansão da produção de bioeletricidade. Até 2020, segundo ele, o Brasil deverá ter 15% da energia elétrica fornecida por açúcar e álcool. “Esse é um dado muito importante para a expansão em nível internacional, uma vez que a maioria dos países tropicais tem um déficit de energia elétrica e, desse modo, o Brasil contribuiria também nessa frente, além do combustível líquido”, finaliza.

Estratégia da Petrobras na pesquisa e desenvolvimento de biocombustíveis

A terceira convidada a falar sobre biocombustíveis líquidos foi a gerente de Energias Renováveis da Petrobras, Maria Cristina Espinheira Saba, especialista em Química Analítica Inorgânica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Maria Cristina iniciou sua palestra enumerando quatro razões para o desenvolvimento e o uso dos biocombustíveis por parte da Petrobras: o aquecimento global,os altos preços do petróleo, a dependência do Brasil da importação desse óleo e a necessidade da inclusão social, através do beneficiamento de pequenos agricultores, principalmente por conta do biodiesel, da mamona e de outras oleaginosas.

A especialista aponta também a tendência internacional de incorporação dos biocombustíveis, ressaltando que o Brasil se encontra entre a primeira geração, com o biodiesel, o etanol e o terc-butil-éter, e a segunda, que é o etanol advindo dos rejeitos da primeira geração. “Até 2020, a Petrobras pretende ter, assim como o mundo todo, uma biorrefinaria onde a partir da biomassa são produzidos diversos derivados”, assinala Maria Cristina. Ela explica que através da biomassa, usando rotas bio ou termoquímicas, e com uma co-geração de energia através da própria biomassa, essa refinaria será capaz de produzir combustíveis químicos e outros. Isso é o que a cientista chamade integrar toda a cadeia. E acrescenta: “A Petrobras pretende ser uma das cinco empresas de energia integrada do mundo e a preferida de seu público de interesse em 2020”, completa.

A companhia, que tem como missão contribuir para o desenvolvimento do Brasil e dos países onde opera – 27 atualmente -, tem como uma de suas metas a exportação de biocombustíveis. “Temos o objetivo de atuar globalmente na comercialização e logística de biocombustíveis, liderando a produção nacional de biodiesel e ampliando a participação no negócio do etanol”, afirma Cristina.

A especialista referiu-se às quatro linhas de pesquisa em biocombustíveis nas quais a Petrobras vem atuando: o H-Bio (diesel fóssil que tem 20% de matéria renovável e que, portanto, é mais verde), o biodiesel, o bioetanol e os combustíveis sintéticos. Cristina analisou a estratégia de tecnologia da companhia. “Desde 2006 nosso plano é demonstrar as tecnologias de biocombustíveis e biomassa cultivadas para biodiesel e H-Bio, e desenvolver outras para a segunda geração a partir de rejeitos. Assim vamos poder dar o salto para o novo qüinqüênio – 2008 a 2015 – quando vamos demonstrar essas tecnologias de segunda geração, o que significa passar para uma escala muito maior do que um laboratório ou uma planta piloto”, concluiu Maria Cristina.

Avaliação do ciclo de vida dos biocombustíveis líquidos

Fechando a sessão, o físico e Acadêmico Carlos Alberto Aragão de Carvalho falou sobre avaliação do ciclo de vida dos biocombustíveis líquidos. Graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado em Física das Partículas Elementares pela Université de Paris XI- Orsay, na França, Aragão é hoje Professor Titular de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro e consultor do Inmetro.

O trabalho apresentado tem como foco identificar e avaliar os impactos ambientais ao longo de todo o ciclo de vida de um determinado produto, desde a produção, consumo e utilização até o descarte, sua reciclagem ou mesmo reutilização. O objetivo, esclareceu o físico, é identificar o custo/benefício do produto em questão, o quanto custa produzi-lo em termos ambientais e energéticos. Para tal, garante que os cálculos são essenciais. “É preciso calcar essas avaliações em medidas que sejam confiáveis e verificáveis”.

Aragão explica que, no caso dos biocombustíveis líquidos, as avaliações devem ser ancoradas em trabalhos que tenham sido feitos em sua maior parte no Brasil. “Detemos uma tradição de quase 40 anos de estudo sobre o bioetanol. Agora na fase do biodiesel, um dado relevante é que o Brasil é responsável por 9% da produção mundial de artigos publicados em revistas indexadas sobre o assunto. Isso é muita coisa!”, anima-se.

O pesquisador destaca dois dados importantes do trabalho de avaliação. Um é o balanço energético, razão entre a energia que o combustível fornece e a energia que foi necessária para produzi-lo. O segundo é a estimativa das emissões de gases de efeito estufa associadas ao processo de produção, utilização e descarte do produto. Aragão garante que o etanol de cana de açúcar tem um balanço de energia extremamente favorável quando comparado a outras matérias-primas. Além disso, a substância apresenta outro benefício. “O etanol produzido pela cana-de-açúcar no Brasil tem uma possibilidade de mitigação de efeitos climáticos muito favorável, muito maior do que a maior parte das matérias-primas e, inclusive, comparável com os processos de 2ª geração”, arremata.

Aragão critica uma atitude que considera comum no seu setor. “A idéia de utilizar parâmetros globais para fazer uma inferência sobre algo que é local não faz o menor sentido”, diz. Isso leva a planejamentos e conclusões equivocadas. Um exemplo é a idéia de fragilidade dos biomas brasileiros. “A produção de cana no Brasil está concentrada na região sudeste e todo o planejamento sobre o que é necessário para expandir a nossa cana para dar conta de substituir 10% dos combustíveis fósseis no mundo por bioetanol tem como pressuposto básico eliminar a região Amazônica, a mata Atlântica, o cerrado, ou seja, os biomas frágeis brasileiros. E nós, brasileiros, somos os maiores interessados em que essa biodiversidade seja preservada”, observa. Porém, o físico se antecipa em dizer que esse tipo de iniciativa é denunciada rapidamente.

Aragão finalizou a palestra afirmando que, para que erros assim não aconteçam, é fundamental a utilização de métodos de comparação nas avaliações. Para que não haja equívocos, o órgão responsável por tal atribuição, o Instituto Nacional de Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial (Inmetro) tem procurado criar um padrão de referência para as avaliações do ciclo de vida. Na questão dos biocombustíveis, o que se avalia é o preparo do solo, a utilização de pesticidas e fertilizantes, o método de colheita, o transporte para a planta industrial, a co-geração de eletricidade e o transporte para os consumidores finais.