A tendência para a ciência no século XXI é se tornar cada vez mais colaborativa, interdisciplinar e orientada a grandes temas da sociedade. Ao mesmo tempo, a cultura entre pesquisadores, sobretudo no Brasil, ainda preza muito por projetos individuais e menos para gestão e divulgação como qualidades concorrentes ao esforço principal de fazer ciência. Para discutir como fazer pesquisa colaborativa de excelência, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) organizou mais uma edição da série Mentorias da ABC, dessa vez com o tema “Desafios na elaboração de projetos colaborativos e de espaços multiusuários de pesquisa”.

Foram convidados para compartilhar suas experiências a afiliada Marcia Mesko, professora de Química e chefe do Núcleo de Planejamento e Infraestrutura em Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); os ex-afiliados Daniel Martins-de-Souza, professor de Bioquímica da Unicamp e coordenador de Biologia da Fapesp, e Mirco Solé, professor de Biologia na Universidade Estadual de Santa Cruz-BA (UESC).

Também participaram da discussão os afiliados José Rafael Bordin e Nara Quintão, que coordenam a série de Mentorias da ABC, e o vice-presidente regional da Academia para São Paulo, Glaucius Oliva.

Ciência colaborativa no Brasil

A pesquisa brasileira está gradativamente se transformando para se tornar cada vez mais coletiva e com infraestruturas compartilhadas. Conforme recordou Daniel Martins-de-Souza em sua apresentação, o crescimento da comunidade científica nas últimas décadas transformou um ecossistema que era composto principalmente por poucos especialistas ilhados em seus laboratórios e grupos de pesquisa próprios.

As primeiras experiências robustas com ciência colaborativa vieram apenas com a virada do milênio. A partir dos anos 2000 a Fapesp lançou os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que unem pesquisa básica e aplicada em grandes temas interdisciplinares de interesse nacional como câncer, urbanização, produção de alimentos e computação.

Já em 2005, o CNPq e o então Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) lançaram o programa Institutos do Milênio, cujo objetivo também era concatenar a pesquisa em grandes temas, dessa vez a nível nacional. Em 2008, o programa evoluiu para o que são hoje os bem-sucedidos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), mais de cem institutos espalhados pelo Brasil com a função de realizar pesquisa de ponta em temas estratégicos, formando pessoal especializado e difundido e internacionalizando a ciência brasileira.

Bate-papo na mentoria reuniu os afiliados Márcia Mesko, Nara Quintão e José Rafael Bordin, os ex-afiliados Daniel Martins-de-Souza e Mirco Solé e o vice-presidente regional da Academia para SP, Glaucius Oliva.

Os pilares da ciência colaborativa

  • Diversidade racial e de gênero: Grandes questões são por definição multifatoriais e com efeitos diferentes nos diferentes grupos populacionais. Analisar um problema como a violência no Brasil sem a presença de mulheres ou negros não faz o menor sentido. O mesmo pode ser dito para temas como mudanças climáticas, pandemias e educação básica.
  • Diversidade institucional: Diferentes universidades e institutos de pesquisa naturalmente possuem culturas e correntes de pensamento dominantes que influenciam na formação de seus alunos. Embora a relação entre instituições possa ser difícil na hora de colaborar, devido à diferenças na burocracia e regimentação, essa troca de visões é fundamental.
  • Interdisciplinaridade: Embora a ciência tenha se tornado cada vez mais especializada, manter pontes com outras áreas é crucial para não perder de vista os pontos principais de sua pesquisa. Nas palavras de Martins-de-Souza, “apresentar meu trabalho em congressos de outras áreas é sempre fantástico, pois é de lá que vem as perguntas elementares e fora da caixa”.
  • Interação com o setor privado: Alguns cientistas defendem que só é inovação quando chega na sociedade. Embora isso possa ser debatido, é fato que um dos papéis fundamentais da ciência é criar novos produtos, métodos e processos que contribuam com o bem-estar da população. Os palestrantes foram unânimes em defender que grandes centros compartilhados devem ser incentivados a parcerias e prestação de serviços junto ao setor privado.
  • Divulgação científica: Grandes pesquisas colaborativas devem contar com setores profissionais e especializados na comunicação de ciência. Não basta criar sites e redes sociais e dizer que divulga ciência, é preciso investir em produção contínua de conteúdo e diálogo constante com a mídia. “A sociedade tem o direito de entender o que está financiando”, resumiu Mirco Solé.

Direitos e deveres no compartilhamento de espaços

Um dos maiores desafios da colaboração científica surge na hora de compartilhar espaços. Laboratórios são ambientes controlados por definição, demandando que cada usuário compreenda seus direitos e deveres para evitar uma situação de “tragédia dos comuns”. Para Márcia Mesko, os grandes entraves para esse compartilhamento no Brasil são a falta de regras claras e de um corpo técnico especializado que dê suporte aos cientistas.

“A maior parte dos pesquisadores tem aversão a cargos de gestão desses espaços compartilhados justamente por falta de uma contrapartida institucional para a sobrecarga de trabalho que uma função dessas exige”, afirmou.

Márcia defendeu a elaboração de estatutos e regras de boas práticas mais robustas na hora de compartilhar bancadas. Ela também alertou para a necessidade de novos editais, inclusive para a manutenção de infraestruturas já existentes. “Manter, qualificar e ampliar um centro de pesquisa requer dedicação de seus usuários, mas também previsibilidade e investimento contínuo em CT&I”.

Submeter e gerir projetos coletivos

Mirco Solé trouxe sua experiência como avaliador de projetos para mostrar erros comuns que pesquisadores incorrem na hora de submeter propostas. “Não adianta ficar meses destrinchando a parte teórica da sua ciência e gastar 5 minutos escrevendo seu plano de gestão e comunicação. A concorrência por grants é alta, é preciso garantir que todos os requisitos foram satisfatoriamente cobertos”, afirmou.

O ex-afiliado sugeriu que os proponentes sintam-se livres na hora de submeter uma ideia para financiamento, incorporando uma narrativa por cima de seu projeto e não se prendendo a formalidades exageradas. “Os avaliadores já estão cansados de ler os projetos sempre no mesmo formato. Desde que cumpra os requisitos e explique bem sua ideia, podemos sempre ousar e inovar”, sugeriu.

Nesse ponto, o VP Regional da ABC Glaucius Oliva alertou que a colaboração não pode acabar na submissão. “Ganhar um projeto é muito diferente de gerir. Acontece muito de grupos se juntarem na hora de tentar um edital e depois vai cada um para o seu canto, assim o individualismo acaba vencendo”, alertou.

Para Oliva, os grupos pequenos de pesquisa devem agir como uma célula, interagindo com outras células para garantir o funcionamento do organismo. Ele defendeu também que a definição sobre grandes temas não pode ser uma decisão de cima para baixo, como aconteceu muito no governo anterior. “Precisamos urgentemente fazer uma nova Conferência Nacional de CT&I, a última foi em 2010, é de lá que saem as prioridades”.

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