Leia o artigo escrito pelo Acadêmico Phillip Fearnside publicado no portal Amazônia Real:

O Presidente Lula já tomou um número grande de medidas promissoras para o futuro da Amazônia. No entanto, ainda há alguns assuntos chaves preocupantes. Uma grande dúvida é se Lula vai levar adiante o projeto de “reconstrução” da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). Ele afirmou em entrevista em junho de 2022 que a rodovia é importante para as economias do Amazonas e Rondônia e que deve ser construída se os governos federal, estaduais e municipais tiverem um compromisso com a “preservação” [1]. Infelizmente, mesmo que tal compromisso pudesse realmente impedir o impacto, os governos eleitos mudam a cada poucos anos, e não há garantia da presença ininterrupta da coragem política e dos recursos financeiros astronômicos que seriam necessários.

A rodovia BR-319 foi construída em 1972-1973, inaugurada em 1976 e abandonada em 1988; foi tornado minimamente transitável por um chamado programa de “manutenção” desde 2015. A BR-319 e suas estradas secundárias planejadas abririam o maior bloco remanescente de floresta amazônica para a entrada de desmatadores a partir do notório “arco do desmatamento” ao longo do bordas sul e leste da região [2]. O projeto é apoiado por todos os políticos de Manaus, inclusive os que apoiam Lula, desde que, é claro, o projeto seja custeado pelo governo federal com recursos dos contribuintes de todo o Brasil.

O projeto é incomum por não ter uma justificativa econômica, sendo o único grande projeto de infraestrutura no Brasil que não possui um estudo de viabilidade econômica (EVTEA). Transportar produtos para os mercados de São Paulo a partir das fábricas da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) é muito mais barato pelo atual sistema de transporte por barcaça e rodoviário do que seria pela BR-319, e seria ainda mais barato se transportado em contêineres em navios oceânicos [3]. A licença prévia para o projeto de reconstrução foi aprovada em julho de 2022, apesar da consulta necessária aos povos indígenas impactados não ter sido realizada (ver: [4-6]).

Argumentos alternativos para a BR-319 também são falaciosos. Se o objetivo fosse melhorar o acesso a escolas e postos de saúde para a população do interior do estado do Amazonas, os recursos seriam gastos na construção e operação dessas unidades em todo o interior do estado e não na reconstrução de uma estrada cara para os poucos sortudos que se estabeleceram ao longo da rota da rodovia. A estrada não é prioritária para a “segurança nacional” porque fica distante das fronteiras do Brasil, conforme afirmado em 2012 pelo comandante do Exército Brasileiro para a Amazônia (ver [7]), e não é mencionada em nenhuma parte do Estratégia Nacional de Defesa de 2008 dos militares (por exemplo, [8]) construir uma estrada até sua porta. Por fim, o argumento de que o resto do Brasil deveria pagar pela estrada porque tem uma “dívida histórica” com a Amazônia por ter explorado a região durante séculos em benefício dos ricos estados do sudeste do país dificilmente será convincente em São Paulo, especialmente se a população de lá percebesse que 70% da água que sustenta a cidade de São Paulo vem pelos ventos conhecidos como “rios voadores” justamente a área de floresta ameaçada pela BR-319 e suas vicinais [9-11].

A retórica em torno da rodovia BR-319 invariavelmente afirma que o desmatamento na área será evitado pela governança. O primeiro dos dois EIAs (Estudo de Impacto Ambiental) chegou a apresentar o Parque Nacional de Yellowstone como o exemplo de governança que se espera que prevaleça, mostrando um mapa desse parque norte-americano com as estradas pelas quais milhões de turistas dirigem sem cortar uma única árvore ([12]; ver [13]). Em 2010, Dilma Rousseff, então chefe da Casa Civil presidencial de Lula, anunciou que a BR-319 seria uma “estrada parque”) onde os turistas passeariam de carro para admirar a mata [14].

Políticos de Manaus afirmam que a rodovia será “um exemplo de sustentabilidade para o mundo” [15]. Infelizmente, esse cenário é pura ficção, e a rota da rodovia hoje é basicamente uma área sem lei, onde a extração ilegal de madeira e a grilagem de terras estão à vista [16, 17]. A rápida multiplicação de estradas ilegais endógenas (“ramais”) está dando acesso à invasão de áreas protegidas e terras públicas não destinadas [18-20]. Quanto ao argumento frequentemente ouvido de que a pavimentação da estrada resultará em melhor acesso para os fiscais e, portanto, menos violações das leis ambientais, isso é desmentido pela história até agora: com a melhoria gradual da estrada por “manutenção” desde 2015, as violações ambientais têm constantemente aumentado, ao invés de diminuir.

Acesse o texto no Amazônia Real.

Trecho da BR-319. Projeto começou na década de 70, durante a Ditadura, mas foi abandonado em 88. (Foto: Carolle Alarcon)