Confira o artigo de Hernan Chaimovich para o Jornal da USP, publicado em 30/11:

A necessidade de voltar a um estado social onde, dentro do clube, da escola ou da família, as opiniões divergentes gerem discussões ricas, educativas e acaloradas sem criar divisões intransponíveis é imperativa. Na experiência internacional, divisões intransponíveis podem, até no contexto familiar, gerar separações que se estendem por gerações. É urgente, portanto, se perguntar como podemos dialogar com pessoas ou com grupos que se distanciaram nestas eleições. Uma sociedade saudável requer confiança, mas, depois destes quatro anos de governo Bolsonaro, a nossa confiança uns nos outros, em muitas instituições importantes e nas informações foi quebrada. Há uma sensação de que aqueles com perspectivas diferentes não conseguem encontrar um terreno comum. Perdemos a confiança nas instituições básicas que deveriam nos servir, deixando muitos inseguros sobre a quem recorrer para obter informações essenciais.

A divisão entre “nós” e “eles” entre os brasileiros nunca foi tão profunda como nos dias de hoje. Em um país com as desigualdades sociais abissais do Brasil, uma divisão nós/eles sempre existiu, basta observar a distribuição de renda da população ou os índices internacionais que medem as desigualdades. Porém, os últimos quatro anos, além de estabelecerem uma nova e artificial divisão, consolidaram e deram legitimidade para crenças e preconceitos de porção importante da população brasileira. Longe de mim acreditar que os mais de cinquenta e oito milhões de votantes que preferiram Bolsonaro no segundo turno da eleição presidencial deste ano compartilham os bordões nazifascistas, as crenças religiosas, os preconceitos raciais e outras características da confusa ideologia reacionária do seu governo. Ainda assim, o número de seguidores fiéis ao seu legado ideológico é considerável, a julgar pelas manifestações das últimas semanas.

O negacionismo é uma das partes do credo bolsonarista que pode resistir a menos que boa parte da sociedade possa ser convencida que manter essas crenças é, além de falso, arriscado. O negacionismo pode ser caracterizado como o emprego de argumentos retóricos para dar a aparência de debate legítimo onde não há nenhum debate e/ou uma abordagem que tem como objetivo final rejeitar determinada proposição sobre a qual existe consenso científico. A atitude do atual presidente perante a cloroquina e as vacinas são exemplos disso.

Os comunicadores que fornecem (ou fabricam?) argumentos para o conjunto dos negacionistas veem seu isolamento da comunidade científica como a indicação de sua coragem intelectual contra a ortodoxia dominante, muitas vezes comparando-se com Galileu. Estes espalhadores de desinformação veiculam informações falsas ou imprecisas, em particular aquelas que são destinadas a enganar. Há de se reconhecer que uma parte da comunidade científica foi omissa perante tamanha desinformação e que alguns cientistas e profissionais da saúde formaram parte dos comunicadores do negacionismo. A comunidade científica, em especial as preocupadas com vacinas e mudanças climáticas, tem investigado o negacionismo e seus propagadores pois o crescimento desses movimentos pode ameaçar a saúde e até a própria sobrevivência da civilização como a conhecemos.

Dentro da área de pesquisa sobre negacionismo, é frequente a afirmação que, em uma discussão pública com um negacionista convicto, os argumentos devem ser endereçados ao público e não à pessoa que propaga anticiência. A audiência deve ser sempre respeitada. Discutir com o negacionista, que pode estar genuinamente convicto, pode conduzir a uma perda de tempo ou a um debate agressivo.

Neste artigo destaco um trabalho recente no qual pesquisadores realizaram experimentos para avaliar a eficácia de métodos de contestar a influência de espalhadores de desinformação, especialmente em foros virtuais ou presenciais. O trabalho de Schmid e Betsch, Effective strategies for rebutting science denialism in public discussions, é considerado um marco. Os dados apresentados neste trabalho demonstram que os defensores da ciência podem responder à desinformação apoiando o ponto de vista científico com fatos científicos (refutação tópica) ou revelando as técnicas de negação da ciência (refutação técnica). O objetivo dos autores foi fornecer testes empíricos da eficácia única e combinada das estratégias de fornecer dados científicos ou de revelar as técnicas negacionistas no contexto específico de discussões públicas sobre o negacionismo da ciência. Os pesquisadores (i) examinaram se um negacionista influencia o público de maneira diferente quando seguido por um defensor da ciência que usa uma ou outra técnica de refutação; (ii) avaliaram se a combinação das estratégias de refutação é mais eficaz do que as estratégias isoladas; e (iii) analisaram, também, o dano potencial quando o cientista está ausente e não há nenhuma reação à negação. Por fim, exploraram os danos potenciais e os efeitos de “tiro pela culatra” em função de crenças anteriores e ideologia política.

É interessante transcrever uma tradução livre e resumida da metodologia usada para obter os dados experimentais, pois esta descrição permite entender por que este trabalho é um marco na área.

“Em todos os experimentos, os participantes primeiro receberam uma entrevista com um negacionista. Os participantes foram, então, designados aleatoriamente para o seguinte desenho experimental, determinando a condição de refutação: a) refutação tópica versus não refutação tópica; b) refutação técnica versus não refutação técnica; c) tempo de medição: antes versus depois o debate; dentro dos assuntos. Dependendo da condição, um defensor da ciência: a) estava ausente do debate; b) respondeu ao negacionista usando refutação tópica ou refutação técnica; c) respondeu com uma combinação de ambas as estratégias. A primeira experiência foi realizada entre estudantes universitários alemães. A experiência abordou a vacinação e o debate foi apresentado como um programa de rádio. Seguindo as melhores práticas em pesquisa, replicamos os resultados do primeiro experimento em amostras mais heterogêneas, em uma linguagem e paisagem política diferentes (EUA) em um domínio diferente (mudanças climáticas). Também foi feito um experimento de forma diferente, com formato de apresentação por escrito. Primeiro, analisou-se se o negacionista influencia a atitude do público e a intenção de realizar o respectivo comportamento. Em segundo lugar, analisou-se se a refutação técnica ou tópica são estratégias eficazes para reduzir a influência do negacionista e se a estratégia combinada é mais eficaz do que as estratégias individuais. Por fim, explorou-se se a influência do negacionismo e a eficácia das estratégias de refutação são funções das crenças anteriores do público ou das ideologias políticas.”

O resultado da série de experimentos realizados é resumido pelos autores da forma seguinte (nova tradução modificada):

“Uma meta-análise interna de todos os experimentos revelou que não responder aos negadores da ciência tem efeito negativo nas atitudes em relação aos comportamentos favorecidos pela ciência (por exemplo, vacinação) e nas intenções de realizar esses comportamentos. Fornecer os fatos sobre o tópico ou revelar as técnicas retóricas típicas do negacionismo teve efeitos positivos. Não foram encontradas evidências de que combinações complexas de refutações de tópicos e técnicas sejam mais eficazes do que estratégias isoladas, nem que refutar o negacionismo científico em discussões públicas saia pela culatra, nem mesmo em grupos vulneráveis (por exemplo, conservadores americanos). Como os negadores da ciência usam a mesma retórica em todos os domínios, revelar suas técnicas retóricas é uma adição eficaz e econômica à caixa de ferramentas dos defensores”.

Concluo com uma espécie de receituário para enfrentar debates com negacionistas publicado há anos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que tratava das vacinas (colocadas como exemplo), mas que pode ser considerado geral. Tanto as refutações tópicas quanto as refutações técnicas podem ser agrupadas em cinco categorias. As refutações tópicas podem se agrupar em:

1) ameaças (essa doença está erradicada);
2) métodos alternativos (como homeopatia ou imunidade natural);
3) efetividade (as vacinas não salvaram a minha tia);
4) confiança (vocês estão tentando controlar a minha saúde);
5) segurança (as vacinas causam autismo).

As refutações técnicas, por serem mais evidentes, dispensam exemplos e podem ser agrupadas da forma seguinte:
1) conspirações;
2) falsos especialistas;
3) seletividade das informações;
4) expectativas impossíveis;
5) representações e lógicas falsas.

O trabalho de Schmid e Betsch e o receituário da OMS fornecem ferramentas para combater o negacionismo anticiência. Aproveitando estas ferramentas, o esforço que a comunidade acadêmica faça para se engajar neste combate pode diminuir as divisões entre “nós” e “eles”, contribuindo para a construção de uma sociedade mais saudável.

Acesse o artigo no site do Jornal da USP.