Ainda é possível transformar o Brasil em protagonista global na área de ciência, tecnologia e inovação. Mas, para isso, é urgente um projeto nacional que considere e priorize as vantagens comparativas. “Temos a matriz energética mais limpa do mundo, cerca de 20% da biodiversidade mundial, recursos hídricos abundantes e clima que permite aproveitamento solar e eólico”, enumera o físico Luiz Davidovich, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que presidiu até a semana passada a Academia Brasileira de Ciência (ABC).

Ao Estadão, Davidovich aborda os caminhos para esse projeto de desenvolvimento científico, mas lembra que isso deve ser precedido por um bom projeto de País, que combata principalmente a desigualdade. “A desigualdade desperdiça milhões de cérebros nos morros, nos mangues. Um gênio não escolhe onde vai nascer. E só mudamos isso com educação de qualidade para todos.”

O senhor defende que ainda é possível transformar o Brasil em protagonista global na área de ciência, tecnologia e inovação. Por onde começamos?
É importante que a sociedade brasileira e o governo, tanto o Executivo quanto o Legislativo, entendam que o Brasil deve se aproveitar das nossas vantagens comparativas: temos a matriz energética mais limpa do mundo, cerca de 20% da biodiversidade mundial, recursos hídricos abundantes, clima que permite aproveitamento solar e eólico. Temos ferro, temos nióbio. Temos universidades que desenvolvem 95% da nossa produção científica. Temos estruturas de financiamento, como CNPQ e Capes, temos sociedades científicas fortes e atuantes. O que falta é um projeto nacional que utilize essas vantagens comparativas. Mas esse projeto não pode sair da cabeça de um ou dois, deve ser compactuado pela sociedade.

 

Mesmo com tudo isso, ainda seguimos aquela fórmula de exportar matéria-prima e importar bens industrializados…
Pois é. Hoje, exportamos ferro para a China que nos devolve o aço deles. Temos poucas pesquisas inovadoras nas empresas e poderíamos mudar isso se fizéssemos encomendas públicas para grandes temas. A biodiversidade, por exemplo, está ligada a novos fármacos. Precisamos mudar o complexo industrial da saúde de modo que as nossas farmacêuticas não produzam apenas genéricos. Veja o caso da bergenina, um glicosídeo com poder anti-inflamatório e antioxidante presente no fruto e no caule do uxi-amarelo, uma planta medicinal amazônica. Quem se apropriou dela foi o laboratório suíço Merck, que purifica, extrai o princípio ativo e vende para nós. O preço por miligrama é mais de 4 mil vezes o preço do ouro. No Brasil, o garimpo de ouro da Amazônia está destruindo o nosso verdadeiro ouro. Nosso ouro é a nossa biodiversidade. Entendeu como o desenvolvimento sustentável é muito mais rentável do que a devastação? Mais um exemplo: já tem cultivo do açaí na Amazônia, que requer a existência da floresta. E o valor por hectare de açaí é oito vezes o ganho por hectare da pecuária.

 

Este é o caminho para, como o senhor diz, o Brasil ser proativo na formatação de sua agenda de pesquisa…
Sim. Nós podemos competir em um complexo industrial da saúde que use a nossa biodiversidade. Podemos desenvolver energias renováveis, pensando que temos energia solar e eólica de sobra no Brasil. Com a energia eólica, por exemplo, é possível produzir hidrogênio verde. O hidrogênio está sendo considerado como a grande riqueza da sociedade contemporânea: você vai poder substituir as baterias elétricas por células de hidrogênio, com uma pegada de carbono muito menor. Isso exige esforço, tem tempo de maturação, risco. A Embrapa faz um trabalho magnífico de uma agenda nacional. A pesquisa multiplicou a produtividade da soja em quatro e até sete vezes mais, economizando adubo.

 

Por que ainda não avançamos nessa agenda? A política econômica menospreza o papel da ciência e da inovação no desenvolvimento nacional?
No auge da pandemia, entraram 40 novos bilionários brasileiros na lista da revista Forbes. A nossa política econômica favorece os rentistas. E, para esses, não interessa diversificar as exportações, porque as commodities estão valorizadas. Mas olha só: nossa balança comercial tem soja e o grande comprador é a China, que fez acordo com a Tanzânia, no sul da África, para comprar soja de lá. A Tanzânia é mais próxima, o frete é mais barato e a China politicamente tem uma ascendência na África. A China também é nossa compradora de carne, mas comprou tecnologia para produzir carne de laboratório, feita a partir de células animais, e planeja ter escala industrial até 2027. E o que fazemos enquanto isso? Ficamos sem prospecção e sem planos para o futuro, deitados em berço esplêndido.

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Mas vamos entrar “com o bonde andando”, não é? Vai dar tempo?
Há 40 anos, a Coreia do Sul estava atrás da gente, a China publicava muitos plágios. Hoje, as pesquisas produzidas na China estão na Science, na Nature (alguns dos principais periódicos científicos do mundo). Então, precisamos aproveitar as nossas vantagens comparativas e não perder tempo. Não só isso. Acima de tudo, é preciso ter em mente que um projeto de desenvolvimento científico precisa ser precedido por um bom projeto de país, que combata principalmente a desigualdade. A desigualdade desperdiça milhões de cérebros nos morros, nos mangues. Um gênio não escolhe onde vai nascer. E só mudamos isso com educação de qualidade para todos, o que engloba também a educação em ciência, que deveria começar no fundamental, na idade dos porquês. Esse é o momento de transformar curiosidade em experimentação. Alguns podem se encantar e decidir ser cientistas na vida adulta. Outros não se tornarão cientistas, mas terão educação científica. A população hoje está admirada com a ciência, que está ajudando a salvar vidas. Mas é preciso ir além, entender o método científico, que implica hipótese, experimentação. Uma sociedade assim não é enganada por fake news.