Leia entrevista de Roberta Jansen para O Estado de S.Paulo, publicada em 1o de abril:

Mais de um século após a sua fundação, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) elegeu nesta semana, pela primeira vez, uma mulher, a biomédica Helena Nader, para a presidência. Eleita na última terça-feira, 29, ela toma posse na próxima Reunião Magna da ABC, em maio, para o triênio 2022-2025.

Embora tenha levado 105 anos para escolher uma mulher para comandá-la, a ABC ainda andou mais rápido nesse aspecto do que várias academias de ciências pelo mundo. A tradicionalíssima Royal Society, de Londres, fundada em 1660, nunca foi presidida por uma mulher. O mesmo ocorre nas academias da Alemanha e da Itália. A Academia Francesa de Ciências, criada em 1699, já teve 303 presidentes; entre eles, apenas uma mulher. E a primeira presidente mulher da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, de 1863, é a atual mandatária.

“É um orgulho ver no Brasil, que tem uma academia bem mais recente, ainda que centenária, esse processo acontecendo”, afirmou Helena. “Mas ainda temos um longo percurso pela frente para atingir igualdade de gênero e diversidade.”

Segundo ela, a despeito dos avanços das últimas décadas, os anos da pandemia trouxeram muitos retrocessos para as mulheres. Embora a produção científica masculina tenha aumentado no período de confinamento, a das mulheres caiu. Em entrevista, ela fala da fuga de cérebros do País e da redução do número de jovens na carreira acadêmica. Para a especialista, falta uma política de Estado de investimento em ciência e educação. “A nossa universidade melhorou, está mais diversa, mais colorida, mais a cara do Brasil”, disse. “Mas precisamos reter esses alunos. O principal insumo da ciência é o cérebro.”

Formada em Ciências Biomédicas pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e licenciada em Biologia pela Universidade de São Paulo (USP), Helena já foi presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, e, atualmente, é copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências. Helena já publicou mais de 380 artigos em revistas científicas internacionais e já formou 46 mestres e 51 doutores.

Pela 1ª vez, em 105 anos, a Academia Brasileira de Ciências tem uma mulher na presidência. Demorou muito?

Acho que foi uma construção. A Academia Americana de Ciência, bem mais antiga do que a nossa, somente na última eleição teve uma mulher na presidência. Várias outras, em outras partes do mundo, não têm. É um orgulho ver no Brasil, que tem uma academia bem mais recente, ainda que centenária, esse processo acontecer. 

Mas as mulheres ainda são minoria na ABC, não? Como foi a eleição?

Sim, mas já somos 18% (são 182 mulheres em um total de 994 acadêmicos). Este ano, o porcentual de mulheres que entrou para a academia aumentou muito, chegando a 40%. Foi uma eleição baseada nos critérios de sempre, de produção científica, internacionalização do trabalho, formação de recursos humanos, o impacto da ciência que o pesquisador produz. Mas fizemos uma busca ativa e propusemos mais nomes de mulheres.

Como avalia a participação da mulher na ciência brasileira?

O papel da mulher na ciência aumentou muito nas últimas décadas. Quando entrei na Escola Paulista de Medicina (da Unifesp), nos anos 1970, as mulheres eram minoria. Hoje, são maioria na graduação e também na pós. No entanto, quando olhamos para os postos de comando, tanto na academia quanto nas empresas, o percentual é bem menor. Algo acontece ao longo desse percurso que impede a mulher de chegar lá.

E o que seria?

A mulher que tem uma família tem um período de gravidez, de amamentação, que acaba levando a uma redução na produção científica. É preciso ter um olhar diferenciado para essas fases, que são fundamentais, não podemos abrir mão disso. Não se trata de ser uma grande cientista ou ter filhos, ser uma médica de renome ou ter uma família. Não pode ser uma Escolha de Sofia. O mundo e o Brasil começam a olhar para isso. Mas a sociedade brasileira ainda é muito machista.

Acha que houve retrocessos nos últimos anos, sobretudo após o início da pandemia?

Sim, o retrocesso foi muito grande. A pandemia foi trágica para as mulheres, aumentou o número de agressões físicas e feminicídios. Especificamente na área de ciência notamos, não só no Brasil, mas também nos EUA, por exemplo, que a produção científica dos homens aumentou, enquanto a das mulheres caiu. E o ministério que deveria estar preocupado com as questões da mulher entra em discussões religiosas. Precisamos ter uma política de Estado inclusiva, não discriminatória. E nesses últimos anos ela tem sido discriminatória.

De que forma?

Estão questionando direitos já constituídos. Nosso país precisa ser mais inclusivo, não o contrário, como falou o ex-ministro da Educação (Milton Ribeiro disse que a universidade deveria ser para poucos). Nosso País é negro e, no entanto, quantos negros temos nas altas posições? Poucos. Isso significa que poucos tiveram acesso à educação e à qualificação. Temos de mudar isso. O mesmo vale para os povos originários. Precisamos reconhecer a nossa história ou não vamos crescer. O Brasil tem uma história muito bonita e também muito feia. Devemos conhecê-la bem para nunca mais repeti-la. Como pode, ainda hoje, alguém fazer apologia ao golpe militar? A visão que se costuma ter da ciência é aquela que mensura, que faz experiências. Mas a ciência não é isso. A ciência é ter um olhar crítico. Não há como ter um País justo sem ciência, inclusive ciências de humanidades e sociais.

A fuga de cérebros tem se agravado. O que pode ser feito?

A situação é trágica. Mas vou ser franca: não se trata apenas de fuga para o exterior. Mais grave é o número de cérebros espetaculares que deixam de entrar na universidade. A demanda caiu. E, entre os que se formam, um número ainda menor está procurando a pós-graduação.

Por quê?

Precisamos mergulhar mais a fundo nessa questão para entender direito. Mas uma das possíveis explicações é o número reduzido de bolsas e o baixo valor das bolsas disponíveis. Não dá para sobreviver. E muitos desses alunos que não estão fazendo pós aqui, estão sendo levados para o exterior. Fico muito triste com isso, imaginando quantas potenciais Marie Curie (1867-1934), Nobel de química em 1911, e de física, em 1903, e (Emanuelle) Charpentier, Nobel de química em 2020, estamos perdendo, para citar apenas mulheres. Isso deveria ser um projeto de Estado brasileiro. Nossa universidade melhorou, está mais diversa, mais colorida, mais a cara do Brasil. Mas precisamos reter esses alunos. O principal insumo da ciência é o cérebro. E o Brasil tem de 40% a 50% a menos de cientistas por milhão de habitantes que a Argentina, que tem 1.400 por milhão. E em países como Israel, são 9.500. Esses países perceberam que isso é investimento. No Brasil, a palavra investimento é só para bancos; é um jogo, em que você pode ganhar ou perder. Se pusermos recursos na educação e na ciência teremos sempre retorno.

Leia a matéria original no site do Estadão.