Confira trechos do artigo escrito pela Membro Titular da ABC, Mercedes Bustamante, publicado hoje, 11 de janeiro, no Correio Braziliense

 

No ano do bicentenário da independência do Brasil, vale revisar os relatos das viagens do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire pelo interior do Brasil, entre 1816 e 1822, descrevendo não somente a natureza mas também muitos aspectos da sociedade brasileira à época. Em suas considerações sobre as transformações de nossas paisagens naturais, ele observou a ação humana reduzindo a diversidade de plantas com a perda de seus benefícios econômicos – árvores preciosas derrubadas “inutilmente sob o machado do agricultor imprevidente”, contribuindo com a extinção “de milhares de espécies úteis para as artes e a medicina”, em associação às queimadas. Saint-Hilaire lamentou a agricultura predatória e “sem inteligência” e a perda da vegetação nativa antes mesmo suas espécies pudessem ser catalogadas e estudadas.

Um leitor desatento poderia, tranquilamente, situar tal descrição no Brasil de hoje. Com a diferença que hoje podemos acrescentar o conhecimento sobre os impactos negativos do desmatamento nas mudanças climáticas e na oferta de serviços ecossistêmicos, como produção e conservação de água, polinização, controle de pragas agrícolas e de novas pandemias.

Nos últimos dias, houve a divulgação quase escondida (em 31 de dezembro!) dos dados oficiais do desmatamento do Cerrado em 2021. Os números Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), indicam novo crescimento do desmatamento e a perda de 8.531,44 km2, pressionando ainda mais o bioma que já perdeu quase 50% de sua vegetação nativa. Uma semana depois, em 6 de janeiro, o INPE informou que o monitoramento do Cerrado será mantido somente até abril desse ano por falta de verba. Os recursos usados na estruturação do PRODES Cerrado eram de um programa internacional e foram captados com o compromisso do Brasil de, posteriormente, garantir a manutenção do monitoramento.

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No Cerrado, as seguranças alimentar, energética e hídrica do país estão intrinsicamente conectadas e são dependentes da conservação da vegetação nativa em larga escala. A agricultura no Cerrado segue o ritmo da sazonalidade da precipitação, mas as projeções mais recentes de mudanças do clima apontam para a redução da precipitação e a extensão do período seco. A adoção de práticas de irrigação tem crescido persistentemente desde os anos 1970. Porém, o desmatamento em escala regional altera o ciclo hidrológico no Cerrado e, em conjunto com a variabilidade climática, podem limitar tais práticas.

No Brasil, 65% da matriz elétrica é de fonte hídrica. O mapeamento das unidades de aproveitamento hidrelétrico da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) indica que as unidades presentes dentro dos limites do Cerrado e as unidades externas que se encontram em bacias fortemente influenciadas pelo bioma representam 52% de todas as unidades do país. Em meio à maior crise hídrica em 90 anos, lembramos que a Bacia do Paraná, que contribui com a usina hidrelétrica da Itaipu, recebe 47% de suas águas do Cerrado.

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Longe dos olhos e do interesse dos setores econômicos e do governo por sua conservação, a perda da savana mais biodiversa do mundo, com expressivos estoques de carbono, responsável por significativa produção de água e energia para todo o país, traz um alto custo com graves repercussões por longo tempo. No entanto, da mesma forma que a Ciência nos revela os problemas, ela também é capaz de oferecer soluções que vão desde estratégias adequadas de restauração, planejamento e gestão de paisagens diversificadas e multifuncionais até o desenvolvimento de novos modelos de agricultura que preconizem a conservação e reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas. Alternativas existem. Faltam visão estratégica, responsabilidade e vontade política.

Leia o artigo completo no Correio Braziliense.

 

Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil