Os Acadêmicos Carlos Alexandre Netto e Esper Cavalheiro e as professoras Beatrice Passani e Diana Jerusalinsky. Participantes relembraram a convivência com Izquierdo e trocaram informações sobre suas recentes pesquisas.

 

No dia 11/5, ocorreu o 36° webinário da Academia Brasileira de Ciências, que reuniu Acadêmicos e pesquisadores convidados para celebrar a vida e as descobertas do neurocientista Iván Izquierdo, morto em fevereiro de 2021. Além de ter sido uma homenagem, “O legado de Iván Izquierdo para a neurociência da memória” foi também uma oportunidade para os cientistas que trabalharam com o grande pesquisador apresentarem os desdobramentos de suas pesquisas e compartilharem como foi a experiência de dividir o laboratório e conviver com Izquierdo.   

Nascido em 1937, Iván Antonio Izquierdo foi um médico e neurocientista argentino, naturalizado brasileiro em 1981. Influenciado por um tio da mesma profissão, graduou-se em medicina em 1961, na Universidade de Buenos Aires (UBA), e completou seu doutorado em farmacologia em 1963, também na mesma instituição. Começou a carreira em seu país natal, onde trabalhou por cerca de uma década como professor na Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Devido a motivos políticos – a ditadura argentina – e pessoais – sua esposa, Ivone, é brasileira -, acabou mudando-se para o Brasil no começo da década de 1970. Foi em solo brasileiro que o pesquisador se estabeleceu como pioneiro no estudo da neurobiologia da memória e do aprendizado, destacando-se entre os cientistas brasileiros mais citados em todas as áreas do conhecimento.

“Carismático, brilhante e generoso”, como é frequentemente definido pelos antigos colegas de trabalho,  a contribuição de Izquierdo à biologia da memória incluiu o estudo de numerosas drogas que afetam a memória (anfetamina, atropina, opioides); a descoberta de mecanismos neurohumorais (beta-endorfina, benzodiazepínicos) que regulam a formação e a evocação da memória, junto com mecanismos hormonais, em relação com processos emocionais ou afetivos; a seqüência bioquímica que subjaz à formação da memória no hipocampo, e sua interação com outras estruturas. Foi membro de diversas academias de ciências, incluindo a ABC, cuja Diretoria integrou em vários mandatos, e a National Academy of Sciences dos Estados Unidos, Recebeu mais de 60 prêmios e distinções nacionais e internacionais, entre elas a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Científico (1996) e o Prêmio Almirante Alvaro Alberto (2010). 

O presidente da ABC, Luiz Davidovich, abriu o webinário revivendo os tempos em que conviveu com o neurocientista na Diretoria da ABC. “A voz da sabedoria”, como foi carinhosamente chamado pelo presidente, Izquierdo sempre soube ajudar nas políticas idealizadas pela Academia com sua inteligência e percepção.

Em seguida, Davidovich passou a palavra para o Acadêmico Esper Cavalheiro, mediador do evento. Cavalheiro foi o primeiro aluno de Iván no Brasil, tendo sido seu orientando entre 1975 e 1978, durante o mestrado e o doutorado. As características mais fortes que identificou no homenageado era ser “carismático e querido, com uma visão clara da ciência internacional. Ele era a imagem de um líder, de um mentor. A melhor coisa que me aconteceu foi ter feito mestrado e doutorado com ele”, afirmou o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). 

“Somos exatamente o que lembramos e também aquilo de que não queremos lembrar”

O título da palestra da professora associada da Universidade de Florença (Itália), Beatrice Passani, é uma das falas de Izquierdo que mais a marcou. Referindo-se à origem do fascínio do neurocientista pela memória, ela contou que se deu após a leitura do conto “Funes: o arquivista da memória”, de seu ídolo conterrâneo Jorge Luis Borges. “No mundo de Funes, nada era impossível na memória imperfeita.” Passani definiu a memória como “a habilidade de codificar, armazenar, relembrar e extinguir informações que não são agradáveis, tudo ao mesmo tempo”. 

Em 1986, Izquierdo descobriu, através de testes com ratos, que a histamina possui efeitos maravilhosos na memória, além de desempenhar múltiplos papeis no cérebro humano. Os testes demonstraram que a manipulação, com uso de medicamentos ou de substâncias do sistema histaminérgico central, nos momentos de aprendizagem modifica o comportamento animal, criando, por exemplo, condicionamentos específicos após memórias aversivas.

O esquema apresentado por Beatrice Passani mostra que, após descerem das plataformas e tomarem choques, os animais evitavam repetir a ação nos dias seguintes, a fim de evitar o mal estar.

A neurotransmissão histaminérgica é fundamental para garantir a memorização de eventos emocionalmente marcantes, através do recrutamento de circuitos alternativos. Os pesquisadores concluíram que o sistema histaminérgico compreende vias paralelas e coordenadas quando uma estrutura cerebral está comprometida.

Entre os estudos mais recentes do seu laboratório, a pesquisadora mencionou um artigo que concluiu que antialérgicos e anti-histamínicos derivados da pirilamina prejudicam a recuperação da memória. Ela também incluiu uma pesquisa que vinha sendo conduzida por Gustavo Provensi e Iván Izquierdo sobre a extensão das memórias capazes de criar respostas mal adaptadas do cérebro, que podem acarretar em problemas obsessivo-compulsivos e fobias. Atualmente, o projeto estuda o uso de anidrases carbônicas (enzimas que auxiliam no transporte do CO₂ e no controle do pH do sangue) para a extinção dessas memórias. Também citu outra pesquisa de sua autoria que provou a importância de uma alimentação com peixes e frutas para manutenção de uma boa memória. 

Dissecando os caminhos da memória envolvidos na formação da memória

A professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) Diana Jerusalinsky iniciou sua fala listando algumas grandes lições que aprendeu com o professor Izquierdo. Segundo ela, muitos caminhos e mecanismos fundamentais associados à formação da memória foram revelados após o uso correto de tarefas comportamentais selecionadas e de ferramentas farmacológicas, além da análise do timing preciso para a abordagem cirúrgica.

 

As fases da memória: aquisição do conhecimento → consolidação → armazenamento → memória de longo prazo, que podem ser evocadas com frequência, o que gera um aprendizado novo. 

Ela abordou dois tipos de pesquisas que realizou junto com Izquierdo nos laboratórios: a primeira, para avaliar a locomoção e os caminhos escolhidos por roedores em espaço aberto. “O comportamento exploratório espontâneo é frequentemente avaliado em um campo aberto, onde são testadas a capacidade de exploração, os níveis de estresse e a memória espacial”, explicou a professora. A segunda, para testar a habilidade inibitória em uma única etapa, onde o roedor leva choque suave após descer da plataforma. Foi possível perceber que a latência é proporcional à frequência do choque. A pesquisadora mencionou que tanto a neurotransmissão inibitória quanto a excitatória estão envolvidas na formação da memória, particularmente na consolidação da memória.

Durante o período de 1989 a 2011, Iván Izquierdo, o também neurocientista Jorge Medina e outros 20 pesquisadores do grupo publicaram mais de 200 artigos científicos, entre os quais estão incluídos um artigo sobre bioquímica e farmacologia da memória, publicado na Review em 1997, que obteve mais de mil citações; uma publicação na Nature em 1998, sobre a independência da memória de longo prazo sobre a memória de curto prazo; e outra publicação na Neuron em 2007 sobre a fase da consolidação da memória agora nomeada “memória persistente”.

A novidade é o que nos leva para frente

A palestra do membro titular Carlos Alexandre Netto, “Hipocampo, novidade e memória”, foi centrada na importância das novas experiências para o funcionamento do hipocampo – uma estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano, considerada a principal sede da memória, e também uma das áreas mais estudadas por Izquierdo.

Os estudos do professor sobre a estrutura foram divididos em duas partes: hipocampo e memória, e opioides e função da memória. Em relação ao segundo estudo, realizado nos anos 1980, foi constatado que agonistas, como a morfina, são causadores de amnésia; enquanto isso, os antagonistas causam melhoras na memória. Izquierdo foi pioneiro no estudo dos opioides endógenos, categoria na qual se enquadra a endorfina liberada pelos neurônios.

As interações da beta-endorfina foi outro tópico muito abordado na fala do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A beta-endorfina é um neurotransmissor endógeno cujos principais efeitos ao ser lançado na corrente sanguínea – que ocorrem como consequência de certos traumas físicos e através da atividade física – são a diminuição da sensação dolorosa e a facilitação de sensações de relaxamento e bem-estar. A partir da pergunta “a memória pode ser regulada pelo sistema de beta-endorfina?” foi possível conduzir uma série de experimentos e estudos. 

Fotografias apresentadas por Carlos Netto ao fim de sua apresentação, ambas tiradas durante um congresso na Alemanha Ocidental em 1989, logo após a queda do Muro de Berlim. Na primeira, Izquierdo aparece “em cima” do exato local onde ficava o Muro. Na segunda, mestre e aluno descansam na grama.

 

A aplicação da neurociência em pautas cotidianas

Antes de abrir para perguntas dos espectadores, Cavalheiro promoveu um debate entre os participantes, levantando questões pertinentes ao tema. O professor da Unifesp perguntou sobre os caminhos da memória que justifiquem atividades rotineiras serem esquecidas com facilidade e momentos de novidade aparentarem passar mais rápido e ficarem registradas com clareza. Netto explicou: “A novidade induz uma mudança na estrutura do hipocampo, capaz de conduzir comandos enquanto presente, deixando o cérebro mais alerta.” Passani completou, afirmando que o hipocampo é como um “organizador de memórias”: “ele fornece a quantidade suficiente de histamina para consolidar as memórias; no entanto, se você tem muito dessa dose, o efeito é o oposto.” 

Uma das questões mais relevantes foi levantada por Davidovich, que questionou se a exposição massiva a conteúdos e multitelas implicaria em danos neurofisiológicos, principalmente em crianças. 

Netto afirmou que hoje em dia, por conta da interação com o digital, muitas crianças deixam de desenvolver habilidades motoras que crianças do passado desenvolviam através de brincadeiras em grupo. “O cérebro se adapta a qualquer situação”, argumentou o professor, que também afirmou que a maior preocupação são as consequências em longo prazo, como uma possível patologia ou a perda dessa capacidade de adaptação. Passani completou alertando para a possibilidade do desenvolvimento de um vício e recomendou o uso da ludoterapia.

Diana Jerusalinsky afirmou que, segundo estudos recentes, é possível que as crianças de hoje em dia já tenham nascido com essa capacidade de administrar múltiplas funções ao mesmo tempo, além de se adaptarem mais facilmente ao uso excessivo dos meios digitais do que os adultos. Os estudos apostam em circuitos e sinapses que apresentam um padrão de atividade diferente, capaz de influenciar até na capacidade de digitar e de escrever a mão. “Talvez isso não seja algo ruim. Provavelmente daqui a 100 anos nem precisemos mais de canetas”, comentou Beatrice, rindo. 

Conforme os apresentadores marcaram em suas falas, o legado de Izquierdo, quando medido em números, é estrondoso: mais de 600 artigos científicos publicados, 108 orientações acadêmicas e mais de 25 mil citações – que o torna um dos cientistas brasileiros mais citados em todas as áreas do conhecimento. O homenageado, que dedicou mais de 60 anos à pesquisa, também influenciou pelo menos cinco gerações de neurocientistas no Brasil e na Argentina. Sua colaboração para a pesquisa nacional foi imensurável, assim como a saudade que ele deixou no peito de familiares, amigos e colegas de trabalho. O legado de Izquierdo para a ciência é eterno, e ainda influenciará muitas gerações de neurocientistas. 

A gravação do webinário pode ser  encontrada no canal da ABC no Youtube, com áudio em português ou em inglês.