Leia matéria do Acadêmico Virgilio Almeida para o jornal Valor Econômico, publicada em 

Dois estudos recentes fornecem elementos importantes para se analisar a questão da modernização digital do governo brasileiro.

Duas perguntas fundamentais são o ponto de partida para essa análise. Qual o estágio de digitalização do governo? Que direção o Brasil deve seguir para acelerar a transformação digital do governo?

Uma pesquisa realizada pela Escola Nacional de Administração Publica (Enap) apresenta dados sobre os diferentes estágios de digitalização de serviços públicos de atendimento do governo federal. O foco do estudo foi a relação do governo com o cidadão. A pesquisa da Enap cobriu 1.740 serviços ofertados por 85 órgãos da administração direta e indireta. No caso da administração direta, o estudo focalizou em serviços nas áreas do Estado e da economia e meio ambiente.

A pesquisa classifica os serviços em cinco categorias, dependendo do nível de digitalização dos mesmos. Em um extremo, está a categoria “Nenhum”, que representa 15,6% dos serviços analisados e refere-se àqueles serviços com total ausência de interação com o usuário via meios digitais.

O Brasil ocupa a 44ª posição no ranking global de governo digital da ONU, atrás do Chile, Argentina e Uruguai

No outro extremo estão os “autosserviços”, que são apenas 7,4% dos serviços analisados. Os autosserviços são completamente automatizados e não requerem intervenção humana. Entre os dois extremos, está a categoria “Digital” onde praticamente todas interações do cidadão com o serviço ocorrem por meio digital, porém podem necessitar algum tipo de intervenção humana. Essa categoria representa 24% dos serviços analisados. Em estágio apenas parcial de digitalização, está a maioria dos serviços, ou seja, 52,9%. Em recortes mais detalhados, a pesquisa mostra que em cada cem serviços públicos, trinta são prestados pessoalmente no balcão e apenas um é prestado via aplicativo móvel.

Os serviços mais avançados em termos de digitalização são aqueles relacionados aos impostos e outras contribuições, que correspondem a 60% dos autosserviços. Três em cada quatro serviços não realizam nenhuma avaliação da satisfação dos usuários, sendo que os serviços não digitalizados são os que menos avaliam a satisfação dos seus usuários. Fica evidente que o Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer no processo de construção de um governo digital, com serviços de qualidade orientados ao cidadão.

O outro estudo, publicado recentemente pelas Nações Unidas (ONU), avalia o status de desenvolvimento de governo eletrônico dos 193 países membros da organização. A avaliação não é uma medida absoluta, mas sim uma classificação relativa do desempenho do governo eletrônico dos países membros da ONU. A pesquisa baseia-se em indicadores referentes à infraestrutura de telecomunicações, disponibilidade de serviços online e capital humano para promover e usar as tecnologias digitais.

Em 2018, o Brasil ocupa a 44ª posição no ranking global de governo digital da ONU, atrás do Chile, Argentina e Uruguai. Entretanto, o Brasil subiu 7 posições na avaliação da ONU, quando comparado a 2016. Neste ponto cabe perguntar, quais as principais características dos países nas primeiras posições do ranking, como Dinamarca, Austrália, Coreia do Sul, Reino Unido e Suécia.

Todos os países nas primeiras posições tem estratégias claras para transformação digital do governo, com a definição de rotas para os esforços de digitalização do setor público, bem como sua interação com a sociedade e empresas. Diante desses números, é natural perguntar quais direções o próximo governo deve seguir para acelerar a modernização digital do governo brasileiro?

Uma estratégia de transformação digital deve ter clareza dos custos, ganhos e benefícios que a digitalização pode trazer para a sociedade, tanto do ponto de vista social quanto econômico. Apesar dos percalços recentes na economia, o Brasil tem uma série de características que o habilitam a traçar objetivos mais ambiciosos, do que simplesmente seguir a trajetória de outros países mais desenvolvidos rumo à economia digital.

O país está entre as dez maiores economias, com uma população de mais 210 milhões de pessoas, com ampla diversidade étnico-racial e cultural. O Brasil tem um ambiente regulatório moderno, com o Marco Civil da Internet e a Lei de Proteção de Dados Pessoais. A isso tudo, soma-se o fato que os brasileiros já são muito mais digitais que os governos no país. Segundo pesquisas do instituto Pew Research, 79% dos brasileiros entre 18 e 36 anos usam as redes sociais. O WhatsApp tem mais de 120 milhões de usuários no Brasil. Esse conjunto de características leva a uma abundância de dados, que são os elementos chaves para a economia digital e em particular para as tecnologias de inteligência artificial.

A implantação de uma visão avançada para governo digital pode funcionar como alavanca para outros setores da economia adentrarem na transformação digital. Como o Brasil não progrediu significativamente em direção ao governo digital, há uma janela de oportunidades para aquilo que os economistas chamam de “efeito leapfrog”. O Brasil tem condições para “pular” níveis de implantação de governo digital e ir diretamente para projetos ousados, usando tecnologias de inteligência artificial, que tem potencial de causar um grande impacto no modo como os cidadãos experimentam e interagem com os governos. O uso de inteligência artificial em aplicações e serviços do governo pode gerar mais eficiência, além de preparar a sociedade para o avanço da automação, que deverá ocorrer nos próximos anos. Poderá também ter “feedback” da sociedade sobre questões chaves associadas à inteligência artificial, como ameaças a privacidade ou discriminação social e racial. Isso tudo irá preparar os brasileiros para
um futuro cada vez mais automatizado.

Virgilio Almeida é membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), professor associado ao Berkman Klein Center na Universidade de Harvard e ex secretário de política de informática no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação de 2011-2015.