Graduado em medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFG), o Acadêmico FernandoCendes fez residência médica em neurologia na Universidade Estadual de Campinas(Unicamp), com especialização em neurofisiologia clínica no MontrealNeurological Institute and Hospital, no Canadá, país em que também obteve seudoutorado em neurociência, pela Universidade McGill.

Sua palestra na Reunião Magna da ABC intitulou-se “Reflexões sobre aneurociência e a influência de Poincaré “, e teve início com algumas reflexões sobreo método cientifico. Cendes destacou que para observar atentamente o fenômeno noqual estamos focados, temos que fazer uma seleção, pois não podemos registrartudo a nossa volta.

E como nosso cérebro faz essa seleção? O matemático francêsHenri Poincaré discutiu isso em seu livro A Ciência e o Método, publicado em1914. Segundo Cendes, “esse critério seletivo é uma questão que diz respeitotanto ao físico quanto ao historiador, ao matemático e a todos os outroscientistas, e os princípios que os guiam não são assim tão diferentes.”

Colocando num contexto mais amplo, Cendes – que atualmenteé professor titular do Departamento de Neurologia da Unicamp e um doscoordenadores da área de saúde da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado deSão Paulo (Fapesp) – citou Nabokov, que em 1947 dizia que “a consciência é aúnica coisa real no mundo e o maior mistério de todos.”

Ele descreveu situações depacientes que são vítimas de lesões cerebrais que causam situações de negligênciaespacial. Estas provocam impactos dramáticos em seus julgamentos e avaliaçõesconscientes. Mas estudos comprovaram que a informação obtida não é totalmenteperdida.

Alguns indivíduos acometidos delesões desse tipo não conseguem descrever uma fenda onde enfiar um objeto, porexemplo, mas conseguem executar a função. Ao verem figuras de duas casas iguais,sendo que uma está incendiando e a outra não, eles não identificam as metadesda figura; mas ao serem indagados sobre qual delas escolheriam para morar,escolhem invariavelmente a que não está em chamas. Ou seja, percebeu-se que osdanos causados pelas lesões mantêm uma determinada independência com relação a operações conscientes e inconscientes.

Cendes colocou então a pergunta: será que nós, indivíduos sem lesõescerebrais, também temos percepções ocorrendo nos nossos cérebros das quais não estamosconscientes? Para ilustrar a resposta, apresentou o vídeo inglês “WHODUNNIT“, que mostra que a desatenção pode causar cegueira. “Freud acertou quando afirmouque a consciência é supervalorizada. Existem varias coisas acontecendo o tempotodo no nosso cérebro sobre cuja percepção não temos consciência”, afirmouo pesquisador.

O neurocientista abordou então a impressão subliminar, que é aapresentação de um estímulo de forma tão rápida que o individuo não percebe,mas fica impresso no subconsciente. A partir da alfabetização, essa impressão subliminaré tão poderosa que a criança pode ser exposta a sequências de letras – como radio e RADIO – que, embora tendo a letra A grafada diferente na forma maiúscula eminúscula, o cérebro interpreta de forma semelhante.

Ócio criativo

A função normal do cérebro depende de uma interação complexa de redes estruturaise funcionais, que desempenham atividades com o indivíduo dormindo ou acordado. Cendesexplicou que quando o individuo aparentemente não está fazendo nada, existemestruturas e redes altamente conectadas trabalhando.

“Interrupções na atividadedessas redes parecem estar associadas a desvios cognitivos e comportamentaisidentificados em doenças como autismo, epilepsia e Alzheimer. Hoje podemos visualizaressas situações através da ressonância magnética.”

Fernando Cendes foipresidente da Liga Brasileira de Epilepsia e secretário da Subcomissão deNeuroimagem da Liga Internacional Contra a Epilepsia. É membro titular daAcademia Brasileira de Ciências, da Academia Brasileira de Neurologia, daSociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica e da Sociedade Brasileira deNeuroradiologia Diagnóstica e Terapêutica. É membro associado da AmericanAcademy of Neurology e da American Epilepsy Society.

O inconsciente e a matemática

Poincaré relatou diversos casos em que teve ideias dormindo oufinalizou-as durante o sono, episódios em que aparentemente seu inconscientefez todo o trabalho. “Essas declarações reforçamo conhecimento que temos hoje de que não nos damos conta de quantos processoscognitivos estamos ativando no dia a dia,” afirmou Cendes.

Outro matemático, Jacques Hadamard, desconstruiu o processo dadescoberta matemática em quatro estágios sucessivos: iniciação, incubação, iluminação e verificação. A iniciação envolveria todo o trabalho preparatório,consciente, de exploração do problema. A fase de incubação seria um períodoinvisível de “gestação”, durante o quala mente vaguearia, preocupada com o problema, mas não demonstrando nenhum sinalconsciente de estar trabalhando nisso.

De repente, após uma boa noite de sono ou uma caminhada relaxante,ocorre a iluminação: a solução aparece em toda a sua glória e invade a menteconsciente do matemático – na maioria das vezes, de forma correta. Esse momentoé sucedido pelo trabalhoso processo de verificação.

“Quando tomamos algumas decisões conscientemente, temos um trabalho quedemanda muita energia na nossa memória. Isso tira o nosso foco do problema real.Durante o sono ou inconscientemente, muitas operações matemáticas podem serprocedidas. Existe uma atuação cerebral que parece ser randômica durante o sono”,explicou Cendes. O especialistacompletou, esclarecendo que alguns neurônios muito ativos no hipocampo e nocórtex são muito mais ativos durante o sono. “Ratos submetidos a tarefas complexas numlabirinto conseguem repetir o trajeto no dia seguinte, quando dormem bem. A consolidação damemória só se dá com um sono adequado”, reforçou.

Em vários aspectos, portanto, sabemos hoje que nosso sistema visualresolve problemas sem a nossa consciência. Em 1902, Poincaré antecipou diversasdessas questões, especialmente a força do inconsciente sobre o consciente. Ele percebeuque os poderes subliminares do cérebro não começam a ocorrer se ele não foralimentado por uma pergunta consciente. Cendes apontou que o cérebro tem que serdespertado. “E depois, temos que verificar conscientemente o resultado. Mas a intuiçãoé uma manifestação da inteligência que independe da educação formal, afirmava Poincaré.”