A crise hídrica pela qual passa a região Sudeste foi tema de uma coletiva de imprensa que reuniu veículos do mundo todo na Academia Brasileira de Ciências (ABC), na quinta-feira, 12 de fevereiro. Cinco destacados cientistas que atuam nessa área falaram sobre as perspectivas do problema e possíveis soluções, do ponto de vista da energia, mudanças climáticas e saúde pública, focando no caso específico do Rio de Janeiro. O Acadêmico José Galizia Tundisi, pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia (IIE) e especialista em recursos hídricos, coordenou o evento e contextualizou a situação da seca no Brasil e no mundo.
 
 
 
Tundisi reforçou que é necessária uma mudança drástica na governança da água, conforme já mencionado pela Carta de São Paulo, documento produzido a partir das conclusões do simpósio “Recursos hídricos no Sudeste: segurança, soluções, impactos e riscos“, realizado pela ABC em novembro de 2014. Ele afirmou ser fundamental que o conhecimento científico acumulado seja utilizado pelo governo para que medidas eficazes sejam tomadas. “A governança do Brasil sempre foi ligada a uma abundância de água, e hoje vivemos uma escassez que não vai durar só um verão. Num estado como São Paulo, o problema se agrava ainda mais, porque depende de recursos hídricos para sua economia – é o maior produtor do mundo de suco de laranja, de ovos, e sua população é do tamanho da Argentina.”
 
 
 
O Acadêmico Luiz Pinguelli Rosa, diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), associou a crise à energia, informando que o problema da geração elétrica brasileira repousa sobre o uso da hidroeletricidade. Em tempos normais, 80% da geração de eletricidade tinham essa origem, e atualmente esse índice fica em torno de 70%. Essa lacuna é completada, principalmente, pelas termoelétricas, uma fonte de energia cara e poluente, pois emite gases para a atmosfera. Estas usinas foram feitas para estarem desligadas e serem usadas apenas em emergências. Em 2014 elas permaneceram ligadas e em 2015, passaremos o ano todo dependendo delas.
 
“A nossa situação é extremamente grave”, pontuou Pinguelli. “Há muito tempo, os níveis dos reservatórios não atingem uma média confortável para garantir a geração elétrica ao longo de todo ano e, em 2015, já não há como atingirmos os níveis normais até o fim do período úmido.” O risco de uma crise elétrica esse ano é de 7%, considerado muito alto. O Acadêmico afirmou, no entanto, que é possível reduzir bastante o consumo sem prejuízo do conforto. Ele deu o exemplo dos aparelhos de ar refrigerado, geralmente usado para gerar temperaturas muito baixas. “Se usarmos em 25 graus em vez de 20 graus, o consumo de energia é reduzido pela metade e é até mais confortável. Não há necessidade de usar cobertor.”
 
Também Acadêmico, o pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) José Marengo lembrou que “não aprendemos nada com o ano de 2001”, quando a escassez de água levou a “apagões” constantes. “Esse fenômeno já aconteceu no passado, acontece agora e deve acontecer no futuro”. Marengo explica que a causa principal da seca é a não-ocorrência da Zona de Convergência do Atlântico Sul, quando nuvens e massas de ar frio atraem a umidade da Amazônia e a levam para o Sudeste em forma de chuva. Esse evento chegou a acontecer de forma fraca em fevereiro, por isso choveu um pouco. Ainda assim, seria preciso que chovesse 50% a mais que o normal. “Ainda estamos no cheque especial das represas, no negativo.”
 
Marengo diz ser temerário afirmar que esse evento é consequência das mudanças climáticas e da ação humana. “Existem evidências de que esse fenômeno não é associado ao desmatamento da Amazônia e não é um indicador de que o clima já mudou.” Ainda assim, pelas previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), situações como essa podem se repetir.

A diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ), Sandra Azevedo, lembrou que, diferentemente da energia e dos alimentos, não existe plano B para a água. “Existe um despreparo para lidar com essa seca, que vem se estabelecendo ao longo de vários anos.” A escassez está diretamente ligada a doenças de veiculação hídrica, como diarreias e cólera, porque só se pensa em qualidade da água depois que se tem uma quantidade minimamente suficiente. “Qual o controle que temos, por exemplo, sobre a qualidade da água dos carros pipa ou dos galões, que se tornaram populares? Temos os principais mananciais da região sudeste contaminados com componentes químicos muito tóxicos.”
 
O sistema de rodízio, segundo Sandra Azevedo, também expõe a população a riscos. Isso porque a intermitência da água gera diminuição da pressão e, quando há microfissuras nos canos (e sempre há, já que as cidades brasileiras têm redes antigas que se misturam com as novas), aumenta a chance de contaminação externa quando a água fica fechada. Os contaminantes vem do solo ao redor dos canos, que geralmente é poluído por esgoto e resíduos químicos. “Quando a água é aberta novamente, entra nas casas com toda essa sujeira que se instalou nos canos.” Além disso, Sandra destaca que é uma medida injusta, já que prejudica quem depende exclusivamente dessa água. “Quem está no meio da rede e tem condições, armazena água. Então, ela nunca chega pra quem está na ponta do sistema.” Ela afirmou que os governantes estão seguindo a “política de avestruz”, colocando a cabeça no buraco e negando o problema. “Não é mais coisa de ecochato, e sim de sobrevivência.”
 
O engenheiro Paulo Canedo, chefe do Laboratório de Hidrologia da Coppe/UFRJ, ressaltou que esta seca, apesar de ser um evento raro, deveria estar contido no planejamento govern
amental. Para o especialista, a falta de ação dos administradores levou a um raciocínio, no Rio de Janeiro, segundo o qual “enquanto não morrermos de sede, está tudo bem”. “Mas é preciso ter conforto e satisfazer todas as necessidades – agricultura, energia, indústria.” Ele também destacou que a imprensa não deve “criminalizar” um dirigente que propõe racionamento. “Não que eu esteja propondo isso, mas deve haver um consumo consciente. Se todo mundo tivesse diminuído o uso da água em 15% há algum tempo, não estaríamos nessa situação agonizante. E dá pra reduzir 15% e continuar vivendo com conforto.”
 
Confira algumas perguntas dos jornalistas presentes na coletiva:
 
Yasmine Batista, Bloomberg: A Bacia de Alter do Chão poderia suprir o abastecimento no Brasil?
 
Sandra Azevedo: Esta bacia tem uma água de excelente qualidade e em abundância, o problema é que fica no Pará. Seria necessária uma logística complexa e cara para trazer essa água.
 
Paulo Canedo: Como trata-se de uma água subterrânea, é preciso fazer perfuração para utilizá-la, o que aumenta o custo. Por esse lado, temos também o Rio Amazonas, que pode oferecer água para toda a América do Sul.
 
José Tundisi: Temos o caso do Aquífero Guarani, por exemplo, atualmente sob muita demanda de São Paulo, e sua recarga é lenta. Temos que ver opções viáveis – trazer água do Rio Amazonas para o Sul é inviável economicamente.
 
Lucas Vettorazzo, Folha de São Paulo: Quais são as implicações de reduzir a vazão de água no Rio de Janeiro? Como funciona exatamente esse sistema?
 
Paulo Canedo: A Bacia do Paraíba do Sul armazena água no período de chuva para que se tenha reservas para o período de seca. Essa água que resta está sendo usada exclusivamente para abastecimento humano. Atualmente, há restrição de 140m3 de água por segundo que chega a Santa Cecília. Antes eram 190m3. Lá existe uma bifurcação, onde 90m3 são transferidos e seguem 50m3 para o Rio. Isso é alimentado com água de chuva e, quando chove a mais, a água é armazenada. Sua saída é manuseada para que haja sempre 140m3 chegando a Santa Cecília. Nas condições atuais, não há capacidade para termos água até 2016 com uma vazão de 140m3 por segundo, então teremos que diminuir. A Agência Nacional de Águas (ANA) propôs 110m3, e logo diminuirá para 90m3. Dá para viver com 110m3, ninguém vai morrer, mas não é uma situação tranquila. Não tem produção de energia elétrica, não há água para a lavoura, o rio está poluído, há aumento de doenças de veiculação hídrica.
 
 
 
Isabela Vieira, Agência Brasil: Por que é difícil conseguir dados confiáveis sobre a Cantareira? Qual o papel dos Comitês de Bacia?
 
José Tundisi: Em muitos países, eles funcionam muito bem, com bons bancos de dados. Nem todas as bacias têm informações confiáveis, não apenas a Cantareira, sobre precipitação e fonte de água. Também é importante a participação efetiva da sociedade nos Comitês de Bacia. É fundamental nesse processo que os Comitês de Bacia sejam atuantes.
 
Paulo Canedo: A lógica da gestão descentralizada é ótima. Primeiro porque quem conhece a Bacia do Paraíba do Sul é quem vive aqui, e segundo porque seria melhor se os agentes estivessem aqui, do que emanando ordens de Brasília. Então a lógica dos Comitês de Bacia é, em princípio, muito boa. Mas o Parlamento é formado por pessoas que não entendem de água, são usuários de água.
 
Andre Trigueiro, TV Globo: Esse evento reforça uma impressão de que há uma gigantesca distância entre os tomadores de decisão e os cientistas. Paulo Canedo já fala há muito tempo da perspectiva de seca, Pinguelli disse que o racionamento tinha que estar sendo feito há um mês. Há três, anos, a ABC falou que o novo Código Florestal ia prejudicar as bacias hidrográficas. Então não há estrutura para gerenciamento de crise?
 
Sandra Azevedo: Concordo. Fazemos todo esse esforço de décadas, formando recursos humanos, mas existe uma barreira intransponível na transferência de conhecimento. A área de gerenciamento de crise é completamente represada por vontade política. Esses dados foram passados para os tomadores de decisão. O que mais precisa acontecer? Todos os cenários mostram que não estamos saindo de uma crise, mas entrando cada vez mais. Esse país tem sim condição científica, técnica e econômica de resolver isso, mas tem que ter vontade política de tomar as decisões.
 
 
 
VEJA A REPERCUSSÃO DO EVENTO NA GRANDE MÍDIA