Temas com valor de fronteira para a biomedicina contemporânea. Para Vivaldo Moura Neto – Acadêmico responsável por coordenar a sessão de ciências biomédicas da Conferência Avanços e Perspectivas da Ciência no Brasil, América Latina e Caribe 2013 – a expressão resume as falas dos pesquisadores José Garcia Abreu Júnior (UFRJ), Alícia Juliana Kowaltowski (USP), Federico Brown (USP) e dos Acadêmicos Esper Abrão Cavalheiro (Unifesp) e Roger Chammas (USP). Com coordenação geral de Fernando Garcia de Mello, o evento anual da ABC chegou à sua oitava edição mantendo a interdisciplinaridade e interação entre pesquisadores jovens e sêniores como suas principais características.

O primeiro assunto abordado foi a biologia do desenvolvimento, campo bastante novo no Brasil e especialidade do professor José Garcia. Diretor adjunto de graduação do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio (ICB/UFRJ), ele traçou um panorama da prática de controle de genes em desenvolvimento [genes de formação desde as primeiras etapas da vida embrionária até a vida adulta], destacando suas perspectivas de utilização. Sua fala foi dividida em três partes: um histórico do campo – desde o seu surgimento até os dias atuais – uma revisão do conceito de “organizador” e as suas implicações para o embrião e, por fim, a apresentação de dados que procuraram mostrar, de modo palatável, quais estratégias celulares e moleculares as células embrionárias utilizam na formação de territórios embrionários.

De acordo com o palestrante, a biologia do desenvolvimento é uma ciência contemporânea que não se restringe apenas ao embrião. “Ela engloba uma visão contínua do desenvolvimento que busca entendê-lo no caminho que vai do momento da fecundação até o envelhecimento”, explicou. Garcia observou que de 47 mil artigos buscados a partir da palavra “embrião”, 13% dos resultados falarão sobre câncer, envelhecimento, descoberta de novas drogas e degeneração. Apesar de ser classificada como uma subárea da bioquímica, da genética e da biologia molecular, estatísticas confirmam que os estudos em biologia do desenvolvimento têm crescido consideravelmente nos últimos anos, em especial na América do Norte, no oeste europeu e na Ásia. “A produção na América Latina ainda é bastante tímida, muito em função do aporte de recursos e da pouca visibilidade que essa área do conhecimento tem na região”, lamenta. O Brasil contribui com cerca de 60% dos artigos publicados sobre a temática na localidade.

Em seguida, o Acadêmico Roger Chammas chamou a atenção dos presentes para os novos desafios e dificuldades de enfrentamento do câncer. O especialista em glicobiologia, que atualmente coordena o curso de pós-graduação em oncologia da Universidade de São Paulo (USP), disse acreditar que atividades assistenciais devem ser aliadas a atividades acadêmico-científicas para que as pesquisas realizadas em bancadas de laboratórios cheguem ao atendimento à população. É esse, em sua visão, o caminho para a medicina translacional em oncologia.

Chammas também definiu o processo de carcinogênese: “Um processo interativo de múltiplos passos que leva ao acúmulo de mutações e seleção de células mais agressivas”. O professor explicou que, dada a heterogeneidade de genótipos e fenótipos em um mesmo tumor, as células tumorais de alguém não apresentam, necessariamente, as mesmas características. Por esse motivo, a variabilidade genética individual e intratumoral representa obstáculos naturais à implementação de uma oncologia de precisão.

Atentando para o fato de que os custos de pesquisa são geralmente absorvidos pela indústria farmacêutica, que repassa o custo final dos estudos para o preço do medicamento em uma prática conhecida como “modelo sustentável”, ele questionou: “E quando não houver perspectivas de retorno financeiro?” Sua fala, no entanto, não se ateve apenas ao levantamento de problemas no campo da oncologia. Chammas relatou que há evidencias experimentais de que remédios de uso consagrado para outras condições – dentre elas a hipertensão, a diabetes e diferentes inflamações – poderiam eventualmente trazer benefícios a pacientes com câncer. Embora esse reposicionamento possa beneficiar um número significativo de indivíduos, ele explica: “Esses usos alternativos precisam ser testados clinicamente, mas, como geralmente não são mais protegidos por patentes, o interesse comercial por estas substâncias tende a ser menor”.

A próxima temática discutida foi o metabolismo mitocondrial. A mitocôndria, como sede da energia celular, tem um papel preponderante na saúde e na doença. Somente agora, entretanto, ela começa a receber seu devido valor no estudo da célula. Professora titular do Departamento de Bioquímica da USP, é essa a área de especialidade de Alícia Juliana Kowaltowski, eleita membro afiliado da ABC para o período 2008 a 2012. Ela estuda o metabolismo energético e já publicou cerca de 100 artigos internacionais, acumulando mais de 4.600 citações a seus trabalhos.

A pesquisadora explicou a ideia por trás das “dietas intermitentes”, seus efeitos e como elas alteram o metabolismo daqueles que as praticam. “No laboratório nós trabalhamos com animais controle sedentários e obesos, pois podem comer tudo o que quiserem e não costumam se movimentar. Eles têm muita gordura corporal e várias outras características da síndrome metabólica: são hipertensos e pré-diabéticos, chegando a ficar diabéticos com o tempo”, ressalta. De acordo com ela, portanto, caso a quantidade de calorias ingeridas pelo animal seja reduzida, mantendo todos os micronutrientes necessários, ele não só diminuirá de tamanho, como também viverá por mais tempo e de maneira mais saudável.

A técnica, conhecida como “restrição calórica”, é uma dieta de laboratório na qual se diminuem as porções de ração e a alimentação passar a ser suplementada com nutrientes. Mas a professora alerta: “Isso não significa trocar hambúrguer por salada!”. Segundo Alícia, existe uma distorção muito grande em relação a dietas que se autodenominam de restrição calórica. Muitas vezes elas suprimem calorias, mas se esquecem de suplementar a alimentação. Outras vezes, e são esses os casos que interessam à pesquisa da palestrante, são utilizadas as dietas intermitentes. “Ao invés de reduzir o número de calorias diariamente, elas oferecem comida ao animal 24 horas sim, 24 horas não. Como sua implementação é muito mais simples, a dieta começou a se popularizar nos últimos anos”, explica. Os estudos de seu grupo de pesquisas ainda chegaram à conclusão de que os animais em regime intermitente comem exatamente a mesma quantidade dos que estão em dieta normal. Apesar disso, eles são menores (menos pesados) do que aqueles que comem irre
stritamente, o que evidencia uma diferença significativa no tocante à conversão energética.

Federico Brown, professor da USP premiado pela Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS) no ano passado, foi o último dos conferencistas. Para o coordenador da sessão, Federico representa muito bem o espírito do evento. “Sua formação inicial foi no Equador, seu país de origem. Depois, ele se mudou para a Colômbia e, mais tarde, foi aos Estados Unidos. Hoje em dia, está na USP. Por seu talento, juventude e facilidade em migrar para tantos lugares, ele é um cientista sem fronteiras”, opinou.

Tratando da origem evolutiva das células tronco, Brown falou sobre a importância dessas células na construção de uma “nova história de vida”. Especialista em genética comportamental, sua palestra teve como temas centrais a regeneração – a partir de células tronco – em invertebrados marinhos, a evolução da colonialidade em cordados marinhos e a evolução do comportamento em nematoides [animais cilíndricos e alongados].

O sistema nervoso nas doenças tropicais negligenciadas

“O sofrimento desses pacientes vai muito além da patologia, pois com ela vem a questão do estigma, que muitas vezes leva ao abandono social e econômico”, evidencia o Acadêmico Esper Abrão Cavalheiro. Encerrando a sessão de ciências biomédicas, ele pontuou que sua fala não seria uma apresentação formal, mas um estímulo para que todos pensem a respeito de como o sistema nervoso pode ser importante nos estudos das doenças tropicais negligenciadas.

Em primeiro lugar, o professor titular da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) definiu o que seriam essas doenças. “Tratam-se de patologias infecciosas provocadas por parasitas, protozoários e bactérias com alta prevalência nas regiões tropicais e subtropicais – onde se localizam a maioria dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.”

Embora, em geral, a ciência tenha apresentado grandes avanços nos últimos anos, o tratamento dessas patologias ainda é um tema de difícil enfrentamento. Um dos principais motivos é o desinteresse das indústrias farmacêuticas. “Não existe iniciativa por parte delas, então acaba ficando tudo nas mãos dos governos”, explica Cavalheiro. E qual o resultado disso? Em níveis globais, mais de um milhão de pessoas apresenta uma ou mais doenças negligenciadas, o que resulta em meio milhão de mortes por ano. “Isso é uma brutalidade”, lamenta o palestrante. Ele ainda explicou que a maioria dessas doenças envolve, de algum modo, o sistema nervoso. “Como exemplo disso, três doenças que, com o passar do tempo, estão sendo esquecidas são a neurossífilis, a poliomielite e a encefalite letárgica. Além disso, milhões de pessoas em todo o mundo estão atualmente infectadas por protozoários e, em muitos casos, existem complicações no sistema nervoso central”, finaliza.

A coordenação geral da Conferência Avanços e Perspectivas da Ciência no Brasil, América Latina e Caribe 2013 da ABC (28 a 30/11) foi do Acadêmico Fernando Garcia de Mello. Os coordenadores das áreas foram os Acadêmicos Vivaldo Moura Neto (Ciências Biomédicas), Paulo Arruda (Ciências Agrárias), Luiz Drude de Lacerda (Ciências Biológicas), Jacob Palis (Ciências Matemáticas) e Renato Machado Cotta (Ciências da Engenharia). Veja a programação completa.