Filha de pai jornalista e mãe dona de casa, a bióloga Fernanda de Felice não teve, ao longo de sua infância e adolescência, contato com parentes que a levassem para a área científica. No entanto, a profissão de seu pai foi determinante para o caminho que trilhou. “O fato de o meu pai ser jornalista despertou em mim a curiosidade, a vontade de ler muito e de buscar informações. E essas são características que todo cientista precisa ter”, define Fernanda.

Nascida no Rio de Janeiro e com graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado e doutorado em Química Biológica pela mesma instituição e pós-doutorado em Neurobiologia da Doença de Alzheimer pela Northwestern University, nos Estados Unidos, Fernanda conta que seu interesse inicial era pela Biologia Marinha. “Eu achava muito bonito o trabalho de preservação dos animais. Imaginava que aquela tarefa me daria muita liberdade, eu trabalharia na praia em contato com a natureza e com coisas que eu gostava”, recorda. Porém, logo que entrou na universidade, o leque de Fernanda se abriu e ela teve contato com outras áreas da Biologia que, até então, desconhecia. Foi aí que se deparou com a Bioquímica, o que resultou em um estágio no laboratório de Biofísica Química de Proteínas, que definiria seu caminho profissional.

“No laboratório, eu tive a oportunidade de encontrar um supervisor – Sérgio Teixeira Ferreira – que me foi muito marcante. Através dele eu descobri o quão bom um cientista pode ser e o quão séria e de qualidade é a ciência que somos capazes de fazer no Brasil”, avalia. Puxada de corpo e alma para a área científica, como diz, Fernanda começou a estudar a estrutura das proteínas e suas funções, o que a levou para a análise de doenças amilodoigênicas – relacionadas à má estruturação das proteínas. Entre elas estão a doença da Vaca Louca e a de Alzheimer, esta última foco de seus estudos.

Conhecida como a doença que afeta os mais idosos tirando deles as suas memórias, o Alzheimer é um problema de saúde pública que vem sendo estudado com muito afinco pela cientista. Em sua pesquisa, a neurobióloga busca entender o porquê desse comportamento da doença, que julga ser muito marcante. “É uma doença que afeta a memória, roubando uma das nossas riquezas mais importantes: as recordações que adquirimos ao longo da vida”, diz, emocionada.

Os estudos de Fernanda apontam para uma proteína que adquire uma estrutura totalmente diferente da original como a grande toxina responsável pela doença de Alzheimer. “Por incrível que pareça, essa toxina não é um vírus ou uma bactéria, mas uma proteína em uma forma diferente”, esclarece a neurobióloga, que busca entender como essa toxina ataca as células nervosas – os neurônios – e como esse ataque leva à perda de memória.

Recentemente, Fernanda e seu grupo de trabalho vêm descobrindo uma correlação “muito interessante e importante”, segundo ela, entre a doença de Alzheimer e a Diabetes tipo 2. A cientista explica que o que acontece no cérebro dos pacientes com a doença de Alzheimer é parecido com o que acontece nos sistema periférico – órgãos periféricos – com a Diabetes. “Essa é uma novidade na área e estamos trabalhando um bocado em cima disso, na tentativa de entender o que leva a essa resistência à insulina que está presente no cérebro dos pacientes com Alzheimer”, relata.

A cientista e professora da UFRJ, que ganhou o prêmio Jovem Cientista (Ciências Médicas e da Saúde), da TWAS-ROLAC (Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento – Escritório Regional para a América Latina e o Caribe), em 2008, considera uma honra e uma inspiração ter sido eleita, no ano de 2007, Membro Afiliado dessa instituição. No ano seguinte foi também eleita, para a mesma categoria, para a Academia Brasileira de Ciências. “Os jovens cientistas podem e devem usar o fato de fazerem parte desse grupo tão seleto como uma forma de chamar a atenção para os problemas que passamos na ciência”, defende a neurobióloga.

Fernanda acredita que um desses problemas diz respeito aos recursos destinados à ciência brasileira, que ainda necessita de mais financiamentos para os jovens cientistas. “O valor médio dos auxílios que são dados pelas instituições brasileiras – estaduais e federais – é pequeno e permite aos cientistas fazerem apenas o arroz com feijão. Para se fazer um estrogonofe de camarão, precisamos de um estímulo maior”, ressalta a pesquisadora.

Outro assunto de vital importância para o desempenho do Brasil perante outros países no cenário mundial é a questão das importações. É imperativo que haja uma evolução nesse sentido para que as pesquisas vão adiante e com a rapidez necessária. “Nos Estados Unidos, por exemplo, você tem uma idéia, precisa de um reagente e dois dias depois você o tem para testar. Aqui, demora-se mais de um ano para ter uma importação entregue e, nesse tempo, os competidores lá de fora já fizeram o experimento, publicaram e a gente fica para trás”, lamenta a cientista.

Fernanda concluiu a entrevista falando um pouco sobre a profissão de biólogo no Brasil, para quem o campo de trabalho não é muito amplo. “Existe uma oferta muito grande de empregos na indústria para químicos, farmacêuticos e até biomédicos, mas não para biólogos. Ou você vai ser pesquisador ou professor de Ensino Médio”, observa. A neurobióloga recorda que da sua turma de graduação, cerca de 70% dos alunos tornaram-se professores. “É importante que os docentes tenham uma formação sólida, mas eu acho que podia existir uma maior absorção para a ciência”, defende.

Para Fernanda, esse quadro se deve à concepção que as pessoas têm de a ciência ser um ambiente de difícil acesso. “Muitas acreditam que a ciência é uma atividade muito complicada e que, portanto, não teriam espaço”, argumenta. Porém, a neurobióloga deixa claro que “a ciência consiste, sim, em ter idéias, em realizar experimentos, em publicar artigos, mas, sobretudo, em ter vontade de fazer”, esclarece Fernanda, que acredita que uma equipe é fundamental para a construção científica. “Uma andorinha só não faz verão e um cientista só não faz descoberta. Para desenvolvermos nossas pesquisas, contamos com uma equipe formada por pós-doutores, estudantes de doutorado, mestrado e iniciação científica. Na verdade, é essencial que a equipe seja motivada e que desenvolva suas pesquisas com competência, muita dedicação e paixão pela ciência”, concluiu Fernanda, que foi nomeada Fellow da John Simon Guggenheim Memorial Foundation em junho de 2008, honraria restrita a poucos escolhidos.