Leia artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq, publicado em 19/5:

Pertenço às gerações nascidas entre as décadas de 30 a 60 do século passado e, durante quase toda a minha vida adulta, fui professor universitário. Muitos anos de vivência, leituras variadas e contato com pensadores formaram as minhas ideias sobre a universidade e os seus professores.

A minha espécie não está em extinção, mas, observando as mudanças ocorridas nas últimas décadas, é possível que o tipo de professor universitário em breve tenha características diferentes daquelas da minha geração.

Hoje, não faltam instituições que se denominam “universidades”, embora esse título englobe um espectro de instituições mais amplo que o da luz visível. Assim, o emprego de “professor universitário” só tende a crescer. Mas de que tipo de instituição universitária e de que tipo de professor estamos falando?

Para explicar o que quero dizer, é de bom alvitre descrever a universidade dos meus sonhos, que se parece à USP (Universidade de São Paulo) ou à Unicamp (Universidade de Campinas), pero no mucho.

O conceito de “universidade” no Ocidente nasce no século 11, na Itália e na Inglaterra, pela vontade de homens que queriam ensinar e adquirir conhecimento sem a limitação das rédeas do poder, eclesiástico ou monárquico. Este conceito se alastra pela Europa e chega até algumas regiões da América. Wilhelm von Humboldt, no século 19, implanta na universidade a unidade entre pesquisa e ensino, colocando um toque genial a uma instituição que é um dos alicerces da nossa civilização.

As tensões entre o poder político e/ou religioso e as universidades são muitas vezes agudas, especialmente quando estas (as universidades) exercitam a sua autonomia e formam pessoas críticas. É evidente para qualquer leitor que tenha vivido no Brasil nos últimos anos, ou na Hungria, onde o primeiro-ministro Orban chegou a expulsar uma universidade do país, que esse tipo de conflito é atual, e já dura séculos.

Quando as tentativas de controle pelo poder político, econômico ou religioso vinham somente de fora, as universidades muitas vezes conseguiram se defender relativamente bem, mantendo sua missão, independência e autonomia. Mas, quando a unidade interna das instituições começa a ruir, a coisa é mais complicada. E as forças que tendem a romper a unidade interna de uma instituição são muitas e crescentes. Menciono algumas, por ser sempre bom explicitar o que se quer dizer.

(…)

Eu quis passar minha vida em uma universidade de pesquisa humboldtiana, onde, desde a minha ingenuidade juvenil, fosse possível, pela ciência, contribuir para uma sociedade mais justa neste continente, formar estudantes com pensamento crítico e independente, sem outros compromissos que me afastassem do caminho escolhido. Também estou convencido de que a Universidade de Pesquisa não pode ser o único tipo de instituição que ofereça ensino superior. Universidades que formam profissionais, institutos tecnológicos, entre muitas outras instituições que podem fornecer formação pós-secundária, são partes de sistemas de ensino no mundo todo. De fato, em poucos países a universidade de pesquisa constitui o único caminho para estudantes depois do ensino secundário. Mais uma frase que merece um artigo separado.

Nessa universidade de pesquisa que imagino, ingressar como docente seria um desafio difícil, e ser aceito como aluno tão árduo quanto. Todos os professores pesquisam, ensinam e interagem com a sociedade, dificilmente são ótimos em tudo, mas certamente tentam. Aqueles que selecionam os estudantes querem jovens de procedências diferentes que ao invés de ser depósitos de conhecimento sejam criativos, com pensamento independente e capazes de pensar o seu tempo e espaço fora dos padrões habituais. Este tipo de estudante somente pode ser selecionado por meio de entrevistas.

Estudantes e professores pesquisam juntos, e às vezes é difícil distingui-los. Os professores têm tempo para pesquisar, ensinar, conversar com a comunidade, pois não são obrigados a participar de longas reuniões burocráticas, nem de tarefas que os separe das suas responsabilidades como docentes universitários. E, como podem sobreviver decentemente com os seus salários, não andam atrás de aportes financeiros que os obriguem a se afastar da sua missão.

Claro que estudantes e professores podem estar dispostos a conversar com os centros de pesquisa de empresas para pensar e desenvolver juntos. Sem dúvidas, necessidades da sociedade podem constituir linhas de pesquisa de grupos das humanidades e das ciências naturais. Sotaques do país todo, e de muitos lugares no estrangeiro, são ouvidos pelos corredores, discutindo filosofia ou ciência. Professores e alunos de todas as cores organizam festivais anuais abertos para toda a sociedade, nos quais contam o que fazem e ouvem as necessidades daqueles que estão em seu entorno. O reitor está nessa posição pois seu passado acadêmico o qualificou, tendo sido escolhido por um conjunto amplo de professores e por membros da comunidade externa. O reitor representa essa instituição que, por falta de um melhor nome, chamarei de UDP, ou Universidade de Pasárgada, lembrando aqui o poema de Manuel Bandeira.

É nessa universidade, que pesquisa, que forma seres humanos autônomos, que permanece em contato com a sociedade, onde eu gostaria de renovar o meu contrato de vida, se tivesse uma segunda.


O artigo original completo está publicado no Jornal da USP