0Leia entrevista do Portal da Fiocruz com a vice-presidente da ABC, realizada em 25/2,  para a região Rio de Janeiro, Lucia Mendonça Previato:

A professora titular de microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Ciências e recebedora do prêmio Prêmio da Academia Mundial de Ciências em Biologia em 2007 por sua pesquisa na prevenção da doença de Chagas, participou de uma entrevista exclusiva para o Portal da Doença de Chagas onde ela conta o que a levou a estudar o Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença e por que a sua descoberta foi importante nos esforços de criação de quimioterápicos para combatê-la.

O que a levou a estudar o protozoário parasita Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas?

No início de 1980, eu estava retornando do meu pós-doutorado, no qual dediquei-me ao estudo da glicobiologia da superfície de microrganismos. A glicobiologia é a biologia dos glicídios ou carboidratos, ou seja, dos açúcares. Todas as nossas células são revestidas de açúcar. Esses açúcares são capazes de criar interações entre as células e sinalizar determinadas funções que essas células podem realizar. 

Antes de responder a sua pergunta: o que me levou a estudar o Trypanosoma cruzi, é importante citar que o meu doutorado foi feito sob a orientação do Prof. Travassos, um brilhante pesquisador que havia introduzido a glicobiologia de microrganismos na UFRJ. No doutorado ,eu trabalhei com glicobiologia de fungos patogênicos. No pós-doutorado, o objetivo era aperfeiçoar esses estudos. Inicialmente, eu fui para o laboratório de Prof. Gorin, no National Reasearch Council, no Canadá; posteriormente, para o laboratório do Prof. Ballou, na Universidade da California, Berkeley. Ambos os professores eram especialistas em glicobiologia: o Prof. Gorin em química de carboidratos e o Prof. Ballou em glicobiologia da superfície de levedura, um fungo unicelular.   

Ao chegar ao Brasil, eu já tinha conhecimento que, no final da década de 70, vários pesquisadores vinham estimulando os estudos com o Trypanosoma cruzi para melhor conhecer a biologia do parasita e, assim, entender melhor os mecanismos da patogênese da doença de Chagas. Esse incentivo foi mantido ao longo da década de 80. Os dados epidemiológicos sobre a doença de Chagas, no Brasil, nos anos 70, eram de que havia em torno de 7 milhões de pacientes com doença de Chagas e cerca de 150 mil casos novos por ano. Nesse período, um grupo de pesquisadores extraordinários, com o apoio do CNPq, idealizaram o PIDE, Programa Integrado de Doenças Endêmicas. O comitê do PIDE era formado por nomes que foram responsáveis por avanços importantes nas pesquisas para o controle da doença de Chagas, das leishmanioses, da malária e da esquistossomose, consideradas, ainda hoje, doenças negligenciadas.  Os professores Zigman Benner, Aluizio Prata, Firmino de Castro, Jose Rodrigues Coura, João Carlos Pinto Dias, Erney Camargo são exemplos de cientistas que impulsionaram e trouxeram avanços às pesquisas de doenças endêmicas. É bom ressaltar que na década de 80, alguns autores descreviam que a doença de Chagas atingia de 18 a 20 milhões de indivíduos nas áreas endêmicas da Amárica Latina.  

Naquela época, início de 1980, eu senti que era necessário aumentar os esforços em relação aos estudos da doença de Chagas e do protozoário Trypanosoma cruzi, agente etiológico da doença. No Brasil e em vários países da América Latina havia iniciativas no sentido de acabar com o vetor da doença. Veja bem, o parasita causador da doença de Chagas não está solto no meio-ambiente, ele está dentro de um inseto, um triatomíneo chamado popularment1e, no Brasil, de “barbeiro”, e ele é transmitido para humanos e outros mamíferos através do contágio com as fezes desses insetos. Portanto, foram feitos esforços de saúde pública  com o intuito de eliminar esse vetor, seja melhorando as moradias para evitar a proliferação dos insetos nas áreas habitadas ou conscientizando a população sobre repelentes efetivos. Porém, para além desses esforços, era necessário estudar mais o parasita em si, pois só assim é possível chegar à vacina ou a remédios.

Foi diante desse cenário que eu voltei ao Brasil, animada para estudar o que o Trypanosoma cruzi tinha em sua superfície que permitia a ele interagir com as células hospedeiras. O mais importante foi saber que eu poderia contar com o apoio de instituições de fomento à pesquisa, através do PIDE, devido à relevância do tema, na época. Paralelamente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também impulsionava os estudos sobre a doença de Chagas. Nossos projetos foram submetidos e aprovados. Foi um período de muito trabalho, muito produtivo, resultando em novas descobertas sobre especificidades bioquímicas do Trypanosoma cruzi, em particular sobre a glicobiologia da superfície do parasita. 

É importante mencionar, com ênfase, a formação de relações científicas multidisciplinares frutíferas entre diferentes grupos de jovens pesquisadores.

Qual é o mecanismo da interação entre o Trypanosoma cruzi e as células hospedeiras humanas?  

Trypanosoma cruzi é complexo. Ele tem a capacidade de penetrar em todas as células nucleadas. Outra característica importante do parasita é que ele tem a capacidade de mudar de forma: dentro do inseto ele tem uma forma, quando ele penetra na célula ele se modifica e quando ele sai da célula e vai para o sangue, ele tem outra forma. São morfologias distintas: epimastigotas e tripomastigotas metacíclicos quando estão no inseto; amastigotas quando estão dentro da célula; e tripomastigotas sanguíneos quando estão no sangue. Devido a essas mudanças de forma, a doença de Chagas possui diferentes fases de evolução nos portadores chagásicos: a fase aguda e a fase crônica. 

Até hoje, há apenas um quimioterápico que atua contra a doença de Chagas e, basicamente, na fase aguda: o benznidazol. A doença de Chagas pode levar a mortalidade ou a morbidade. Os portadores chagásicos que sobrevivem à fase aguda podem passar para a fase crônica da doença, apresentando uma série de síndromes. A doença de Chagas é, portanto, uma doença complexa como entidade clínica, é complexa em relação ao seu vetor e é complexa em relação ao parasita que a provoca.

Então o nosso interesse era estudar a superfície desse parasita do ponto de vista molecular. Quais as moléculas que predominavam em sua superfície? Era um trabalho que necessitava de muitos parasitas. Para iniciar as pesquisas, era necessário “crescer” o Trypanosoma cruzi, ou seja, preparar um meio de cultura adequado para o Trypanosoma cruzi se multiplicar. O meio adequado era muito rico e muito “caro”. As substâncias necessárias ao meio eram, em sua maioria, importadas. Uma delas, o soro fetal bovino, é essencial para o parasita sobreviver. No laboratório, começamos a pensar em alternativas. A principal foi substituir o soro fetal bovino por sangue de coelho. Na época, existia um meio bifásico para o crescimento de leishmanias. Preparamos uma fase sólida com o sangue de coelho para substituir o soro fetal bovino e usamos um meio líquido sem aquele soro. O Trypanosoma cruzi foi inoculado e ele gostou! Multiplicou-se bem. Obtivemos o número de células que era necessário. 

Como o nosso objetivo era observar as moléculas qda superfície do parasita que continham açúcar, precisávamos de um reagente denominado lectina, usado em glicobiologia. Há lectinas que reconhecem, especificamente, diferentes açúcares. E sabendo que controles são essenciais nos experimentos de laboratório, comparamos as células de Trypanosoma cruzi obtidas no meio tradicional com as obtidas no nosso meio alternativo. um reagente denominado lectinarfície do Trypanosoma cruzi, crescido no meio contendo soro fetal bovino. Claro que o experimento foi repetido inúmeras vezes.  Lembro-me que pensamos em várias hipóteses, naquele momento. Lembro-me do entusiasmo do grupo. Lembro-me do trabalho persistente, nos meses seguintes. 

Foi assim, ao acaso, que descobrimos uma trans-glicosilase para ácido siálico. Mas o acaso não é sorte. O acaso é trabalho, dedicação e persistência do grupo que está percebendo as diferenças, pensando e estudando. 

Qual foi o impacto dessa descoberta para o estudo sobre a doença de Chagas?

Nós descobrimos que o Trypanosoma cruzi possui uma via metabólica única, diferente de todos os outros organismos que já tinham sido estudados até aquele momento e até hoje. O Trypanosoma cruzi não sintetiza ácido siálico, ele pega o ácido siálico do meio de cultura – no modelo que nós usamos, o ácido siálico está presente na molécula de fetuína do soro fetal bovino –  e coloca esse ácido siálico em uma molécula de sua própria superfície, ou de outra molécula exógena aceptora de ácido siálico. O novo componente que descobrimos tem atividade enzimática. É uma enzima, presente na superfície do Trypanosoma cruzi. Essa enzima, denominada trans-sialidase, cliva e transfere o ácido siálico de uma molécula doadora de ácido siálico para uma molécula aceptora de ácido siálico. Então a nossa contribuição foi no entendimento, no conhecimento, na descoberta de novos componentes da superfície do Trypanosoma cruzi.

Qual a importância de descobrir uma característica específica em um microrganismo causador de doença humana, que não é encontrada em células humanas? É importante, por exemplo, para o desenvolvimento de possíveis fármacos, visando o tratamento da doença. Seria semelhante ao que ocorre no tratamento com antibióticos. Os antibióticos atuam em estruturas específicas das bactérias que causam infecções. Essas estruturas, muitas vezes, não são componentes das células dos hospedeiros. Este é o objetivo, verificar alguma característica diferente, tanto para o estudo de novos quimioterápicos como para os estudos de vacinas. 

Mas você acha que seria possível uma vacina?

O próximo passo é verificar se a trans-sialidase é essencial para o parasita manter a infecção, ou seja, será que sem a trans-sialidase, o Trypanosoma cruzi deixa de causar a doença de Chagas? São muitas as etapas necessárias para ter esta certeza. Para lançar no mercado um novo quimioterápico ou uma vacina, são necessários vários estudos e pesquisas. Os laboratórios precisam de uma série de certezas de que aquela molécula realmente é a que está causando a doença. Há grupos trabalhando em temas como quimioterapia e vacina.

Para sua pergunta se é possível uma vacina, a resposta é sim, há possibilidade. É importante lembrar que o Trypanosoma cruzi é uma entidade complexa. É necessário que as agências de fomento lancem programas com aporte financeiro, que resulte em verbas adequadas para as pesquisas, visando estimular os grupos interessados em trabalhar com doenças negligenciadas. A doença de Chagas ainda é considerada endêmica.

Quais os próximos passos para pesquisa doença de Chagas hoje em dia?

Citando alguns: estudos sobre o parasita e a doença a nível de biologia molecular; estudos sobre novos quimioterápicos que atuam contra o parasito e os mecanismos de resistência ao beznidazol (o fármaco de uso atual); continuação dos estudos sobre a interação parasita-hospedeiro.

Eu dei o exemplo da trans-sialidase. No entanto, existem outros grupos de pesquisadores que caracterizaram outros tipos de moléculas que podem ser consideradas responsáveis pela interação parasito-hospedeiro A continuação desses trabalhos é importante, sempre. 

Além disso, a doença de Chagas é uma doença negligenciada como, por exemplo, a malária, e que precisa ser eliminada. E é possível ser eliminada. Pesquisar a doença de Chagas ajudará a pesquisas de doenças similares. 

Veja o caso dos estudos das vacinas para a prevenção da covid-19, por exemplo. As vacinas atuais puderam ser desenvolvidas rapidamente porque já havia outros tipos de viroses que vinham sendo estudadas, já existia uma produção de conhecimentos que levaram ao sucesso dessas vacinas.

Diante do cenário político e científico atual, qual a mensagem que você deixaria para a futura geração de cientistas – em especial para as jovens cientistas?

A mensagem correta é o que todos recomendam: jovens cientistas brasileiras e brasileiros, não desistam! Continuem fazendo o que vocês gostam, no que vocês acreditam. Governos são passageiros, nós e a ciência permanecemos. 

A mensagem ao governo: é preciso investir nos jovens, proporcionando bolsas de estudo desde a iniciação científica; manter crescente o número de bolsas de pós-graduação (mestrado e doutorado); proporcionar condições melhores para os pós-doutorandos com bolsas no Brasil e no exterior; manter intercâmbio científico com grupos multidisciplinares. O cientista não faz nada sozinho. A interação entre os grupos, como proposto pelo Programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), é fundamental. Estreitar laços com os grupos de pesquisa de sua instituição, com grupos de outras instituições no Brasil e no exterior é uma característica que nós precisamos manter.