No dia 2 de julho, foi lançado internacionalmente o Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde. O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich, é membro do Comitê Diretor do Movimento, em função da participação da ABC na Parceria InterAcademias (IAP, na sigla em inglês). A ABC teve um papel de destaque na articulação do Movimento. O presidente da IAP, Volker ter Meuelen, participou do encontro virtual, representando as Academias de Ciências, Medicina e Engenharia de todo o mundo.

O objetivo deste evento virtual global, com o tema “O princípio ético da equidade em resposta à pandemia e além”, foi dar visibilidade mundial ao Movimento de Equidade Sustentável em Saúde, reunindo as principais instituições envolvidas e reiterando a liderança da OMS e das Nações Unidas na condução da resposta global durante e depois da pandemia de covid-19.

Breve histórico

No dia 24 de abril, mais de 80 instituições de todo o mundo, inclusive a Academia Brasileira de Ciências (ABC), enviaram uma Carta Aberta à Organização das Nações Unidas (ONU), apelando por uma resposta ética global  à pandemia, no sentido do suporte às populações mais vulneráveis de todo o mundo.

A carta levou a discussões com a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre como trabalhar em conjunto para enfrentar os desafios apresentados e ampliou o movimento: mais de 200 organizações e redes estão envolvidas atualmente. Desde então, o trabalho conjunto tem se desenrolado, culminando com o lançamento do Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde em 2/7.

O evento de lançamento global

As falas de abertura foram feitas pelos médicos Michael F. Collins, vice-presidente de Ciências da Saúde e chanceler da Escola de Medicina da Universidade de Massachussets; Juan Garay, professor de Saúde Global da Escola Nacional de Saúde (Espanha); David Chiriboga, professor associado da Escola de Medicina da Universidade de Massachussets e ex-ministro da Saúde do Equador.

Participaram do evento o diretor geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom; a Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet; o presidente da Parceria InterAcademias (IAP), Volker ter Meulen (Alemanha), o ex-presidente da Fiocruz Paulo Buss (Brasil), entre outros, cujas participações serão foco de outra matéria na próxima semana.

Vírus desconhecem fronteiras e se aproveitam das desigualdades

Collins deu as boas-vindas a todos que estavam assistindo o lançamento desse importante Movimento, “especialmente os líderes mundiais e especialistas que lutam por mudanças”.

Ele destacou a reponsabilidade social da Escola de Medicina da Universidade de Massachussets, que considera como missão usar sua experiência e capacidade técnica para colaborar com comunidades vulneráveis no enfrentamento de crises sanitárias, com base em seu compromisso em elevar a condição humana. Como exemplo, citou a colaboração que mantém com a República da Libéria desde o fim da 2ª Guerra Civil Liberiana, em 2003, contribuindo para a reconstrução da estrutura de saúde, fornecendo formação e treinamento profissional, inclusive durante o surto de ebola.

Collins ressaltou que vírus e doenças desconhecem fronteiras nacionais, barreiras geográficas ou diferenças culturais e se aproveitam das desigualdades sociais. “A distribuição de vacinas que podem salvar vidas e as políticas de saúde devem transcender as desigualdades, para fazer a diferença em escala global”, apontou.

O médico destacou, ainda, que cuidados de saúde, políticas de saúde e equidade em saúde são interrelacionadas e interdependentes e requerem abordagens e soluções globais, como foi mais uma vez evidenciado pela atual pandemia de covid-19, que vem devastando as populações mais vulneráveis mundo afora.

“Hoje, mais do que nunca, precisamos de líderes, precisamos de coordenação, precisamos de especialistas, precisamos da Organização Mundial de Saúde, precisamos de todos vocês. A participação de expoentes mundiais aqui hoje, como o presidente da OMS e a ex-presidente do Chile e representante das Nações Unidas Michelle Bachelet, entre outros luminares de todas as partes do planeta, amplia a voz desse movimento nascente e enfatiza sua importância e possível impacto. Agradeço a vocês pelo exemplo”, concluiu o médico.

Precisamos mudar

O mediador do encontro Juan Garay, professor de Saúde Global da Escola Nacional de Saúde da Espanha, cumprimentou os milhares de internautas de centenas de países que estavam assistindo o evento. De acordo com a organização, mais da metade da assistência era das Américas do Norte (26%) e do Sul (26%); 16% eram da África, 14% da Europa, 10% da Ásia, 4% da América Central e Caribe e 3% do Oriente Médio.

Ele iniciou sua fala com uma homenagem aos milhares de habitantes do planeta que perderam suas vidas e às suas famílias, extensiva às populações vulneráveis, invisíveis para os Estados, e aos profissionais de saúde, que arriscam suas vidas para salvar vidas alheias.

Garay destacou que o Movimento é sobre equidade e que esta só poderá existir quando a distribuição justa de recursos for assumida como um direito humano universal e um princípio ético, o que garantirá que o bem estar físico e psicológico será acessível a todos.

Para tanto, porém, ele apontou que há outra dimensão que precisa ser atingida, que é a do bem estar do planeta. O descuido humano alterou os ciclos da natureza e provocou as mudanças climáticas, prejudicando gerações. “E agora precisamos trabalhar para contribuir com uma transformação. Precisamos mudar. Precisamos mudar para que as pessoas cujas profissões que foram agora consideradas essenciais possam estar protegidas. Precisamos mudar para que um pequeno número de grandes corporações pare de lucrar bilhões com medicamentos necessários e inacessíveis a milhões de pessoas. Enquanto alguns multiplicam suas fortunas, especulando durante a pandemia da covid-19, outros morrem por falta de atendimento médico e por falta de alimentos. É por isso que precisamos mudar.”

O lucro não pode estar acima da vida

O ex-ministro da Saúde do Equador David Chiriboga agradeceu a oportunidade de estar ali ,falando para mais de um milhão de pessoas, segundo as informações dos organizadores, e contou que trabalhou por muitos anos com populações indígenas no Equador, no alto dos Andes, e também no Zimbabwe. “Aprendi muito sobre o que significa equidade e porque estamos aqui hoje. E acredito que o propósito deste Movimento é defender estas pessoas que não tem voz e que representam a maior parte da população do planeta”, ressaltou.

Ele conta que enquanto ele e os colegas organizadores do Movimento se comunicavam para pedir apoio à OMS e às Nações Unidas, há dez semanas, via na TV imagens de corpos empilhados em seu país, o Equador, e ouvia os comentaristas falarem sobre o impacto desproporcional da pandemia sobre a população negra de Nova Orleans, Nova Iorque e Chicago, entre outras notícias. “Vimos que a pandemia está amplificando as desigualdades e o racismo estrutural ao redor do mundo”, alertou Chiriboga.

“Se a pandemia atingiu com tanta força países ricos como os europeus e os Estados Unidos, imagina o que fará em países pobres ou em desenvolvimento. E enquanto os países mais despreparados para enfrentar uma pandemia dessa magnitude não a vencerem, o mundo todo continuará ameaçado. O impacto da pandemia gerará um imenso aumento do desemprego. Não há como vencer essa guerra sem um esforço global e concertado”, alertou o professor.

Para tanto, Chiriboga propôs uma ação global que envolva auxílio financeiro emergencial para todos; que ciência e conhecimento se tornem bens comuns, públicos e globais; a abolição de patentes para produtos relacionados à pandemia, com a criação de um arcabouço jurídico internacional; e a criação de uma cadeia de suprimentos emergencial global. Ele concluiu com uma frase de Nelson Mandela: “Sempre pareceu impossível, até que foi feito”.

Saúde é um direito humano e não um privilégio

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, que é biólogo com doutorado em Saúde Comunitária pela Universidade de Nottingham e mestrado em Imunologia de Doenças Infecciosas, agradeceu a oportunidade de participar do evento e destacou que a crise causada pela covid-19 define o momento que vivemos. Ressaltou que enquanto ele falava, milhões de casos de contágio estavam sendo reportados. E alertou para o fato de que, em muitos países, os serviços básicos de saúde estão sendo abandonados em função da covid-19.

“São mulheres sem atendimento pré-natal, diagnósticos de câncer adiados, crianças sem vacinação, atendimento de pessoas com desordens mentais suspensos. É mais do que uma crise de saúde, diante dos milhões de empregos perdidos. E as consequências que virão serão sentidas por décadas”, disse Adhanom.

O preço mais alto está sendo pago pelos que menos podem, segundo o especialista, acrescentando que esta não é uma história nova: diariamente milhões de pessoas são expostas a doenças apenas por suas condições de vida e trabalho, por sua condição social de pobreza, “pela comida que comem, pela água que bebem, pelo ar que respiram”.

Adhanom destacou que a pandemia é um desafio de saúde pública, um desafio econômico e um desafio científico. “Mas é também um teste de caráter para todos nós, para o verdadeiro espírito de solidariedade entre países e entre indivíduos. Quem pode se manter protegido pode fazer a diferença entre a vida e a morte para quem não pode, o que significa combater a discriminação estrutural”, apontou.

Ele concluiu relatando que a OMS está trabalhando junto com a Comissão Europeia e diversos outros parceiros para acelerar o desenvolvimento de vacinas, diagnósticos e terapêuticas que apoiem o Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde.

A saúde tem que estar acima do mercado

A Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, agradeceu a oportunidade de participar de um movimento que em poucos meses reuniu mais de 200 organizações de todas as regiões do planeta, envolvendo profissionais de saúde, movimentos sociais e cientistas de todo o mundo.

Em seu ponto de vista, é nos momentos de crise que a humanidade pode mostrar seu maior potencial de colaboração e generosidade em metas nobres, e o Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde é uma prova disso. “Como médica, ministra e presidente de um país e, agora, nas Nações Unidas, testemunhei como o sofrimento humano é enraizado na discriminação e injustiça. Portanto, valorizo o foco na equidade como um princípio ético. Considero que a equidade em saúde é um bom indicador da justiça social nos países e entre eles”, afirmou Bachelet.

O que estamos enfrentando agora com a covid-19, em sua análise, é consequência da máquina de produção e consumo que resultou nas mudanças climáticas, e é a primeira de outras possíveis pandemias. Para Bachelet, o progresso veio acompanhado da negligência com relação aos direitos humanos.

“Precisamos urgentemente de justiça social e equidade sustentável, que constam da Declaração Universal de Direitos Humanos. Precisamos de ação que parta daqueles que têm poder político e econômico. Mais de dois bilhões de pessoas hoje não têm acesso à medicina essencial, não podemos ser complacentes com isso. Estamos trabalhando junto com a OMS para alcançar proteção social e acesso ao bem estar físico e mental para todos”, afirmou.

Bachelet enfatizou que a saúde da população mundial tem que estar acima da dinâmica do mercado. “A desigualdade mina a saúde das próximas gerações. É hora de uma profunda mudança, que requer coragem e colaboração. Sugiro que o Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde construa uma forte estrutura jurídica internacional, com conteúdo bem claro para lhe dar suporte político, mantenha uma atenção permanente e conduza a elaboração de recomendações em níveis nacional e internacional”, concluiu.

Só com ações coletivas o mundo vencerá a covid-19

O médico Paulo Buss é professor emérito da Fiocruz, onde atualmente é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde. Também dirige o Centro Colaborador em Saúde Global e Cooperação Sul-Sul da Organização Pan-americana/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS). Além de ter sido presidente da Fiocruz e diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, entre outras atividades naconais e internacionais, ele vem representando o Brasil nas quinze últimas Assembleias Mundiais de Saúde, de 2005 a 2019.

Buss destacou a amplitude do Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde, que ao envolver mais de 200 entidades mundiais representa em torno de 20 milhões de profissionais de todo o mundo. “Inclui proeminentes cientistas de diversos campos do conhecimento, profissionais de saúde básica e especialistas, médicos e enfermeiros intensivistas, jovens estudantes, representantes de movimentos sociais, todos na linha de frente da luta contra a pandemia de covid-19. Muitos líderes de Estado, ministros e políticos apoiam o Movimento desde o seu início”, ressaltou o brasileiro.

A pandemia que o mundo enfrenta hoje está roubando muitas vidas e paralisou a economia mundial, causando muito desemprego e amplificando as desigualdades e inequidades pré-existentes. Na visão de Buss, “nossa sobrevivência está se tornando insustentável. Temos que corrigir o curso e, para tanto, precisamos promover profundas mudanças sociais, econômicas, ambientais e de saúde, para além da pandemia. Precisamos olhar para as populações mais vulneráveis, como os povos indígenas e os afro-descendentes”, assinalou.

Este grupo que se envolveu no Movimento, segundo Buss, continuará trabalhando até que haja possibilidade concreta de alcançar e implementar uma realidade mundial mais inclusiva, justa e solidária. Para isso, são fundamentais as ações multilaterais. “Precisamos fortalecer as Nações Unidas e suas agências, precisamos fortalecer a Organização Mundial de Saúde. O Movimento precisa contribuir também para fortalecer outras redes e organizações que compartilhem dos mesmos objetivos”, acentuou.

O ex-presidente da Fiocruz reforçou a expectativa do grupo de que, a partir do evento de lançamento, as organizações envolvidas projetem as ações conjuntas no nível regional, para as Américas, África, Europa, Ásia e Oceania, e para seus países.

“É o que estamos buscando fazer no meu país, o Brasil, que tem imensas desigualdades e inequidades sociais e de saúde, acentuadas pela pandemia de covid-19. Estamos fazendo um esforço no sentido de organizar uma coalizão da ciência, saúde e sociedade, em conjunto com braços dos sistemas judiciário, executivo e legislativo, para reverter a situação e garantir mais equidade e justiça social”, relatou.

Buss concluiu dizendo: “Temos fé, confiança e esperança que a chama que começa a arder pela equidade nos mantenha unidos e projete, de fato, ações para o mundo real, cujas iniquidades tem que ser objeto de ações coletivas. Isso requer um novo pacto social que coloque a economia em seu lugar: a serviço da sociedade.”

Academias a serviço da sociedade

O presidente da Parceria InterAcademias (IAP), Volker ter Meulen, apresentou a rede internacional de Academias de Ciências, Medicina e Engenharia, que reúne 140 delas, organizadas em quatro redes regionais: A Rede InterAmericana de Academias de Ciência (Ianas) , o Conselho Consultivo de Ciência das Academias Europeias (Easac), a Rede de Academias Africanas de Ciência (Nasac) e a Associação de Academias e Sociedades da Ásia (AASSA). Envolve mais de 30 mil cientistas de excelência, engenheiros e profissionais de saúde de mais de 100 países. Mantém programas em educação científica, comunicação científica, biotecnologia e biossegurança, energia. Tem um projeto de Segurança Alimentar e Agricultura, que reúne especialistas indicados pelas Academias membro e que já produziu quatro relatórios regionais e um relatório global. No momento, a IAP está conduzindo um projeto similar voltado para Mudanças Climáticas e Saúde. Todos os projetos abordam e priorizam a equidade.

Meulen apontou as contribuições que a IAP pode dar ao Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde, destacando a habilidade e experiência que a Parceria InterAcademias tem em integrar especialistas e outras partes interessadas com representantes de governos. O aconselhamento científico para formuladores de políticas públicas, com grupos de trabalho que podem sintetizar o melhor e mais atual conhecimento construído sobre uma ampla gama de temas, é outro ponto da colaboração que o IAP pode promover. Os conteúdos dos programas de educação em ciência e de alfabetização científica podem contribuir para estabelecer uma boa comunicação com a sociedade, por meio de seus especialistas engajados. E a capacidade de conduzir trocas de informação nos níveis nacional, regional e global é sua especialidade.

O presidente da IAP, que é médico, destacou as iniciativas da Parceria InterAcademias relativas à pandemia de covid-19. Em 24 de março, a IAP publicou um comunicado global conclamando os países a colaborar, compartilhando informação científica e ajudando especialmente o mundo em desenvolvimento. Reuniu em seu site informação oriunda das Academias membro e de outras fontes de alta reputação. Formou um grupo de trabalho multidisciplinar, com especialistas indicados por Academias membro de todas as regiões, especialmente para atender demandas de outras Academias e de suas redes. As redes regionais passaram a organizar webinários regulares para compartilhar informações e experiências sobre as respostas nacionais à covid-19 e publicaram um módulo educacional, intitulado “Covid-19: Como posso me proteger e proteger os outros?”, que está disponível em 21 línguas.