Grupos de neurocientistas, debruçados sobre as mesmas perguntas e diante de dados idênticos, podem encontrar diferentes resultados em suas análises. Esta realidade configura uma verdadeira versão científica da Torre de Babel, história bíblica na qual pessoas de um mesmo povo perdem a capacidade de falar a mesma língua, inviabilizando, assim, a troca de conhecimento. Esta analogia, aplicada à área da neurociência, foi o grande enfoque de um estudo recém-publicado na revista científica Nature.

A descoberta resultou de um esforço internacional, que mobilizou 70 grupos de pesquisa da área de neuroimagem ao redor do mundo, incluindo representantes do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), único representante latino-americano do projeto. A princípio, o estudo pode aparentar um problema para a credibilidade da ciência, mas, de acordo com os autores, seu objetivo é justamente apontar melhores caminhos para a realização de pesquisas mais confiáveis e com dados mais sólidos.

Como podemos usar a força do cérebro para movimentar uma veste robótica? Quais as bases neurais da compaixão? Empenhados em investigar o comportamento e cognição humanas por meio da ressonância magnética funcional, cientistas da neuroimagem quase sempre estão diante de perguntas extremamente complexas. Tais questões, com frequência, requerem métodos igualmente rebuscados e grandes bases de dados para que sejam respondidas. No entanto, na medida em que as possibilidades de análise de dados aumentam, cresce também a variabilidade dos resultados encontrados pelos pesquisadores.

Para investigar como esta variabilidade impacta os achados na área de neuroimagem por ressonância magnética funcional (RMf) – método que permite medir as ativações cerebrais de voluntários enquanto eles executam uma tarefa –, neurocientistas da universidade de Tel Aviv, em Israel e Faculdade de Dartmouth e Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, decidiram reunir alguns de seus pares e oferecer a eles um conjunto de imagens de 108 cérebros humanos em funcionamento. Os grupos de pesquisa que analisaram os dados neurais precisaram testar, de maneira independente e utilizando seus próprios protocolos, 9 hipóteses científicas diferentes e responder se “aceitavam” ou “rejeitavam” cada uma delas. Ao final, a comparação das respostas de cada um dos grupos foi realizada a fim de constatar a concordância entre eles.

Os resultados mostraram que, apesar dos quase 200 pesquisadores independentes envolvidos terem feito uso de ferramentas e protocolos muito semelhantes entre si, nenhum deles seguiu exatamente o mesmo passo a passo. Isso significa que, por menor que fossem as diferenças metodológicas empregadas por cada um dos grupos, eles ainda assim geraram resultados bastante diversos: na média, 20% das equipes chegaram a um resultado diferente do encontrado pela maioria dos pesquisadores, e apenas uma das hipóteses testadas obteve alta concordância entre os cientistas, de 84,3%.

O lado positivo

À primeira vista, os resultados poderiam apontar alguma crise de credibilidade no que é produzido por cientistas, pelo menos por aqueles que trabalham na área de neuroimagem por RMf. Porém, a conclusão do estudo ressalta uma premissa básica da pesquisa científica: ela não é feita de verdades absolutas e os resultados precisam ser replicados e testados exaustivamente até tornarem-se “aceitos pela comunidade”.  A variabilidade é inerente a qualquer processo científico complexo, e sua replicação por parte de diferentes grupos é um passo fundamental para consolidar resultados em qualquer área do conhecimento.

O fato de cerca de 200 neurocientistas terem se interessado em participar do estudo, dedicando dezenas ou centenas de horas de trabalho ao preenchimento de formulários extensos e análises de dados, comprova uma grande dedicação da comunidade científica da área de neuroimagem para mensurar e melhorar a qualidade da ciência produzida ao redor do mundo. Ainda, a partir do compartilhamento de dados e de ferramentas, a pesquisa aponta novos caminhos para a construção de uma ciência cada vez mais aberta, sólida e confiável. “Este trabalho demonstra a crescente motivação e importância da ciência colaborativa entre pesquisadores de múltiplas instituições na busca do conhecimento e reproducibilidade”, finaliza Jorge Moll, pesquisador representante do IDOR e um dos autores do estudo.

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