A Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Academia Nacional de Engenharia (ANE) promoveram, nos dias 1º e 2 de abril, o Seminário sobre Segurança de Barragens de Rejeitos. O primeiro encontro aconteceu na sede da ABC, no Rio de Janeiro, e o segundo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. A ideia surgiu do convite feito às Academias pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para debater aspectos científicos e tecnológicos relacionados à segurança de barragens de rejeitos, que foi motivado pelos rompimentos de barragens em Mariana, e mais recentemente, em Brumadinho.

No primeiro dia de evento, na sede da ABC, foram tratados temas relacionados a engenharia, segurança, legislação e fiscalização. Estiveram presentes o presidente da ABC, Luiz Davidovich; o presidente da ANE, Francis Bogossian; o Acadêmico e um dos coordenadores do seminário, Edson Watanabe, diretor da Coppe/UFRJ; e o Brigadeiro Paulo Roberto Pertusi, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).

 

Brigadeiro Paulo Roberto Pertusi, Francis Bogossian, Luiz Davidovich e Edson Watanabe

Davidovich comentou que o MME está “fazendo o que os países desenvolvidos fazem”, ao recorrer às Academias para realizar um relatório sobre as barragens de rejeitos no Brasil. Assim como, nos Estados Unidos, a National Academy of Sciences é frequentemente contatada pelo governo para tratar das questões de ciência e tecnologia do país.

Representando o ministro Marcos Pontes e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o Brigadeiro Pertusi, por sua vez, elogiou a organização do evento por abordar não só os aspectos científicos e tecnológicos, mas também os impactos socioeconômicos e ambientais nas regiões que podem ser afetadas pelas barragens de rejeitos.

Para integrar o Painel I: “Barragens, segurança e alternativas: O que é feito e como melhorar?”, foram convidados Mauricio Ehrlich (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), Marcus Peigas Pacheco (UFRJ), Nelson Francisco Favilla Ebecken (UFRJ) e Alberto Sayão (ANE e PUC-Rio), como relator da mesa.

Histórico dos estudos em segurança de barragens de rejeitos

Doutor em engenharia geotécnica e secretário da ANE, o professor Alberto Sayão apresentou um resumo dos dados e discussões levantados nas últimas reuniões sobre segurança de barragens de rejeitos, que se tornaram frequentes logo após o rompimento da barragem em Mariana, em novembro de 2015.

A tabela abaixo mostra a relação entre o número de mortes e os incidentes com barragens de rejeitos ocorridos no século XX. Como apontou Sayão, o rompimento em Brumadinho, mesmo com 216 mortos e 88 desaparecidos, não foi a pior tragédia de barragens de rejeitos no mundo. Os rompimentos não são casos isolados e, diante de tantas tragédias, lançou a questão: será possível fazer uma barragem de rejeito sem risco de ruptura?

Imagem: Alberto Sayão

“Não há obra completamente segura. O risco, em engenharia, é calculado a partir da probabilidade de ruptura e as consequências que a mesma pode causar. Em seguida, é preciso pensar qual o nível de risco aceitável e quanto a sociedade está disposta a arriscar para economizar recursos”, afirmou Sayão.

Segundo o engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila, a tendência é que o risco de ruptura das barragens aumente em 20 vezes a cada 30 anos, considerando que as barragens estão com cada vez mais rejeitos nos reservatórios, e portanto, cada vez mais altas. A princípio, quanto maior a barragem, menos segura ela será.

“A água é o maior inimigo das barragens de rejeitos”, afirmou Sayão. Ele destacou que, em geral, os incidentes têm sido causados pela água, provavelmente por instabilidades resultantes de problemas na drenagem.

O engenheiro civil completou dizendo que, como toda obra de engenharia, as construções de barragens devem sempre considerar os efeitos das chuvas intensas, e, por isso, não se pode culpar as chuvas pelas rupturas das barragens. “A chuva não derruba barragem. O que derruba é algum erro de engenharia, gerenciamento ou manutenção”, ele declarou.

No caso do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, o relatório final do Ministério Público de Minas Gerais concluiu que a principal causa do incidente foram as ampliações sem o devido preparo.

O relatório internacional “Fundão Tailings Dam Review Panel” mostrou também que, anos antes da ruptura, a barragem teve um problema no entubamento, em que filtros e drenos não foram reparados da maneira devida. Esses dois elementos eram os mais importantes para a segurança da barragem, mas ficaram inoperantes.

Para tratar o caso da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Sayão indicou que o governo deveria criar uma comissão oficial, com peritos isentos, para estudar o incidente e produzir um laudo técnico fundamentado, com ampla divulgação na comunidade de engenharia, para que seus membros possam compreender os erros cometidos na área. Sobre a comissão formada pela Vale, mineradora responsável pela barragem, o engenheiro criticou o fato dos membros escolhidos terem sido contratados pela própria multinacional.

Além das prospectivas, é necessário pensar também na prevenção. Novas técnicas de disposição de rejeitos, como o desaguamento, disposição em pilhas, reuso do rejeito desaguado e o monitoramento automático são algumas medidas a serem tomadas para se construir barragens com segurança.

Tratamento para reuso do rejeito mineral após desaguamento. Foto: Trampus & França / *redmud.org / Cetem

Barragens de rejeitos: conceitos e diretrizes

Mauricio Ehrlich é engenheiro civil e professor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ). Ele deu uma palestra sobre os conceitos e modos de operação necessários para se construir uma barragem de rejeitos segura.

Os rejeitos da mineração podem ser categorizados em três classes: inerte, não-inerte e perigoso. O ferro (de rejeitos da classe inerte), explorado com frequência no Brasil, gera a maior quantidade de rejeito dentre os minérios, no entanto, se feita a proporção entre o rejeito produzido e o material beneficiado, é o que gera menor quantidade. Os rejeitos são, usualmente, separados por ciclonagem e lançados na barragem por bombeamento com uma elevada quantidade de água.

As barragens são constituídas por um material arenoso, na frente, e pela lama, na parte de trás. Para distanciar a linha d’água no reservatório e a crista do dique de alteamento, são formadas as “praias”, que garantem uma drenagem melhor da região. Às vezes, podem ocorrer a presença de “línguas” de lama na parte da frente, em função da operação da barragem.

Imagem: Mauricio Ehrlich

Ehrlich indicou que o alteamento de barragens pode ser feito de três formas: por montante, jusante ou linha de centro. Apesar do método por montante ser o mais utilizado, pelo baixo custo, o mais recomendado é o alteamento por jusante. Em sua apresentação, uma das sugestões feitas por Alberto Sayão foi o banimento das barragens por montante.

Imagem: Mauricio Ehrlich

A segurança em barragens deve ser pensada desde o projeto, passando pela construção e operação, até sua estabilidade. As diretrizes pontuadas por Ehrlich para os projetos foram: robustez e flexibilidade; estudo do balanço hídrico, para um dimensionamento adequado dos sistemas de drenagem; e garantia de uma drenagem eficiente.

Na construção e operação, deve-se ter consciência que falhas nos sistemas de drenagem superficial e interno podem comprometer todo o empreendimento e que elevados níveis de água podem prejudicar a estabilidade das barragens. A questão do alteamento é central para a estabilidade, uma vez que métodos lentos favorecem a drenagem, maior resistência da lama e do material arenoso.

De maneira geral, os projetos devem ser capazes de acomodar variações e imprevistos durante a operação da barragem. “A gente não pode ter projeto que não tenha plano B, e só tenha plano A”, completou o professor.

Gerenciar o risco apenas de obras de qualidade

Doutor em engenharia civil, com ênfase em geotecnia, Marcus Pacheco é professor titular do curso de engenharia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Em sua apresentação, ele tratou da qualidade e das análises de risco das obras de engenharia no Brasil.

“Nós não estamos fazendo uma boa engenharia. A frequência com que as rupturas de barragens ocorrem é inaceitável pelos padrões internacionais”, declarou Pacheco. No Brasil, foram sete rompimentos de barragem em 33 anos, estabelecendo uma ruptura a cada 4,7 anos.

Segundo o critério de aceitabilidade do risco do Departamento de Planejamento de Hong Kong, as barragens que romperam em Brumadinho e Mariana estariam muito acima do risco inaceitável de construção. O professor explicou que quando o risco é aceitável, deve-se apenas fazer a manutenção regular da obra; no parâmetro ALARP, onde o risco é tolerável, é necessário tomar todas as medidas possíveis para mitigar o risco; quando o risco é inaceitável, esse tipo de barragem não deveria ser construída.

Pacheco atentou também para a análise sísmica e o efeito de terremotos no rompimento de barragens. Ele lembrou que, no caso da barragem do Fundão, em Mariana, ocorreu um sismo de baixa magnitude, 90 minutos antes da ruptura, que chegou a causar trincas nas instalações da Samarco. Ainda assim, ele ressaltou que o fenômeno não teria muito impacto se a estrutura fosse bem dimensionada.

Por essas razões, ele afirmou que antes de se fazer a análise de risco, é fundamental melhorar a engenharia. “Não faz o menor sentido eu querer fazer o gerenciamento de risco de uma obra se eu tenho uma probabilidade de insucesso muito grande. Aí eu não vou estar gerenciando o risco, aí eu vou estar gerenciando o caos”, defendeu o professor.

A maioria das barragens de rejeito tem a instabilidade iniciada por rupturas clássicas, que são seguidas por liquefação estática com grande mobilidade (grande distâncias percorridas pelos rejeitos) e elevado poder destrutivo (perdas de vida, ambientais e materiais), cujo risco deve ser mitigado a partir de criterioso gerenciamento de risco.

E os eventos sísmicos, reforçou Pacheco, mesmo que de pequena magnitude, não devem ser negligenciados nas barragens de rejeitos ou em qualquer outra obra de engenharia. “O país deve incentivar a comunidade geotécnica, e promover o estudo e especialização em dinâmica geotécnica e análises sísmicas para obras de maior qualidade”, concluiu.

Ciência de dados no monitoramento de barragens

Professor titular do programa de engenharia civil da Coppe/UFRJ, Nelson Ebecken mostrou como a inteligência computacional pode ser útil em atividades especializadas da engenharia, especialmente no monitoramento de barragens.

“Nós vivemos em uma temporada em que estamos todos conectados e produzindo uma quantidade de dados gigantesca”, afirmou o professor. Por isso, se tornou essencial a ciência de dados, que possibilita a criação de processos e sistemas científicos que geram conhecimento a partir destes dados.

O campo influenciou também a engenharia, que da computação científica passou a se basear na computação intensiva de dados. Se, no modelo antigo, a engenharia era pautada nas leis matemáticas, equações diferenciais e grandes sistemas de equações algébricas, com a ciência de dados os modelos se sustentam a partir de grandes massas de dados e do conhecimento de especialistas.

Sobre a barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, a Vale informou que o sistema de monitoramento era constituído por 94 piezômetros (dispositivos usados para conhecer as condições geológicas do terreno em questão e monitorar as águas subterrâneas) e 41 indicadores de nível d’água. As informações extraídas eram coletadas periodicamente e seus dados eram analisados pelos geotécnicos responsáveis. Dos 94 piezômetros, 46 eram automatizados. Ebecken destacou que o direcionamento da instrumentação de barragens para a automatização reduz os problemas de inspeção e validação de sensores.

Sobre os métodos de coleta de dados, o professor indicou o monitoramento em tempo real como o mais vantajoso. Isto porque assim é possível mudar a frequência de acordo com a dinâmica do sistema, examinar as tendências constantemente e fazer uma avaliação mais rápida dos resultados do monitoramento. Associado ao uso de sistemas inteligentes (computação flexível, inteligência computacional, cognição artificial), o monitoramento resulta no reconhecimento de padrões, mineração de dados e até mesmo na autoavaliação dos sistemas.

Ainda que cada projeto deva ser avaliado de forma independente e os programas de monitoramento de instrumentação de barragens não sejam universais, Ebecken citou um projeto indiano como boa prática em reabilitação e melhoria de barragens. Financiado pelo Banco Mundial, a iniciativa focou em reabilitar e melhorar a performance do monitoramento de barragens, levando em consideração a transformação digital do século XXI.

O professor concluiu dizendo que é fundamental uma nova geração de sistemas inteligentes que contenha o conhecimento extraído dos dados e permita novas formas de raciocínio, autonomia, aprendizagem e interação. Além disso, é necessária pesquisa inédita para implementar novas abordagens do machine learning e usá-lo efetivamente para complementar o conhecimento existente.

Configuração atual é fatal para qualquer gerenciamento de risco

Durante o debate, o secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME, Alexandre Vidigal de Oliveira, questionou o porquê, diante de tantas evidências, do rompimento da barragem em Brumadinho não ter sido evitado.

Em resposta, o professor da Coppe Willy Lacerda indicou que o processo de autenticação da segurança de barragens adotado até os dias de hoje é “obsoleto e incorreto”. Por se basear em dados de fator de segurança estático e não ser feito em tempo real, o método é “fatal para qualquer gerenciamento de risco”. Para melhorar o cenário, seria necessário automatizar as leituras de dados, fazer projetos mais robustos e proibir o alteamento de barragens por montante.

 

Leia a cobertura do segundo painel do seminário, sediado no Rio de Janeiro:

E confira as matérias do segundo dia de evento, realizado em Belo Horizonte: